23 Abril 2020
"Você está pronto?" Alessandro pergunta. Tommy ainda está parado, mas não responde. Eu o vejo com a boca aberta, como quando observa as baleias ou os golfinhos, maravilhado como apenas os homens do mar sabem ser, quando, na solidão das travessias, encontram alguém que, no fundo, consideram, seu semelhante. Tommy está imóvel. Ele, sempre animado e pronto à brincadeira, subitamente ficou sério. Passa o binóculo para a gente: "Olhem". E indica para um ponto com o dedo. Enquanto isso, no navio Mare Jonio, todos olham para o radar. Ali também tem uma pequena mancha escura. Tommy está certo. Lá, no meio do deserto azul do Mediterrâneo central, há um bote pequeno e sobrecarregado: 30 pessoas. O motor falhou. Sua única esperança de sobreviver, hoje, aqui onde ninguém mais patrulha, se chama Mediterranea Saving Humans. São 30 pessoas fugindo do nada e da morte, que escaparam da tortura nos campos da Líbia. Como sacerdote, sei que, no fundo, a minha é a missão do "barco de Pedro". Mas eu nunca sonharia em subir em outro "barco de Pedro" um dia para que, juntamente com outros, nos tornássemos literalmente "pescadores de homens".
Assim começa a aventura e o relato de Dom Mattia Ferrari, um jovem sacerdote de Modena, com o navio da ONG Mediterranea. Uma bela aventura, uma maneira forte e exigente de testemunhar o Evangelho. Para ele, o compromisso de salvar os migrantes que atravessam esse trecho do mar é a realização do grande sonho do Papa Francisco: a Igreja como um "hospital de campanha". Nesse livro (“Pescatori d'uomini”. Ed Garzanti), escrito com o grande correspondente do jornal católico Avvenire, Nello Scavo, Dom Mattia nos conta como se desenvolve sua vocação para servir os mais pobres e últimos da terra. Nesta entrevista, ele aprofunda conosco o valor de sua história.
A entrevista é de Pierluigi Mele, publicada por Fronteiras, 19-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mattia, seu livro se lê de uma vez só, sem parar. É intenso, fiquei emocionado ao ler algumas páginas da sua vida. Você é muito jovem, mas já tem uma história importante. Então, vamos começar com uma primeira consideração: seu livro é um hino ao Papa João, que você descobriu através da amizade com monsenhor Loris Capovilla (que foi secretário de Angelo Roncalli). Pergunto-lhe por que a figura de João XXIII é tão importante para você, jovem sacerdote do século XXI?
Conheci a figura do Papa João na época do ensino médio, em 2012. Na escola, no colégio Muratori, estava experimentando a beleza e a importância da jornada da Igreja com todas as pessoas de boa vontade. Eu me reunia com colegas de aula, professores e colaboradores da escola, muitas vezes não crentes, mas animados por ideais profundos de humanidade e justiça. Juntos, imergimos no patrimônio cultural, literário, filosófico, científico e refletimos sobre o mistério da vida e as grandes questões que se alojam no coração do homem, graças às ferramentas muito preciosas que a literatura nos fornece. Assim, tornei-me cada vez mais consciente da importância e da beleza de compartilhar com todas as pessoas de boa vontade o caminho de descobrir o mistério da vida e construir um mundo melhor. A certa altura, me deparei com a figura do Papa João, graças às histórias de meus avós, que eram jovens nos anos de seu pontificado: fiquei impressionado com a forma como eles, comunistas, falassem com tanto carinho do bom papa. Então, quis começar a estudar sua figura e sua mensagem e nele encontrei justamente a ilustração da estrada que estávamos percorrendo no ensino médio. O Papa João nos mostrou que é possível nos abraçarmos, para além de nossas origens culturais e religiosas, e caminhar juntos. E esse caminho recuperou um novo impulso com o Papa Francisco.
A segunda consideração que quero fazer é a seguinte: no relato de sua vida, transparece uma grande serenidade, mesmo diante de momentos difíceis (por exemplo, a morte de seu querido amigo Fabrizio, um garoto dotado de extrema sensibilidade e com o grande dom da amizade) . Isso afeta o seu interlocutor. Onde está a raiz profunda disso?
Está em ter experimentado e continuando a experimentar o amor. Ver, sentir o amor, me fez entender que o mal nunca terá a última palavra. Existem sofrimentos, até grandes, mas o amor dá essa energia interior que dá força para continuar. Não apaga o sofrimento, mas ajuda a atravessá-lo. Minha família, escola, minha paróquia, o Mediterranea e muitas situações que conheci me mostraram que o amor sempre surpreende. Portanto, ao nos abrirmos para o amor, encontramos forças para continuar a jornada.
Vamos voltar ao seu livro. Achei o título belíssimo porque reúne sua vocação presbiteral com a de socorrista, juntamente com seus companheiros de Mediterranea, dos migrantes que atravessam o Mediterrâneo. Como você descobriu sua vocação para ser um "pescador de homens"?
Graças à amizade. Foram jovens Tpo e Labas, com quem somos amigos há anos, graças à amizade comum com os migrantes, que me arrastaram para essa aventura. E foi Luca Casarini, em nome de toda a tripulação, quem me convidou para subir a bordo. Eu nunca tinha pensado fazer isso na minha vida. Mas, justamente o amor sempre. E o grande amor que está no coração desses jovens, de Luca e dos outros membros do Mediterranea que os levou a embarcar nessa aventura e a me arrastar com eles, precisamente em virtude de nossa amizade, ou seja, do nosso amor.
Há belas páginas em seu livro: aquelas de seu encontro com os chamados "distantes". Nisto você é filho do Concílio Vaticano II. Em várias páginas, você agradece aos "distantes" porque recebeu deles um belo testemunho do Evangelho... Eu digo: é um belo paradoxo evangélico. É isso Mattia?
Sim, é um paradoxo evangélico. Mas é a beleza do evangelho. O Evangelho é acima de tudo uma substância viva, uma forma de vida. Mesmo aqueles que não professam a fé cristã podem vivê-lo, porque vive o Evangelho quem abre seu coração ao sentimento de "compaixão visceral" que impele para a ação e leva, nos diz Jesus, a viver uma vida plena. Muitas pessoas "distantes" da Igreja abriram seus corações a esse sentimento de "compaixão visceral" e me mostraram o evangelho vivido.
Sabemos que, por esse motivo, você recebeu críticas, inclusive fortes, não apenas dos ambientes de direita da Liga Norte e daquela neofascista, mas também dos ambientes católicos (ou supostamente tais). Para eles você é o "padre dos centros sociais". Como você responde às acusações?
As acusações que recebi me fazem sofrer quando mostram que quem as profere não entendeu o espírito com o qual meus companheiros e eu agimos. Mais do que as acusações contra mim, sinto muito pelas críticas feitas ao Papa Francisco sobre essas questões. O Papa Francisco é simplesmente fiel ao seu mestre, Jesus. Aqueles que criticam o Papa Francisco sobre essas coisas deveriam ter a honestidade intelectual e a coerência de criticar também Jesus.
Quais foram os momentos mais difíceis e mais bonitos da sua experiência como "Pescador de homens"?
O mais difícil foi em 2 de maio quando tivemos que ver as pessoas sendo mandadas de volta para a Líbia. A função dos navios de resgate no mar não é apenas salvar as pessoas, mas também testemunhar e denunciar o que está acontecendo: por esse motivo, se tenta criminalizá-las. Em 2 de maio, assistimos a uma conversa no canal de rádio em que ocorrem as comunicações internacionais, um diálogo entre uma aeronave europeia da operação militar EUNAVFORMED Sophia e a chamada guarda costeira da Líbia na qual a aeronave europeia sinalizava a presença de dois barcos migrantes e coordenava a intervenção dos líbios. Tentamos chegar lá primeiro, mas não conseguimos. O que foi feito pela Europa e pela Líbia, e o que aconteceu naquele dia é apenas um dos muitos casos, é da maior gravidade: mandar as pessoas de volta do local de onde elas fugiram, se a sua vida ou a sua segurança estiverem em risco, é uma violação do direito humano internacional à não repulsão. Foi um momento muito difícil: ver sua Europa fazer isso parte seu coração. Mas pelo menos, graças à nossa presença no mar, fomos capazes de denunciar tudo isso à opinião pública e à magistratura.
O momento mais bonito foi o do resgate: ver as pessoas resgatadas juntas, vindas de muitos países diferentes e sobreviver à morte por injustiça (porque é a injustiça que obriga as pessoas a empreender viagens tão perigosas) graças ao fato de que o pessoal da Mediterranea escolheram se opor à injustiça e se envolver pessoalmente, isso me mostrou que um mundo diferente é realmente possível.
Você personifica a "Igreja hospital de campanha" sonhado pelo Papa Francisco. No entanto, na Igreja existem fortes resistências, não apenas entre hierarquias, mas também, em algumas partes, dos leigos. Você acha que a revolução de Francisco seja irreversível?
Agradeço a você por essa definição: espero realmente ser capaz de encarnar a "Igreja hospital de campanha", mas sei que não faço o que deveria para conseguir. Existem muitos padres e muitos cristãos e cristãos que ainda fazem isso muito melhor do que eu. Espero que a revolução de Francisco seja irreversível, porque significa maior fidelidade ao Evangelho. O Papa Francisco não está fazendo nada além de ajudar a Igreja a ser mais fiel a Jesus. Voltar atrás em relação ao que ele está fazendo significaria trair o Evangelho. Acredito que continuaremos em frente também porque há muitos bispos, incluindo o meu (Erio Castellucci), Matteo Zuppi, Corrado Lorefice, Paolo Lojudice, Jean-Claude Hollerich e muitos outros (não menciono todos eles, porque seria uma lista muito longa) que estão perfeitamente inseridos nesse caminho. E há muitas mulheres e homens na Igreja que vivem o Evangelho com autenticidade e seguem o caminho que Francisco está traçando. Conheci algumas pessoas, entre as quais Giulia Ognibene e Manuela Di Grazia, que cito no livro, que me mostraram que na Igreja, em meio a resistências e dificuldades, sempre haverá quem vive com fidelidade o Evangelho.
Última pergunta: Estamos passando por um momento terrível: o da pandemia de coronavírus. O futuro será muito difícil. As dificuldades econômicas serão graves. O que você vê no horizonte: novos conflitos entre os pobres ou, em vez disso, um possível renascimento no sinal da solidariedade?
Espero sinceramente que saiamos desta pandemia, tendo realmente adquirido a consciência de que somos uma grande família humana e que ninguém se salva sozinho. Não sei se conseguiremos: por um lado, vejo muita solidariedade, mas, por outro, também vejo sinais preocupantes. O relativo silêncio da mídia com o qual nos últimos dias ocorreu a rejeição ilegal de 51 migrantes levados de volta à Líbia, a morte de 5 de seus companheiros por sede e 7 outros por afogamento no meio do mar, não muito longe de Lampedusa, não coloca em causa apenas responsabilidade de Malta e dos governos europeus, mas também de toda a sociedade civil. Enquanto nossa sociedade permitir que essas coisas aconteçam sem agir e sem levantar a voz para que essas tragédias criminais nunca se repitam, a mudança não terá acontecido. Mas o Mediterranea me mostrou que sempre haverá aqueles que lutam pela justiça ao lado dos menos favorecidos e que constroem um mundo melhor pessoalmente. Temos que recomeçar com eles. E toda vez que converso com meus colegas de Mediterranea, sinto a esperança renascer, porque, vendo o amor em seus corações, entendo que o amor resiste e vencerá.
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O Evangelho segundo Mattia. Entrevista com o Padre Mattia Ferrari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU