02 Setembro 2019
Nesta estação do ano, no Mediterrâneo, muitas vezes alguns peixes coiós são atingidos por uma rajada de vento e acabam por engano dentro dos barcos que cruzam a rota do seu cardume. E foi exatamente que, na quarta-feira passada à noite, Patrick, cinco anos, realizou o segundo dos dois sonhos com que havia partido do Gâmbia: ver um peixe pela primeira vez, um peixe de verdade. Ele nunca tinha visto um em sua vida. Para o primeiro sonho, chegar à Europa, ele teve que esperar mais 24 horas, até a noite de quinta-feira, para o transbordo dramático de mulheres e crianças ordenado por Salvini e executado em condições inutilmente extremas.
A reportagem é de Marco Mensurati, publicada por La Repubblica, 30-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há dois dias, a história de Patrick e do peixe coió continua vivo no navio Mare Jonio, criando muito tumulto. Assim que chegou a bordo, antes mesmo de tirar a camiseta do Real Madrid encharcada de gasolina e xixi, o menino já havia declarado aos socorristas a sua intenção de ver um peixe. “Le poisson, le Poisson”, continuava repetindo. Apontando para a água. E, para se fazer entender melhor, tinha jogado no mar uma corda que encontrara na ponte, segurando-a na mão como se fosse uma linha.
Demorou um pouco para lhe explicar que as coisas não eram assim tão simples. Mas a obstinação das crianças de cinco anos é notoriamente ferrenha, e, em poucas horas, Patrick havia envolvido todas as outras crianças, 22 no total, no seu projeto de pescaria, forçando a tripulação do Mare Jonio a inventar alguma coisa.
A ideia vencedora foi de Fabrizio Gatti, um dos socorristas: ele pegou um cartãozinho vermelho e começou a cortar muitas formas de baleias. Depois, escondeu-as pelo navio. Começou então uma surreal caça – ou, melhor, pesca – ao tesouro, com os peixinhos vermelhos escondidos entre os cobertores térmicos, os dourados e os prateados, ou entre as caixas de sais minerais, e com as crianças correndo e fazendo barulho no contêiner da popa, usado como enfermaria.
O engraçado era o comportamento dos outros náufragos. Alguns não conseguiam nem sorrir. Outros estavam literalmente irritados. O mais aborrecido de todos era aquele que, desde o primeiro momento, parecia ser um dos líderes do grupo, um camaronês de 46 anos, muito respeitado por todos os outros, e rebatizado, não por acaso, de “le grand chef”. Ele expulsava aquelas crianças com as mãos, como se fossem moscas, totalmente concentrado em suportar a sua dor. E ele tinha muitas dores, como depois descobriram os médicos a bordo.
Na Líbia, ele havia sido mantido durante dias em uma gaiola com alguns cães de guarda de cuja ferocidade ele ainda trazia as marcas inconfundíveis nas costas, nas nádegas, nas pernas. No fim, porém, ele também foi forçado a sorrir. Porque foi Ibrahim quem venceu a caça ao tesouro: um menino marfinense de quatro anos que não tem dois dedos da mão esquerda: ele perdeu os em um tiroteio na localidade da qual, depois de ver seu pai morrer, escapou junto com a mãe.
História semelhante à de todas as outras crianças a bordo: sim, porque – como só se descobriu depois de várias horas – a embarcação resgatada na terça-feira de manhã não era apenas o “bote das crianças”, como os jornais o chamaram. Era também o “bote dos órfãos”. Ninguém tinha pai. Pelos motivos mais díspares: alguns são filhos da violência sexual sofrida pela mãe, outros de casamentos forçados, outros ainda simplesmente órfãos de algumas guerras, como Ibrahim.
O efeito da “pesca ao tesouro” naquela pequena creche passou logo. Depois, Patrick e os outros começaram de novo com a história do peixe de verdade. Que milagrosamente subiu a bordo, sozinho, pouco antes do pôr do sol. Como um presente.
Naquele momento, Patrick estava com Ibrahim na ponte, olhando o fundo do mar e, de repente, se deparou entre os seus pés com esse estranho animal alado. O pequeno começou a pular e a gritar, primeiro de medo e depois de alegria. E, finalmente, convencido pela mãe, jogou-o de volta ao mar.
Patrick havia concordado com Gatti que, no dia seguinte, organizariam outra “pesca de tesouro”. Mas não foi possível. Tendo chegado a 21 quilômetros de Lampedusa, o mar subiu de repente e, do céu, começou a cair uma chuva fina e feia. A Capitania dos Portos, tendo ouvido os representantes políticos, recusou-se a conceder ao Mare Jonio a permissão não apenas para entrar nas águas nacionais, como decretado por Salvini (Toninelli e Trenta), mas também simplesmente para se abrigar do vento.
Uma medida inexplicável, à beira do sadismo. As crianças, assim, começaram a chorar todas juntas e a vomitar. O mesmo aconteceu com as suas mães, abaladas não apenas pela náusea e pela fadiga, depois de três dias em um bote, mas também pela preocupação com os seus filhos, a cujo destino decidiram não dar trégua.
E não deram trégua até o fim, já que o transbordo – prometido para as 11h e realizado às 21h – foi necessariamente realizado em alto mar, em condições de total insegurança, com um exército de crianças, mulheres grávidas e velhos doentes (64 no total) forçados a pular no escuro de um rebocador para um bote jogado pelas ondas de dois metros de altura, tudo diante dos olhos petrificados dos marinheiros da Guarda Costeira.
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Na pele das crianças náufragas no Mediterrâneo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU