08 Janeiro 2019
“O modo como os chineses e a China viam a si mesmos e seu ‘país’ mudou depois de uma crise histórica que remodelou a sua visão de mundo. As crises são político-culturais, mas foi o reexame cultural de si mesma que historicamente desencadeou as diferentes novas ‘Chinas’ que encontramos em seus 3.000 anos de história.”
O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China. O artigo foi publicado por Settimana News, 29-12-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O que é a China e o que é Zhongguo? As duas palavras são casualmente traduzidas uma para a outra do chinês para o inglês e as línguas ocidentais, a tal ponto que não vemos a diferença entre as duas.
No entanto, aquilo que agora percebemos como a “China” que se torna “Zhongguo” é uma questão de suma importância para o lugar e o papel da China no mundo atual e para o futuro desenvolvimento do país.
É uma questão de identidade e destino, aquilo que o país quer e vai querer fazer, e como o resto do mundo, especialmente o mundo ocidental agora dominante, lidará com isso. E é extremamente importante para o resto do mundo poder lidar eficientemente com o país e evitar erros dispendiosos da “China” e do mundo.
Esse talvez seja o tema não dito da obra-prima filosófica de Ge Zhaoguang, An Intellectual History of China [Uma história intelectual da China], que foi recentemente publicada em inglês, e do seu What is China? [O que é a China?].
O professor Ge tenta rastrear pela primeira vez a história das diferentes Weltanschauung – visões de mundo – na história da China, o que, em si mesmo, é uma visão completamente diferente da história do país.
Nos anos 1920 e 1930, sob a influência ocidental, a China revolucionou completamente o modo como se via. A “História da filosofia chinesa”, de Feng Youlan, “O desenvolvimento do método lógico na China antiga”, de Hu Shih, e “A história do pensamento político chinês”, de Hsiao Kong-chüan, por exemplo, foram fundamentais para “rearranjar” as visões chinesas do seu conhecimento de acordo com categorias próprias do pensamento ocidental.
De fato, conceitos como “filosofia”, “lógica” e “pensamento político” não existiam na China antes da influência massiva do pensamento ocidental há um século. Portanto, o trabalho desses acadêmicos chineses formados nos Estados Unidos reorganizou o modo como os chineses viam seu conhecimento e contribuíam com algumas importantes ideias que ajudaram o Ocidente a se ver de maneira diferente.
Por exemplo, Feng traçou a origem das diferentes formas de pensar nos diferentes contextos geopolíticos. Os gregos antigos eram comerciantes e marinheiros, e o seu espaço era o Mar Mediterrâneo; os chineses antigos eram agricultores, e o seu espaço, por sua vez, era a planície do Rio Amarelo. Esses dois ambientes diferentes deram origem a tradições distintas.
Mas algo mais importante estava em andamento, sugere o professor Ge, algo que havia acontecido antes na história da China: o modo como os chineses e a China viam a si mesmos e seu “país” mudou depois de uma crise histórica que remodelou a sua visão de mundo. As crises são político-culturais, mas foi o reexame cultural de si mesma que historicamente desencadeou as diferentes novas “Chinas” que encontramos em seus 3.000 anos de história.
“China-Zhongguo” é em si um novo conceito. Como o professor Ge aponta, a ideia de equacionar aquele que é aproximadamente o país da China com Zhongguo veio do jesuíta Matteo Ricci por volta do ano 1600. Certamente, a palavra Zhong guo existia antes. Ela é encontrada pela primeira vez na literatura antiga, significando os Estados (Lu, Song…) da planície central como o berço original da cultura e em oposição aos então novos Estados maiores (Qin, Chu…) que emergiam ao redor da planície do Rio Amarelo.
Encontramos a palavra Zhongguo novamente durante os primeiros séculos da era cristã, apontando às vezes para a Índia como o país que é a origem da nova cultura e religião do budismo que estava varrendo a China e a Índia naquela época. O termo surge mais uma vez durante o período Song do Sul, como definição do que restava do Estado Song no sul, enquanto o reino Khitan que derrotou o Song ocupava o norte.
Em todos os outros tempos, a China não era Zhongguo; era simplesmente Tianxia, tudo o que está debaixo do céu. Zhongguo dos Song era um reconhecimento do colapso da unidade de Tianxia e uma admissão de que os Khitan faziam parte do “mundo chinês” de Tianxia.
É claro que os antigos chineses sabiam que o resto do mundo existia e que havia outros países fora do governo do Filho do Céu, o imperador. A questão é que eles pensavam que o resto do mundo não importava; era irrelevante. A ideia de irrelevância estrangeira foi reforçada pelas barreiras físicas que isolam a China do resto do mundo: os desertos no noroeste, as altas montanhas e as florestas impenetráveis no sul, e o oceano a leste.
Além disso, todos os vizinhos da China eram considerados culturalmente inferiores aos chineses; portanto, havia objetivamente pouco interesse em lidar com as culturas estrangeiras. Também era extremamente difícil tentar expandir em qualquer uma dessas direções. As estepes do norte eram escassamente povoadas, e era difícil sustentar uma presença estável ali, uma sociedade agrícola com a organização da China. Havia uma situação semelhante no sul e no leste.
Nesse isolamento, a China simplesmente via a si mesma como a única entidade relevante. Os chineses também não se identificavam ao longo das linhas étnicas usadas na sociedade ocidental naquela época, mas sim de acordo com a cultura. Eles eram os Huaren, o povo florido, bem versado na cultura tradicional, qualquer que fosse a sua origem.
Mesmo assim, a contribuição de Ricci, que mudou a forma como os chineses se viam no mundo e como eles viam o mundo, surgiu como o desenvolvimento de uma tradição “chinesa”, diz Ge. Os chineses mudaram suas visões de mundo muitas vezes no passado. A mais antiga que podemos encontrar foi nos tempos de Shang-Zhou; depois, com o colapso do “império” Zhou, veio a era de ouro do pensamento chinês com seus filósofos tradicionais. A partir de então, Ge Zhaoguang acompanha a evolução e as mudanças dramáticas de visão de mundo, refletindo as mudanças dramáticas do império.
Por trás da continuidade da cultura e da tradição, a China mudou drasticamente o modo como percebia a si mesma. Na segunda metade do primeiro milênio a.C., por exemplo, os Estados guerreiros “chineses” viam a si mesmos como parte de uma comunidade (koiné), mas certamente esses Estados também eram extremamente ciumentos em relação à sua independência. Essa visão se modificou com a unificação dos Qin e dos Han, que, em cerca de 400 anos, começaram a moldar um senso comum talvez sem precedentes de pertencimento a uma unidade.
No entanto, o budismo talvez tenha sido uma mudança ainda mais dramática para a China-Tianxia, que levou quase mil anos para ser digerida. Ela ocorreu após a queda do Império Han e no rastro de séculos de guerras que reduziram a população chinesa possivelmente a dois terços.
A China-Tianxia teve que se aproximar de um novo modo de raciocínio, que pudesse permitir que ela vivesse com todos esses massacres, deixasse-os para trás e encontrasse um novo caminho para a nova unidade imperial do século VII, sob a dinastia Tang.
Foi uma longa tentativa em que o budismo – no início, um modo de pensar completamente estrangeiro – integrou-se à cultura preexistente mediante um raciocínio complexo, que forjou formas chinesas de verem a si mesmos a ponto de até mesmo os chineses modernos não poderem dizer agora que não são budistas.
Na realidade, um novo livro, que não tem nada a ver com a China, nos ajuda a entender melhor a referência de Ge Zhaoguang a essa tentativa de raciocínio que moldou o país. Em The Enigma of Reason [O enigma da razão, em traduçã livre] (2017), Hugo Mercier e Dan Sperber argumentam que o principal objetivo da razão e do raciocínio é social, para construir um consenso em uma comunidade por meio de argumentos. Eles dizem que “a razão é mais eficiente para avaliar bons argumentos do que para produzi-los: quando os argumentos estão aí, a comunidade científica é capaz de elevar o status de uma nova teoria da margem para material didático em poucos anos”.
Em uma sociedade muito tradicionalmente unida, como a China tradicional, a “razão criativa” que produz novos argumentos deve ter se mostrado ainda mais difícil. Isso por dois motivos. Para criar uma “nova razão” e usá-la para convencer os outros, o raciocínio tem que sair da trilha antiga e voltar ao raciocínio original, tentando curvá-lo para novas direções.
O novo pensamento dos monges indianos que espalhavam a sua religião para leste conseguiu conquistar os corações e as mentes das pessoas comuns, primeiro absorvendo a religião popular taoísta pré-existente e depois encontrando maneiras de coexistir com os rituais confucianos estatais que se tornaram dominantes novamente com a reunificação do Império.
De certa forma, os jesuítas que foram à China cerca de 15 séculos depois do budismo estavam tentando fazer o mesmo, e possivelmente Ricci constatou que havia uma crise na China, que se mantinha afastada e distante da maciça revolução geopolítica iniciada com a descoberta do continente americano.
Foi isso que Ricci fez, de acordo com Ge Zhaoguang, quando ele primeiro se converteu a “chinês” e, depois, quando foi reconhecido como uma pessoa culta e florida, portanto Huaren (chinês, como diríamos agora), ele explicou que pertencia a uma civilização diferente, mas igualmente refinada, a europeia.
Essa abordagem, por sua vez, desencadeou a curiosidade da corte chinesa para tentar entender o que era o mundo de acordo com os chineses/Huaren/não chineses. Os interesses dos Ming também podem ter sido estimulados pela sua inclusão no fluxo global de prata a partir do México e a revolução agrícola que levou batatas, pimentas e amendoim para Pequim. Como muitos historiadores argumentaram, a prata mexicana, na realidade, resgatou a dinastia Ming de uma severa crise econômica no século XVI, e, depois, sua má administração levou à sua queda algumas décadas depois.
Na época, quando a corte Ming estava considerando o que fazer com o comércio da prata portuguesa, Ricci, com sua nova visão de mundo, na verdade, estava contribuindo para explicar de onde vinha o novo comércio e o que ele significava. Em retrospectiva, se o imperador realmente tivesse entendido a mensagem de Ricci – o fato de os Ming terem ativamente participado e administrado a nova ordem mundial que começou com o comércio americano –, talvez a dinastia pudesse ter sido salva.
No entanto, para a corte imperial de Pequim, essa não era uma ameaça imediata a ser enfrentada. As fomes e as rebeliões que se alastravam no país no início do século XVII pareciam mais ligadas às tradições passadas de levantes populares.
A ameaça real, como muitas vezes nos últimos milênios na China, vinha do norte, com a tomada dos Manchu da China/Tianxia, que ocorreu apenas cerca de 30 anos depois que Ricci faleceu na capital chinesa.
O objetivo de produzir um novo senso da razão, que se obtém a partir do argumento de Hugo Mercier e Dan Sperber, é fortalecer o grupo, como alimento para a mente, que fortalece o grupo, especialmente em momentos de crise quando o grupo está perdendo coesão.
Mas esse não é apenas o trabalho da razão intelectual, mas também a capacidade de mover os outros emocionalmente, que, na verdade, é o modo como a razão pode ser mais bem compreendida na China. Emoção e razão parecem ser dois lados da mesma moeda.
Então, em comparação com outras crises, o colapso político/cultural no século XIX, com as potências ocidentais forçando seu caminho na China, foi um choque muito mais difícil de digerir do que as sangrentas guerras que começaram com a queda da dinastia Han no século III d.C. e o influxo do budismo e de outras religiões da Ásia do Sul e Central.
A derrota pelas mãos dos japoneses, desprezados por mais de 1.000 anos, em 1895, e subsequentemente a incontroversa derrota pelas mãos das potências ocidentais no levante dos Boxer de 1900 levou a China a um estado de choque do qual ela talvez ainda esteja se recuperando.
O professor Ge termina seu livro observando que, “em 1895, Yan Fu (...) publicou o seu ‘Sobre a Origem da Força’ (Yuanqiang); esse título também expressava o caminho escolhida por esses intelectuais: somente ‘riqueza e poder’ poderiam lidar com sucesso com a enorme ‘mudança mundial’, somente o fato de enfrentar essa grande mudança, sem precedentes em 2.000 anos de história chinesa, poderia garantir a herança racial da nação que não seria cortada. A fim de alcançar esse objetivo prioritário, a China tinha que aceitar o caminho ocidental para a modernização”.
Essa é uma questão que ainda atormenta a China. E, no entanto, esse mesmo livro talvez forneça um caminho a seguir. Ge Zhaoguang absorveu totalmente as modernas formas ocidentais de ver as coisas – talvez Foucault seja uma de suas mais fortes inspirações –, mas depois ele as funde com uma típica visão chinesa tradicional, olhando para as coisas em um espelho amplo. Nada semelhante existe para a cultura ocidental – não há uma história da Weltanschauung ocidental explicando a crise do Ocidente. E, mesmo assim, o Ocidente deveria reconsiderar profundamente como ele chegou a ser o que é agora. É claro que o Ocidente mudou desde os tempos greco-romanos até agora.
Os desafios culturais/políticos que o Ocidente enfrenta agora também são sem precedentes e deveriam ajudar a reconsiderar o que realmente tornou o Ocidente aquilo que ele é. Por exemplo, um elemento muito negligenciado agora é a influência chinesa, através das traduções dos jesuítas, na criação de novas ideias e conceitos que acabaram inspirando tanto as ideias de Adam Smith sobre o mercado moderno na Grã-Bretanha, quanto o movimento do Iluminismo na França.
Então, ao contrário do trabalho de Feng Youlan ou de Hu Shih quase um século atrás, o trabalho de Ge poderia ser uma verdadeira inspiração para reconsiderar a história intelectual do Ocidente de uma nova maneira. Desse modo, Ge poderia ser realmente uma das primeiras contribuições que, embora profundamente mergulhada na cultura chinesa, também consegue sair dela. Em outras palavras, talvez também para a China, aceitar a realidade das mudanças e se adaptar ativa e positivamente a elas ajuda o mundo a reconhecer e a receber a China.
Nota de IHU On-Line: Sugerimos ver o vídeo, com legenda em português, intitulado 'Is war between China and the US inevitable? | Graham Allison'.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU realizará, no dia 7 de maio de 2019, das 8h30min às 22h, o "Ciclo de Estudos A China e o mundo. A (re)configuração geopolítica global". Saiba mais informações e faça sua inscrição aqui.
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Visões da China. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU