24 Mai 2017
Na semana em que o governo de São Paulo fez uma operação violenta para acabar com a Cracolândia na capital paulista, o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Dênis Petuco, fala sobre a política brasileira de combate às drogas, que prioriza a repressão e não a prevenção.
Nessa entrevista ao portal EPSJV/Fiocruz, 23-05-2017, o pesquisador também fala sobre os caminhos alternativos para este combate, a política de redução de danos, aborda a questão da legalização das drogas no Brasil e a carga moral que está envolvida nesse debate.
Dênis Petuco Foto: EPSJV/Fiocruz
Eis a entrevista.
Qual sua avaliação sobre a ação realizada no domingo, dia 21 de maio, na Cracolândia, em São Paulo?
Quando comecei a receber as notícias, como eu tenho ligação com o campo, já estava tristemente imaginando o que viria. O pessoal que acompanha de perto o trabalho na Cracolândia, em São Paulo, já estava sabendo desses riscos. Há duas semanas começou a haver também uma investida muito forte da mídia, sobretudo a partir da Globo, aquele velho esforço de preparar o terreno para o horror que viria. Começaram a aparecer de modo cada vez mais insistente na mídia matérias mostrando algo que para eles era inédito, que é o fato de que se consome e se vende crack na Cracolândia, como se fosse algo novo. E no domingo de manhã aconteceu aquela ação.
Claro que a gente não podia imaginar o horror. Foi absolutamente terrível. Eu tive um déjà-vu muito triste, lembrando muito de uma operação semelhante que foi realizada em janeiro de 2012, por ordem do governador Geraldo Alckmin. Essa operação, na época, ficou conhecida como ‘Operação dor e sofrimento’ porque a gestora de assistência social do estado de São Paulo na época deu uma entrevista dizendo que usuários de droga só aceitam fazer tratamento se submetidos a dor e sofrimento. Por isso, nós que temos uma perspectiva crítica acabamos meio que batizando aquela operação como ‘Operação dor e sofrimento’ porque o objetivo escancarado era exatamente esse, produzir dor e sofrimento, porque só assim os usuários de crack procurariam tratamento, uma perspectiva totalmente oposta à lógica da redução de danos com a qual a gente trabalha. A lógica dessas pessoas é exatamente o oposto de reduzir danos, ou seja, o objetivo ali escancarado, assumido, é produzir dor e sofrimento, empurrar o usuário para uma situação ainda pior porque, na tese deles, somente assim o usuário de drogas procuraria tratamento. Quando vi as imagens de domingo, me lembrava tristemente daquela operação de 2012.
Outra coisa também, além da violência escancarada, do uso de força policial para tratar um problema social e de saúde é o seguinte: os usuários de crack são expulsos daquele lugar, com tiro, com bomba, cassetetes e tudo mais, são espanados daquela região e aí você começa a ver a formação de procissões do crack, digamos assim, grupos de usuários que fogem dali, que vão se afastando da região da Cracolândia. E o que acontece? À medida que eles tentam assentar em outro lugar, são seguidos pela polícia que novamente os expulsa com violência. Então é isso, o lugar deles é lugar algum, eles são expulsos da Cracolândia, mas não podem se fixar em nenhum outro lugar, à medida em que eles param em alguma praça, eles são novamente espanados dali. E isso está acontecendo nesse momento em São Paulo como já aconteceu em 2012, só que com uma violência exacerbada. Se em 2012 a gente já tinha ficado chocado, as imagens de domingo demonstram que foi algo muito pior, algo terrível, extremamente violento, enfim, fascismo.
Já avançando um pouquinho, dá para a gente pensar o seguinte, aquela situação da Cracolândia - já fui lá algumas vezes - é triste, é o quadro mais brutal talvez da desigualdade social, da miséria, enfim, a máquina do capitalismo produzindo aqueles corpos, aquela situação toda. Mas por mais que seja uma visão absolutamente triste e degradante, essas pessoas encontram alguma forma de acolhida naquela região e para a realização de trabalhos sociais e de saúde, por mais triste que seja a visão da Cracolândia, acaba, de alguma maneira, facilitando o trabalho de promoção de saúde e assistência social porque você consegue encontrar as pessoas em um só lugar. No momento em que você espalha esse pessoal por tudo que é canto, não permite parar em lugar nenhum, você acaba dificultando muito mais o trabalho de promoção da saúde, de produção de política de assistência social e tudo mais.
Do ponto de vista justamente da saúde pública, o que você considera que é a melhor política em relação aos usuários de drogas? Você acha que há diferença entre os usuários de crack e de outras drogas?
O crack tem diferença porque ele é uma droga com as suas especificidades, com seus efeitos específicos, não que ele seja uma droga nova, ele é a velha cocaína, não tem nenhuma diferença, do ponto de vista químico, da cocaína. O que o torna uma droga mais potente e mais destrutiva, e até com maior potencial de indução de relação de dependência, é, sobretudo, a sua forma de uso. A forma como a gente usa uma droga altera a velocidade dos efeitos, a potência, tudo isso. Essa é exatamente a relação do crack com a cocaína, o que diferencia não é nenhuma substância química, mas o modo de uso. Quando você fuma cocaína, tem o efeito começando muito mais rapidamente, muito mais violentamente do que cheirar a cocaína. E ele também desaparece muito mais rápido, o que acaba jogando mais facilmente os usuários de crack, da cocaína fumada, nesse looping. A pessoa fica o tempo inteiro usando, usando, usando sem parar. O cara que cheira cocaína leva 40, 50 minutos para necessitar de uma nova dose e, com o crack, é muito mais rápido, em poucos minutos ele precisa de mais. Então, do ponto de vista da droga, tem esse diferencial. Agora, a grande questão ali na Cracolândia não é isso, a grande questão é que o usuário de crack talvez seja a mais brutal face da miséria urbana na contemporaneidade.
A gente sabe que o crack já está interiorizado também, mas ele tem ainda muito essa marca da miséria urbana. O usuário de crack talvez seja hoje a face mais contundente, mais eloquente dos miseráveis, dessa franja do capitalismo, enfim, essas pessoas sem lugar, os caras que não são consumidores. Então, o grande lance ali mesmo é a questão social. Do ponto de vista de quem pensa política pública de saúde, tem uma imagem que é muito contundente, das imagens fornecidas pela mídia no domingo, que é uma imagem que mostra que enquanto está acontecendo a operação policial, a prefeitura ordena o desmanche da tenda do Programa De Braços Abertos, que é um programa do município de São Paulo. Essa imagem para nós é muito forte. Por mais que ela seja menos contundente que as imagens de bomba e tudo mais, o Braços Abertos é um dos dois programas brasileiros que eu considero exemplos de uma política moderna, avançada, que bebe das fontes da saúde coletiva, da reforma sanitária, justamente nessa perspectiva com a qual a gente trabalha, com o conceito ampliado de saúde.
O Braços Abertos oferece um pacote de direitos que contempla, de saída, como elemento central do processo de cuidado, a oferta de trabalho, renda e moradia. Isso se inspira num conjunto de ideias bastante novas e revolucionárias do tratamento de álcool e drogas que nasceu no Canadá e que atende pelo nome de House First, ou seja, em primeiro lugar, casa, você não vai colocar casa como um prêmio do processo, “agora que você parou de usar…” Não, o contrário: em primeiro lugar é casa, primeiro você estende os direitos da pessoa. E a oferta de políticas de saúde e assistência social, no sentido estrito do termo, são secundárias. Você inicia o processo de cuidado ofertando trabalho, renda e moradia. E apenas depois é que você entra com CAPS-AD [Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas], a saúde, a política de assistência social. E para a gente que bebe da fonte da saúde coletiva, isso não causa nenhuma estranheza, a gente sabe que o conceito de saúde ampliado contempla trabalho, moradia, tudo isso. O outro programa que eu considero exemplar, talvez até mais potente que o Braços abertos, é o programa Atitude, do governo do Estado de Pernambuco.
No Atitude, a porta de entrada é o enfrentamento ao assassinato, a proteção da vida. O objetivo central é diminuir o número de assassinatos de usuários de drogas no estado de Pernambuco. Então, a porta de entrada, mais uma vez, não é pela saúde, não é pela assistência social, mas por uma política de direitos humanos e, a partir daí, se começa a trabalhar outras coisas, articulação com a saúde, enfim. Os dados mostram que esses projetos que não miram no problema da dependência química, digamos assim, mas na inclusão social, na oferta de direitos básicos e em outras coisas, conseguem ter muito mais sucesso em termos de produção de saúde do que projetos que focam exclusivamente em retirar droga. Então, acho que esses dois projetos hoje são exemplares. E é justamente um desses que está sendo destroçado em São Paulo. A violência toda de domingo é a marca brutal do fim do Programa De Braços Abertos.
Você considera que no Brasil tem uma política eficaz de prevenção ao uso de drogas?
Não, não considero. O tema da prevenção, inclusive, foi tema do meu mestrado, estudando justamente a produção do discurso de prevenção ao uso de crack no Brasil entre 2009 e 2011. Não diria que temos uma política porque quando a gente fala de política, parece que estamos falando de algo organizado a partir do Estado e, nesse sentido, a gente tem um vazio. Mas, por outro lado, temos práticas de prevenção espalhadas e aí é muito curioso. Isso é uma coisa que eu encontrei no meu mestrado, você não tem uma política articulada, tem discursos de prevenção, da parte do Estado, da sociedade civil, de grandes empresas de publicidade ou de mídia que resolvem fazer ações por iniciativa própria para entrar na conta de responsabilidade social. O curioso é que, independente de quem faça essas campanhas, tanto faz se é um governo de estado, uma prefeitura ou o governo federal, o discurso acaba sendo sempre igual, é o discurso que a gente em educação chama de pedagogia do horror. O conceito de promoção de saúde articula prevenção e cuidado. E o que a gente vê é uma desarticulação. Você vê discursos de prevenção que não apenas não são eficientes como também não conseguem produzir aquilo que eles queriam, ou seja, fazer com que as pessoas deixem de usar ou diminuir a vontade de usar, mas eles produzem outras coisas.
Por exemplo, o discurso preventivo brasileiro é pródigo na produção de estigma, de preconceito. O usuário é apresentado como burro ou, no caso do usuário de crack, que é a situação mais recente, como um zumbi, isso fica plasmado nas campanhas de prevenção. As campanhas sempre têm o mesmo estilo, são sempre imagens em preto e branco, o usuário de crack é apresentado como alguém maltrapilho, de roupas esfarrapadas, extremamente magro, olhos fundos, o corpo coberto de feridas, o mesmo tipo. Quando você pega uma foto dessas campanhas de prevenção e pega uma foto dos filmes de zumbi, você tem dificuldade de saber o que é o quê. É o mesmo tipo de maquiagem, o mesmo tipo de figurino, o mesmo tipo de cenário e tudo. É bem essa lógica: isso aqui é uma guerra para evitar que as pessoas usem, então vale tudo numa guerra, vale fazer qualquer coisa, inclusive usar de mentiras, do tipo, ‘o crack vicia na primeira dose’.
Esse é o tipo de discurso que foi muito repetido nos programas de prevenção ao crack aqui no Brasil e é uma mentira deslavada. Isso não existe, não existe nenhuma droga que seja capaz de fazer isso, viciar a pessoa na primeira dose. E é isso, é um tipo de campanha de prevenção que, por achar que está fazendo uma guerra, e na guerra vale tudo, ou seja, o objetivo é evitar que a pessoa use, mesmo que, pra isso, eu piore a situação de quem já usa. Esse é o ponto central: para tentar fazer com que as pessoas não usem, eu uso um tipo de discurso que, no limite, vai aumentar o preconceito, aumentar o estigma e produzir a ideia de que esse cara não tem salvação, de que uma vez que você usou, não tem mais saída e tudo mais. Então é isso, você tem uma separação brutal entre prevenção e cuidado, é como se as técnicas de prevenção não apenas não ajudassem como até atrapalhassem o trabalho de cuidado.
Como que você avalia a atual política de combate às drogas no Brasil?
No Brasil e, hegemonicamente falando, até no mundo, a política é caracterizada pela ideia de guerra às drogas. E ela se mostrou um rotundo fracasso apesar de que, dependendo do ponto de vista, não é um fracasso, ela é um sucesso. Se você achar que o objetivo dessa política de drogas é diminuir o uso, o consumo, o comércio, ela é um fracasso; mas se você entender que o objetivo é justificar estratégias de controle social, de repressão aos pobres, a determinadas parcelas da população, sobretudo a jovens pobres, nesse sentido, ela é um sucesso. É isso que a gente vê toda hora. Qualquer ação truculenta na Cracolândia ou numa favela do Rio de Janeiro, qualquer violação de direito, quando você usa a desculpa de que você está fazendo guerra às drogas, isso justifica qualquer arbitrariedade. As pessoas acham que se é para combater a droga, então está bom. Então é isso, essa política é um rotundo fracasso no que tange a atingir os objetivos ao qual ela se propõe, que é reduzir a produção e o consumo de drogas, no entanto, continua se insistindo nela porque ela é um sucesso para algumas outras coisas.
Que caminhos alternativos você aponta para a atual política de combate às drogas?
Eu acho que a gente hoje já tem, ao redor do mundo, alguns caminhos que permitem aprofundar um pouco a reflexão e pensar nos modelos existentes. Essa política de guerra às drogas é um fracasso, cada vez mais países do mundo se dão conta disso, mas isso não implica uma única resposta, você tem modelos diferenciados hoje. A gente poderia pegar quatro modelos como exemplo. A política alternativa mais antiga em vigência é a da Holanda, que é uma política de caráter liberal, como é a própria tradição daquele país, que tem um liberalismo avançado, com real respeito às liberdades individuais, enfim, um capitalismo humanizado, entre muitas aspas. Na Holanda tem os coffe shops, as cafeterias que vendem droga, desde os anos 1970. Outro modelo similar é o de alguns estados americanos - isso começou há muito pouco tempo lá - que têm uma política federativa em que os estados têm autonomia. E lá também se dá muito na ordem do capital, mas com viés de medicalização muito forte: para a pessoa poder adquirir algumas drogas, sobretudo maconha, ela precisa de uma receita médica. E a consulta médica é cara, é sempre privada e a maconha é muito cara também nesses lugares. Enfim, você tem ali algo da ordem do capital.
Em oposição, eu colocaria dois outros modelos, que me parecem bem diferentes. Um é o modelo português, que não está centrado na questão do capital, não está centrado na questão da liberdade individual, ainda que a reconheça, mas está centrado, sobretudo, na política pública de assistência social e de saúde. Lá não é legalizado, mas é descriminalizado. Portugal hoje é um país que articula uma política de descriminalização com uma ampla política de serviços de saúde e de assistência social para usuários de álcool e outras drogas. Acho que Portugal é um modelo bem interessante. E o último modelo, o mais radical que a gente tem atualmente, é o uruguaio, que é de legalização, mas que não está na ordem do capital liberal e não está preocupado em produzir uma demanda, como é a lógica do capital. É um modelo que está preocupado em atender uma demanda a partir da organização do Estado, quer dizer, o próprio Estado é que regula e disponibiliza a maconha em farmácia para as pessoas.
Então você tem hoje uma diversidade de modelos. E no Brasil tem crescido nos últimos tempos não só a defesa de outra política de drogas, mas a garantia de espaços onde a gente já começa a discutir também que modelo será esse. Me parece que mesmo com todo o reacionarismo brasileiro, quando a gente olha para o cenário internacional, fica parecendo cada vez mais insustentável a defesa dessa política radical e moralista. Em algum momento ela vai cair por terra, talvez seja pela mão do STF, como várias outras pautas morais, como a questão do casamento gay. Em algum momento isso vai acontecer e a gente precisa estar preparado e discutir que modelo a gente quer, se vai ser o modelo do capital, se vai ser o modelo da saúde.
Você poderia explicar como funciona a Política de Redução de Danos e quais seus principais benefícios?
A redução de danos chega ao Brasil pela primeira vez em 1989, na cidade de Santos (SP), que na época era um verdadeiro farol da Reforma Sanitária. Em 1989, um ano antes da promulgação da lei do SUS, Santos era uma cidade extremamente inovadora, enquanto os núcleos de pesquisa discutiam como ia ser a saúde, Santos já estava fazendo ações, em várias áreas, foi a primeira cidade a fechar manicômio e também a primeira cidade, até por necessidade concreta, a tentar implementar um programa de troca de seringas. Na época, Santos era a cidade com maior número de casos de AIDS, muitos deles associados ao compartilhamento de seringas entre usuários de drogas injetáveis. Então, Santos foi a primeira cidade a tentar fazer. Não conseguiu porque, na época, o Ministério Público não permitiu, mas começou efetivamente a acontecer no fim dos anos 1990, de modo clandestino, ainda nessa ideia da troca de seringas. E a redução de danos foi se desenvolvendo ao longo dos anos 1990 nessa esteira, compondo um repertório de respostas à epidemia de AIDS, fazendo parte desse esforço.
À medida que o consumo de cocaína injetável foi desaparecendo e o crack foi chegando, isso obrigou a redução de danos brasileira a se questionar, enfim, ou desaparecer ou se transformar, e aí ela acabou se transformando. E aí, nos primeiros anos do século 21, esse potente encontro entre a redução de danos que vinha lá do mundo da AIDS, com todas as suas especificidades, com participação das populações vulneráveis, enfim, quem produzia não apenas teoricamente, mas, inclusive, em atos. Os primeiros redutores de danos no Brasil eram usuários de drogas, muitos deles soropositivos para AIDS, eles é que eram esses operadores de campo, que iam para território, faziam o trabalho de promoção de saúde. Tem algo semelhante ao trabalho do agente comunitário de saúde: alguém que é da própria comunidade, só que a comunidade, nesse sentido, é de usuários, alguém que era reconhecido. A partir dos anos 2000, você tem o encontro dessa galera da AIDS com o povo da saúde mental e uma nova redução de danos começa a nascer. Eu chamo isso que emerge daí de uma redução de danos que é entendida como uma ética do cuidado, ou seja, ela não se caracteriza mais como um conjunto de procedimentos materiais muito objetivos, do tipo, ‘o cara usa injetável, eu dou uma seringa, eu dou água destilada’.
A partir desse encontro, ela se torna uma ética e essa ética pode ser resumida na forma de uma pergunta que é um desafio também: ‘como eu, como trabalhador de saúde, como nós, como equipe de saúde, como gestores da área de saúde, sustento o desafio do cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas, mesmo quando elas não querem ou não conseguem parar de usar?’. Sempre que a gente aceita esse desafio e tenta implementações para dar conta disso, de alguma maneira, a gente vai fazer redução de danos. E aí ela deixa de ser um conjunto de procedimentos objetivos e se torna uma ética que se expressa de mil maneiras diferentes, ela nunca para de se desdobrar e se transformar de novo porque para cada pessoa a gente vai pensar junto com ela estratégias diferentes, específicas para ela. E a gente vive, desde 2015, a partir do Atitude e do Braços Abertos, uma terceira onda da redução de danos brasileira, que eu chamaria de uma redução de danos profundamente impactada e próxima dos princípios da Reforma Sanitária e pelo conceito de saúde no qual a gente acredita.
E o Consultório de Rua também está dentro desse contexto da redução de danos?
Está dentro. Eu considero o consultório de rua como um filho muito potente da experiência brasileira com redução de danos. Os primeiros redutores de danos, que eram os usuários de drogas lá no ambiente da AIDS nos anos 1990, encontraram entraves desde o seu início e isso exigiu uma resposta que foi muito criativa e potente. O problema era o seguinte: a gente chegava para um usuário e dizia: ‘Olha, a partir de agora você tem direito a seringa limpa, então você pode ir ao serviço de saúde buscar sua seringa limpa’. Quando os caras diziam isso para um inglês, um holandês, os caras acreditavam, até porque o conceito de cidadania deles é muito sólido. Se alguém diz: ‘Você tem direito’, é claro, é óbvio. Quando a gente tentava fazer isso aqui no Brasil, o pessoal dizia: ‘O quê? Eu ir ao posto de saúde buscar seringa? Nem pensar’.
De modo que a gente acabou tendo que inventar um jeito de trabalhar os redutores de danos brasileiros dos anos 1990, que o que caracterizava o seu trabalho era muito menos o fato de eles fazerem troca de seringa e muito mais o fato de que eles faziam o trabalho de promoção de saúde no território junto das pessoas que usam droga, nos seus lugares de encontro, nos horários que essas pessoas usavam droga. Então, era muito comum os redutores de danos nessa época trabalharem, sobretudo, à noite, em lugares como prédios abandonados, matagais, embaixo de viadutos, enfim, nos lugares onde as pessoas se reuniam para usar droga. Lá estavam os redutores de danos. Então, o Consultório de Rua bebe dessa fonte, ele vai até onde o povo está. Ainda que ele opere uma dimensão de território, que, a meu ver, é menos potente do que aquilo que esses redutores de danos dos anos 1990 faziam porque o conceito de território com o qual a gente trabalhava não era apenas um lugar no mapa, era também um lugar no tempo, a gente sabia que chegar a uma determinada praça às três da tarde não era necessariamente chegar ao território, se o uso de drogas naquela praça começava apenas às nove da noite, ou seja, o território não era um pedaço de terra, era um acontecimento.
E isso me parece que o Consultório de Rua acaba perdendo, até pela institucionalização, pela burocratização, pelos limites do Estado. Porque esses trabalhos de redução de danos dos anos 1990 eram feitos, sobretudo, a partir de ONGs, que têm os seus problemas com relação à precarização, mas, por outro lado, permitiam muita ousadia no que tange à produção de técnicas de cuidado. O pessoal das ONGs era muito mais livre para inventar técnicas, inventar horários. Mas, guardadas essas proporções, o Consultório de Rua me parece um herdeiro dessa tradição de um modo de produzir cuidado para usuários de drogas no território. Acho que sim, ele faz parte, ele compõe esse conjunto político.
Qual a sua posição sobre a legalização das drogas, que já acontece em alguns países?
Eu defendo a política de legalização. Acho que em algum momento na história, a gente, enquanto humanidade, definiu que essas substâncias eram perigosas e achou que a melhor forma de lidar com isso era proibindo-as. Ou seja, você tinha um conjunto de problemas associado ao uso de drogas e aí inventa uma estratégia. Com o passar dos anos, essa estratégia se mostrou totalmente incapaz de resolver os problemas que já existiam e criou um conjunto novo de problemas. Antes, havia pessoas que faziam uso abusivo de drogas, que tinham problemas de saúde com relação a isso e tudo mais, e os problemas eram basicamente esses. Hoje, além disso, você tem problemas como bala perdida, tiroteio, disputa de território, com os ditos traficantes disputando território, trocando tiro, a corrupção policial, helicópteros com 450 quilos de cocaína... Você cria todo um outro conjunto de problemas.
E é importante que se diga isso: esses problemas não são da natureza da droga, são da natureza do modo como a gente organizou a política sobre drogas. Dito isso, sim, eu defendo a legalização, não porque eu ache que as drogas são inócuas, que elas são inofensivas, que não são perigosas, mas porque eu acho que proibir uma substância não apenas não resolve o problema como cria problemas novos. Eu tenho um amigo, Luiz Fernando Tófoli, professor de psiquiatria na Unicamp, que costuma dizer uma coisa que eu gosto muito: ‘O pessoal quer iniciar a discussão sobre legalização a partir da maconha, por ser mais estratégico. OK, eu concordo, mas, na boa, se fosse possível, eu gostaria que a primeira droga a ser legalizada fosse o crack’. E eu digo: ‘Mas, por que, Tófoli?’. E ele diz: ‘Pelo seguinte: se os usuários de crack são os mais vulneráveis dentre os usuários de drogas e se a criminalização só serve para aumentar a vulnerabilidade deles, então deveria ser por essa que a gente começa, porque a vida deles vai ficar menos pior com a descriminalização’. Então, sim, eu defendo a legalização. E insisto: não porque as drogas sejam inócuas, elas são perigosas, mas justamente por serem perigosas que não devem ficar na mão dos narcotraficantes, devem ficar na mão do Estado, devem ter regulação do Estado.
E por que você acha que não se discute sobre a legalização de todas outras drogas?
Acho que tem muito da carga moral, do estigma. Pense em nosso grupo de amigos, os que bebem, todos falam sobre isso, não tem problema, aí um pouquinho menos já, a maconha, isso varia de turma para turma, mas, enfim, de modo geral, os amigos não escondem. Agora, é muito possível que nós tenhamos amigos que usam cocaína enão contem para a gente, porque há uma carga moral, há um estigma. Então você tem tudo isso, você tem uma excessiva moralização que torna muito difícil. E é isso, é muito apavorante. Se as pessoas já têm medo da legalização da maconha, que dirá das outras drogas. Acho que até por isso, o movimento social acaba privilegiando a discussão sobre maconha, por ser, de todas as drogas ilegais, aquela que é menos estigmatizada.
Enfim, você tem aí uma cultura canábica, você tem lugares, clubes de usuários de maconha, tem toda uma cultura, as pessoas fazem camisetas, fazem brincos com a folhinha da maconha, você não vê isso com relação à cocaína. Tem todo um estigma que torna uma carga moral extremamente pesada. Quando a gente vai para o CAPS-AD, por exemplo, vê isso: reúne usuários de múltiplas drogas e pergunta: ‘Quem usa droga?’. Aí o alcoolista diz: ‘Eu não uso droga, eu uso álcool, quem usa droga é esse maconheiro aí’. Aí o maconheiro diz assim: ‘Não, a minha maconha é uma erva natural, não é droga, droga é cocaína’. Aí o cheirador: ‘Não, não, minha cocaína, não, droga mesmo é o crack’. E assim vai indo, droga é sempre aquilo que o outro usa, aquilo que a gente usa não é droga.
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'O usuário de crack talvez seja a mais brutal face da miséria urbana na contemporaneidade' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU