25 Outubro 2019
"Temos visto um ponto de inflexão nos protestos em Hong Kong, e aparentemente o governo tem ganhado vantagem, pois está prestes a transformar o movimento dos manifestantes em uma vitória publicitária enorme para Pequim".
O artigo é de Francesco Sisci, sinólogo italiano e professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China, publicado por Settimana News, 23-10-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Temos visto um ponto de inflexão nos protestos em Hong Kong, e aparentemente o governo tem ganhado vantagem, pois está prestes a transformar o movimento dos manifestantes em uma vitória publicitária enorme para Pequim.
Os protestos deste fim de semana atraíram mais de 200 mil pessoas, número muito abaixo dos dois milhões que se juntaram às primeiras marchas. A violência tem crescido. A polícia está começando a ficar mais hostil. Circulam acusações de torturas, e os manifestantes radicalizaram-se com os ataques às forças policiais e com a depredação de propriedades públicas.
Isso tudo tem afastado as pessoas mais ainda. No começo, a maioria dos habitantes de Hong Kong estavam firmes no apoio ao movimento e inclusive toleravam atos pontuais de violência, mas agora muitos estão menos animados, com medo de ser pegos entre a violência da polícia e a dos radicais.
O movimento parece sem rumo e não apenas porque não há uma coordenação. Até mesmo simpatizantes e apoiadores não conseguem traduzir uma mensagem política clara para as manifestações. Por que os protestos continuam? Qual o objetivo? Como atingi-lo concretamente?
Os protestos começaram contra um projeto de extradição proposto que permitiria que Pequim prendesse pessoas em Hong Kong e as levasse de volta para a China. Pequim buscou aprovar a proposta para impedir que o território (Hong Kong) se transformasse em um potencial trampolim para a revolução na China propriamente. O projeto foi suspenso e ontem (22 de outubro) foi derrubado – portanto, uma vitória para o movimento. Na sequência, o movimento deveria ter parado ou, no mínimo, pausado para se reagrupar e repensar. Ele não o fez, e talvez resida aí o problema.
Ele não parou talvez simplesmente porque o gênio da “fúria de Hong Kong na China e a maneira como ele tem administrado o território há décadas” estava fora da lâmpada e não queria voltar para dentro dela.
Esta fúria está direcionada também aos magnatas locais que, por décadas, têm ficado do lado dos interesses públicos e privados de Pequim em vista de seus próprios lucros privados, ao mesmo tempo em que ignoram totalmente o bem-estar da cidade e seu povo. São grupos de interesses massivos, estreitamente interconectados com a estrutura velada e aberta de poder pequinês. É bastante difícil reformá-la sem também alterar profundamente a organização política e econômica da China. E mesmo se acontecesse, a mudança objetivamente levaria muito tempo, já que a estrutura tem trabalhado com imensas ramificações por uns 40 anos. Esses interesses sufocam qualquer mobilidade social para os jovens que permanecem no degrau mais baixo da escada social.
A outra questão é a democracia. Hong Kong é uma sociedade livre, mas sem democracia. Algo assim só funciona se tudo estiver basicamente bem, mas quando há problemas, se esta liberdade não for canalizada para os meios políticos que podem modelá-la de forma construtiva, então as coisas se perdem. É um problema estrutural: ou Hong Kong perde a sua liberdade e, portanto, o seu status de uma importante bolsa de valores – onde a liberdade é necessária para funcionar –, ou torna-se razoavelmente democrática. A China pode não querer perder a Bolsa de Valores de Hong Kong, que é uma importante válvula de segurança entre a economia fechada chinesa e a economia aberta global. Os manifestantes deveriam, pois, negociar visando uma estrutura democrática em Hong Kong que fosse aceitável tanto para Pequim como para o mundo exterior – caso contrário, o território perderia o seu status.
Aparentemente, as lideranças dos protestos não vem falando sobre isso. Elas estão mais preocupadas com as acusações e contra-acusações de violência entre a polícia e os manifestantes. Talvez – quem sabe – estes sejam detalhes justos.
Sem uma análise política ampla por parte dos manifestantes, Pequim vem ganhando vantagem política. As manifestações em curto prazo e o emprego relativamente restrito da força pela polícia tem provado alguns pontos para o público chinês e para muitos observadores asiáticos, que tradicionalmente não são grandes fãs da “democracia ocidental”. Pequim pode argumentar que estes protestos não vão resultar em nada e que têm causado estragos e destruição da riqueza em troca de sonhos impossíveis de se realizar.
Esta linha de argumentação, que pode não encontrar muita tração no Ocidente, pode edificar um crescimento cada vez maior em Hong Kong, na China e na Ásia para a forma como Pequim tem lidado com a crise, e também para deslegitimar os protestos. Aí então, Xi Jinping, que achou um jeito de resolver o problema, poderá já ter alcançado uma enorme vitória.
Estas reflexões não descartam que as coisas tomam um caminho diferente no futuro. O movimento pode se tornar completamente violento, e Pequim poderia reprimi-lo com mais força, deixando Hong Kong em chamas. Mas, por enquanto, algo assim não acontece e, com razão, não é de interesse de ninguém, pelo menos nas próximas semanas e meses.
Isso ainda brinda Pequim com o problema de abordar os complicados grupos de interesses em Hong Kong e canalizar a liberdade local para dentro de uma democracia política viável, que só pode ser ocidental, como o sistema econômico do resto do mundo. Depois da repressão de Tiananmen em 1989, Pequim apresentou uma solução política de longo prazo para os seus problemas. Os jovens que nada tinham e queriam participação política receberam a chance de fazer dinheiro por qualquer meio e ter liberdade social e sexual em troca de se manterem longe da política. Eis um novo pacto social e que funcionou; essas energias revolucionárias alimentaram o crescimento chinês por três décadas. O pacto de Tiananmen rompeu-se com a campanha anticorrupção que estipulou que “tornar-se rico por qualquer meio” não é mais sustentável. Pequim deveria, então, apresentar um novo pacto político para o crescimento da classe média que se sente desconfortável com o antigo modo de fazer negócios e com o novo que ainda precisa tomar forma. Mas a China é um grande mamífero, pode esperar alguns anos. Hong Kong é muito menor, a situação é mais explosiva e algo precisa ser feito em breve.
Qual é o novo pacto social para Hong Kong que Pequim está a apresentar? Como Hong Kong é uma ponte entre a China e a economia mundial, esse pacto deve ser um novo pacto político, a satisfazer a nova situação mundial (onde a guerra comercial americana é somente a ponta do iceberg de um descontentamento cada vez maior) e a nova situação na China (onde o pacto pós-Tiananmen foi rompido).
Estes são problemas para os próximos meses ainda.
No curto prazo, a vitória de Xi Jinping abre uma oportunidade política massiva para ele. Ela prova a viabilidade da “solução Qiao Shi” proposta pelo movimento de Tiananmen em 1989. O pai de Xi, Xi Zhongxun, supostamente esteve ao lado dessa solução. Se tal proposta tivesse sido seguida, a história dos últimos trinta anos poderia ter tomado um rumo diferente, o que pode ter grandes repercussões hoje.
É este o contexto que o movimento de Hong Kong talvez não deva ignorar e que deveria ser capaz de contribuir neste nível. Em jogo está não só Hong Kong, mas o destino da China e do mundo.
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A vitória de Pequim em Hong Kong e os seus problemas de longo prazo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU