O mal-estar que permeia o mundo desde a crise econômica de 2008 ganhou contornos ainda por serem definidos. Em outubro de 2019, milhões de pessoas saíram às ruas, tanto em países ditos de Primeiro Mundo quanto de Terceiro. Os eventos simultâneos, movidos por suas especificidades, se coadunaram em uma população mundial que não suporta as políticas do establishment político e econômico. Para Vladimir Safatle, é mais do que isso, “elas recolocam em circulação a experiência da luta de classes e de recusa a ser governado por quem tem compromisso com políticas de empobrecimento”.
As consequências variadas das insurgências são causadas pela mesma insatisfação com o sistema econômico e político. O mês de outubro de 2019 apresenta esse sistema como um imenso pavio que foi aceso. Para Eduardo Febbro, jornalista argentino, "estamos vendo a convergência de povos muito distantes que recorrem para reativar a vigência da igualdade, da justiça social, da democracia ou da proteção do planeta". As explosões decorrem, em cada parte, por populações insatisfeitas e esgotadas pelo mais do mesmo. Os resultados, alguns que já começam a aparecer, podem formar novas composições de forças e de ordens internas, que fazendo parte do mesmo sistema, poderão dar uma nova configuração a este. Há um outro mundo por vir depois das chamas.
Nessa reportagem, destacamos as insurgências mundiais de outubro, que começam a dar novas luzes, ou novas sombras, a um mundo ainda em claro-escuro (chiaroscuro).
Mapas animados: Jonathan Camargo
Um simples aumento da tarifa do metrô foi o basta para uma população que sequer consegue ter uma aposentadoria digna. No Chile, as manifestações de outubro expressaram um acúmulo de descontentamento de, pelo menos, 30 anos. A insurreição popular que começou em Santiago se espalhou para todas as cidades do país. O ponto mais alto se deu na sexta-feira, 25-10, quando mais de um milhão de pessoas se reuniram na Plaza Italia, centro da capital chilena.
Imagem de manifestante com bandeira Mapuche no topo de estátua militar em Santiago se tornou símbolo dos protestos no Chile. (Foto: Susana Hidalgo)
As manifestações ainda não acabaram, mas o governo de Sebastián Piñera já revogou o aumento da tarifa do metrô, demitiu todo seu gabinete de ministros e cancelou as duas cúpulas internacionais que o país receberia no final do ano – Fórum da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC) e a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP25).
Os milhões de chilenos desafiaram o estado de emergência e o toque de recolher. A violência do Estado já deixou mais de 20 mortos, 1300 feridos e 4270 presos. Os protestos não cessaram com nenhuma das medidas apresentadas pela presidência. A reivindicação é por uma nova constituinte.
⭕ [Última actualización] Cifras recopiladas directamente por el INDH en observaciones a manifestaciones, comisarías y hospitales desde el 17 de octubre hasta hoy a las 23:00 horas. pic.twitter.com/ITgXRpWcFb
— INDH Chile (@inddhh) October 31, 2019
No Equador, as rebeliões contra o governo de Lenín Moreno se iniciaram com o decreto 883, que retirava o subsídio sobre os combustíveis. Foram duas semanas de intensa mobilização, de 3 a 13 de outubro, com greves lideradas por estudantes e comunidades indígenas. O decreto fazia parte de um acordo do governo equatoriano com o FMI.
A conquista dos equatorianos que foram às ruas foi a revogação do decreto. No entanto, as marchas foram violentamente reprimidas pelo Estado. Na quinta-feira, 31-10, noticia-se no Equador que as Forças Armadas receberam o aval de procurar e reprimir novos grupos insurgentes.
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A Bolívia foi às urnas no dia 20 de outubro de 2019 para a eleição presidencial. No entanto, as eleições começaram em 2016, quando Evo Morales convocou um referendo para alterar a regra da reeleição na Constituição. Em busca de um 4º mandato consecutivo, Evo perdeu no referendo, mas recorreu à Corte Boliviana, que interpretou como um direito humano participar de processos eleitorais. Assim, em dezembro de 2018, o Movimiento al Socialismo - MAS apresentou novamente sua chapa presidencial com Evo Morales e Alvaro García Linera.
A oposição não recuou, o movimento pelo 21F (21 de Fevereiro, em alusão à data que ocorreu o referendo) está nas ruas desde 2016 para que faça valer a decisão da consulta popular. Mas o estopim das manifestações ocorreu com a apuração dos votos na noite de domingo, 20-10.
As primeiras previsões apontavam para um segundo turno entre Evo Morales e Carlos Mesa, até chegar aos 83% dos votos apurados, quando houve um "apagão" na contagem, devido à distância das urnas que estavam nas comunidades rurais. A maior parte dos eleitores de Morales estão justamente nas comunidades indígenas da região Andina. À medida em que as urnas distantes chegavam, a tensão aumentava, até a conclusão da apuração revelar que Evo obteve 47% dos votos totais, contra 36% de Mesa, caracterizando assim vitória em primeiro turno.
A Bolívia inciou então sua convulsão social. Mesa não reconheceu o resultado das urnas e acusa de fraude, tanto da apuração quanto da própria candidatura do atual presidente. Evo convocou a Organização dos Estados Americanos para auditar as eleições. Mas o país está "sitiado". Estradas foram bloqueadas, sobretudo na região de Santa Cruz de la Sierra, greves cívicas foram convocadas em todo o país. Nenhuma das partes dá qualquer sinal de ceder sua posição.
Abiy Ahmed recebeu o Prêmio de Nobel da Paz em 11 de outubro de 2019, por cessar o conflito da Etiópia contra a Eritreia. O primeiro-ministro etíope, que está no cargo desde de abril de 2018, tem inciado uma série de reformas de liberalização política e econômica. No entanto, a "fratura étnica" do país tem se acentuado. Manifestantes saíram às ruas acusando Ahmed de perseguir o ativista político Mohamad Jawar. Nas ruas queimaram livros do último vencedor do Nobel da Paz. A repressão policial foi violenta, contabilizam-se mais de 70 mortes em uma semana de protestos.
Foto: Thaler al Sudani | Al Jazeera Iraq