21 Fevereiro 2019
Desde sempre existe um laço inquebrável entre o estouro gradual da questão dos abusos sexuais na Igreja contra menores e pessoas vulneráveis por parte de membros do clero e a imprensa em geral. De fato, poder-se-ia observar, sem exagero, que a opinião pública, dentro e fora da Igreja Católica, tomou conhecimento desse drama, especialmente aquele de pedofilia clerical antes, mas também aquele mais recente dos abusos sexuais de mulheres consagradas, graças à imprensa. Nessa nova realidade midiática, a partir de um determinado momento, a Rede (antes a Internet e depois as mídias sociais) adquiriu rapidamente uma importância hegemônica. O relato da pedofilia clerical logo se tornou planetário e quase impossível de manipular com a censura, o silêncio ou as táticas de acobertamento.
A reportagem é de Luis Badilla e Roberto Calvaresi, publicada por il Sismografo, 20-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A história recente da pedofilia clerical recorda especialmente as dramáticas denúncias no Canadá, trinta e dois anos atrás (1987), de abusos de crianças nas comunidades Atikamekw e outros pequenos vulneráveis por missionários dos Oblatos de Maria e, depois, no Alasca, em 2007, abusos envolvendo padres jesuítas e crianças ou garotos pertencentes às etnias Inuit e Yupik. Em 1984, foi publicado o relatório Badgley sobre crimes sexuais contra menores.
Mais tarde, quando ainda não tinha se apagado esse escândalo, estourou aquele revelado pela investigação do Boston Globe, nos Estados Unidos, episódio que permanece na memória coletiva como o início de uma espécie de "avalanche" periódica de denúncias... Irlanda, Chile, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, etc.
Não é por acaso que as duas primeiras Conferências Episcopais que publicaram regras e normas para erradicar e combater o fenômeno da pedofilia no clero foram precisamente a do Canadá e dos Estados Unidos. A primeira instituiu um comitê especializado em 1989 e publicou um Guia com 50 recomendações para conter o fenômeno em 1992. Os bispos católicos estadunidenses na Plenária de junho de 1992 aprovaram e publicaram um manual com 5 recomendações ou "princípios", alguns muito severos.
Esses eventos, no Canadá e nos EUA, na época foram amplamente tratados não só pela imprensa local, mas também pela internacional indicando desde o início uma linha que depois foi se consolidado cada vez mais: na luta contra a pedofilia na Igreja, mas mais em geral na sociedade, a imprensa tem um papel determinante, pois uma característica intrínseca da forma de agir do pedófilo é o segredo, o ocultamento, e, portanto, somente a verdade e a transparência podem desmontar desde a raiz a obra do indivíduo pedófilo. Como o comportamento pedófilo é um evento que absolutamente precisa de sigilo, toda vez que o fato for ocultado, objetivamente se favorece a pedofilia.
O papel da denúncia, pelo menos de uma parte importante da mídia mundial, é, portanto, indiscutível e meritória. O Papa Francisco em vários momentos agradeceu e mostrou apreciar o comportamento da mídia. Na denúncia e na luta contra os abusos sexuais contra menores, a imprensa tem sua própria cidadania plena, autorizada e merecedora. Tudo isso, porém, aconteceu em muitos países, mas não em todos. Há países em que a imprensa ainda fica em silêncio e esconde e, de certa forma, é conivente pelo silêncio diante da pedofilia clerical. No caso de grandes áreas do mundo, como a África e Ásia, onde de forma superficial costumam dizer que os "abusos não existem", na realidade, o problema é mais complexo e articulado, pois a questão chama em causa a conduta da imprensa local, e acima de tudo, a conduta dos responsáveis de numerosas dioceses e instituições eclesiais relutantes a fornecer informações com transparência e rapidez.
Falando à Cúria Romana em 21 de dezembro passado, por ocasião das saudações de Natal, o Papa disse textualmente:
"Queridos irmãos e irmãs, falando sobre essa chaga, alguns dentro da Igreja se enfurecem contra determinadas pessoas da comunicação, acusando-as de ignorar a grande maioria dos casos de abusos que não são cometidos por clérigos da Igreja - as estatísticas falam de mais de 95% - e acusando-as de intencionalmente querer dar uma imagem falsa, como se esse mal tivesse atingido apenas a Igreja Católica. Em vez disso, gostaria de agradecer sinceramente essas pessoas da mídia que foram honestas e objetivas e que tentaram desmascarar esses lobos e dar voz às vítimas. Mesmo que se tratasse apenas um único caso de abuso - que em si já é uma monstruosidade - a Igreja pede para não calar e trazê-lo objetivamente à luz, porque o maior escândalo nesta matéria é aquele de ocultar a verdade".
Essas reflexões do Papa Francisco, como tantas outras que ele fez publicamente, no Vaticano e em todo o mundo ao longo destes seis anos de seu pontificado, representam um salto gigantesco de qualidade e coragem na conduta da Igreja e da hierarquia católica contra os abusos. São considerações que se colocam em linha com o que foi dito e feito pelo Papa Bento XVI e, especialmente, desmentem e desautorizam (como veremos mais adiante) o que a história recente recorda e documenta como as primeiras reações e explicações de alguns membros da hierarquia, anos atrás, diante do surgimento público da pedofilia clerical
Em 4 de abril de 2010 o cardeal Decano Angelo Sodano ao querer expressar solidariedade ao Papa Ratzinger, naqueles dias alvo de diversas críticas por supostas deficiências na luta contra a pedofilia quando era cardeal Prefeito, disse: "Está com o senhor o povo de Deus, que não se deixa impressionar pelos ‘falatórios’ do momento, pelas provas que às vezes atingem a comunidade dos fiéis”. A imprensa e algumas vítimas reagiram duramente contra o cardeal considerando que reduzir os abusos a "falatórios do momento" tinha sido infeliz, mentiroso e pouco evangélico. A imprensa e os críticos da Igreja, entretanto, naqueles momentos evocaram como era no passado a resposta às primeiras denúncias de abusos sexuais na Igreja.
Que nos primeiros anos da questão abusos sexuais na Igreja uma boa parte da hierarquia não tenha realmente entendido o que estava acontecendo, ou talvez tenha compreendido, mas preferiu a tática do avestruz, foi demonstrado por três comportamentos deletérios e impróprios, que pagaram muito caro. O primeiro é o do falecido cardeal colombiano Darío Castrillón Hoyos, que defendeu abertamente e polemicamente a política do acobertamento por motivos de "discrição e confidencialidade". Depois, seria a vez do cardeal hondurenho, arcebispo de Tegucigalpa, Oscar Rodríguez Maradiaga, que explicou a coisa toda como um "ataque do lobby judeu contra a Igreja e o Vaticano por sua posição pró-palestina". Finalmente, o então Arcebispo do México, Cardeal Norberto Rivera que afirmou em várias entrevistas que o escândalo de Boston era "uma perseguição contra a Igreja como aquelas de Nero, Hitler e Stalin. Está em ato um programa orquestrado para atingir o prestígio da Igreja, para desqualificá-la".
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Referências:
A "cultura do acobertamento" em câmera lenta: (1) a discrição e a confidencialidade. (editado pela Redação "Il sismografo")
A "cultura do acobertamento" em câmera lenta. (2) A demolição sistemática das denúncias de abusos por parte da Igreja e a teoria do "lobby judaico" (editado pela Redação "il sismografo")
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Abusos sexuais na Igreja: verdade, transparência e o papel da imprensa. A importância da denúncia que acaba de forma eficaz com o segredo e o acobertamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU