05 Abril 2019
"Dentro ou fora da Igreja, a pedofilia está associada à noção distorcida de poder que encontra fetiche na vulnerabilidade da vítima".
O artigo é de Luís Corrêa Lima, padre jesuíta, professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de pessoas LGBT.
A Igreja Católica foi duramente afetada pelos escândalos de abuso sexual de menores cometido por sacerdotes. Estes vieram à tona com mais intensidade nas últimas duas décadas, em ondas de denúncia sem precedentes que tiveram ampla cobertura nos meios de comunicação. Em alguns países os efeitos foram bastante devastadores. Convém dizer o que se pode aprender com esta tragédia, bem como evitar que se criem bodes expiatórios, equivocadamente responsabilizados e penalizados por aquele mal.
Os casos denunciados ocorreram nos últimos setenta anos. Por mais antigos que sejam, deixam feridas profundas e dolorosas na vida das vítimas. Nestes delitos, as autoridades da Igreja não comunicaram os casos de abuso ao poder civil. Muitas vezes preferiram acordo com as vítimas e seus familiares, mediante indenização, e a remoção dos padres acusados, que se diziam arrependidos e eram encaminhados a tratamento psicológico. Muitos destes padres, transferidos para outros locais, reincidiram inúmeras vezes até que tudo fosse denunciado com grande indignação e dor.
Pode-se ver aí um resíduo da cristandade, dos tempos do Estado confessional cristão. Resolvia-se o problema no âmbito interno da Igreja, que deve proceder como uma família. No máximo se recorria ao tribunal eclesiástico para julgar crimes cometidos por clérigos. Contudo, a questão não ultrapassava a fronteira eclesial. Este procedimento que perdurou até o final do século XX é, no fundo, uma recusa à modernidade, à lei impessoal e igual para todos. Também concorreu para isto um parecer de psicólogos apresentado aos bispos norte-americanos em 1992. Acreditava-se que a pedofilia pudesse ter cura, e que se deveria dar chance aos sacerdotes envolvidos.
A partir do pontificado de Bento XVI, houve mudanças importantes na Igreja no enfrentamento destes delitos. Os procedimentos em caso de denúncia foram unificados e preveem o encaminhamento à Cúria Romana. A lei civil referente à denúncia de crime à autoridade competente sempre deve ser seguida. Durante a fase preliminar de denúncias e até que o caso esteja concluído, o bispo local pode impor medidas preventivas para proteger a comunidade e as vítimas, restringindo as atividades de qualquer padre em sua diocese. Bento XVI e Francisco se encontraram com as vítimas, pediram perdão a Deus e a elas pelas faltas cometidas, manifestando apreço por seus relatos e sensibilidade à sua dor. Vários bispos pediram renúncia por reconhecerem a própria omissão diante dos delitos cometidos de seus sacerdotes.
Francisco realizou neste ano um encontro com todos os presidentes de conferências episcopais nacionais para tratar da proteção de menores na Igreja. Ele reconhece que o abuso sexual de menores era tabu no passado, quando se sabiam de sua existência mas ninguém falava. Ainda hoje, as estatísticas disponíveis compiladas por várias organizações nacionais e internacionais (OMS, Unicef, Interpol, Europol e outros), não apresentam a verdadeira extensão do fenômeno, que é subestimado porque muitos casos de abusos sexuais de menores não são denunciados, sobretudo os numerosíssimos cometidos no interior da família. A isto se soma o flagelo do turismo sexual. Segundo os dados da Organização Mundial de Turismo, em 2017, três milhões de pessoas no mundo viajaram para ter relações sexuais com menores. Tais abusos são sempre a consequência do abuso de poder, em que se explora a posição de inferioridade do indefeso abusado, e se manipula a sua consciência e a sua fragilidade psicológica e física.
No caso de sacerdotes, Francisco associa este mal ao clericalismo, uma anomalia no modo de se entender a autoridade na Igreja, comum em muitas comunidades onde ocorreram abusos sexuais, de poder e de consciência. O clericalismo, favorecido tanto por sacerdotes quanto por leigos, ajuda a perpetuar muitos dos males hoje denunciados. É preciso enfrentar decididamente o abuso de menores, dentro e fora da Igreja, anunciar o Evangelho aos pequeninos e protegê-los dos lobos vorazes. Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso nas comunidades católicas, só resultará numa transformação saudável e realista com participação ativa de todos os membros da Igreja (confira aqui e aqui). Pode-se dizer que a Igreja está aprendendo a dura penas a lidar com esta questão. Nos lugares onde mais apareceram casos de abuso e se tomaram as devidas medidas, houve uma drástica redução de novos casos.
O escândalo de pedofilia trouxe ainda outros desdobramentos. Não poucos tentaram culpar a homossexualidade pelos abusos do clero, especialmente a cultura contemporânea que consideram permissiva. Outros tentaram culpar o celibato sacerdotal, que consideram negação alucinada da sexualidade e coisa de dar medo. Como foi dito, a maioria dos casos ocorre no interior da família, dentro de casa, e o responsável é o pai ou o padrasto da vítima. O autor do delito não é celibatário, e tem vida conjugal heterossexual. Quando estes casos são noticiados, o senso comum não culpa o casamento ou heterossexualidade pelo delito. Mas se o autor é celibatário, não raramente se culpa o celibato; e se é homossexual, a homossexualidade. Para ajudar a esclarecer a questão, convém saber o que dizem os principais relatórios sobre o abuso sexual de menores pelo clero, feitos com amplo embasamento científico pelos governos norte-americano, alemão e australiano. Eles não associam os abusos à homossexualidade ou ao celibato. Estas associações, portanto, devem-se ao preconceito: à homofobia e à celibatofobia. Criam-se bodes expiatórios a partir de razões equivocadas. A presença de homossexuais no clero, bem como o celibato sacerdotal, não devem ser temas tabu, mas discuti-los no contexto dos abusos é um erro bastante prejudicial.
Com tudo isso, oxalá a consciência dos erros cometidos nos escândalos possa conduzir, com a graça de Deus, a anunciar o Evangelho aos pequeninos e a protegê-los dos lobos vorazes.
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O escândalo de pedofilia na Igreja e algumas lições - Instituto Humanitas Unisinos - IHU