Jesus do mito e Jesus da história. Artigo de Eduardo Hoornaert

Foto: Jason Farrar/Flickr-CC

25 Fevereiro 2025

"Hoje, a situação não é boa. O desequilíbrio entre Jesus do mito e Jesus da história é patente", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).

Eis o artigo.

O termo grego ‘muthos’ (mito) significa ‘narrativa, história contada’. Quando afirmamos que os evangelhos são de caráter narrativo, dizemos, em outras palavras, que eles são ‘mitológicos’. Pois a narração não é um relato frio de algum evento, mas vai carregada da emoção do momento e tem uma intencionalidade própria. O Jesus ‘das narrativas’ (ou ‘do mito’) é diferente do ‘Jesus histórico’, pois, enquanto esse último é resultado de uma investigação que siga regras ‘heurísticas’ próprias da historiografia, o primeiro dispensa essas regras.

Neste texto, distingo entre uma aproximação mitológica e uma aproximação historiográfica da figura de Jesus. Há complexidade, sem dúvida, mas uma boa distinção traz clareza, como nos ensina o velho mestre Tomás de Aquino, que, ao enfrentar um problema, repetia: distinguo! Distinguir para não separar, mas para entender melhor as coisas. Destrinchar para não criar oposição. E, como sei, por exemplo, que termos como ‘mitologia’ e ‘mitológico’ costumam soar pejorativamente, faço questão de dizer, logo de início, que não é num sentido negativo que os utilizo aqui, como fica claro em seguida.

Apologia da mitologia

Uma narrativa não costuma ser um relato frio de acontecimentos, mas carrega consigo emoções vividas no momento de sua enunciação, além de outros condicionamentos. Assim, as primeiras narrativas acerca de Jesus, além de carregar marcas indeléveis de um rico imaginário semita, expressam, ao seu modo, emoções vividas por seus discípulos nos primeiros anos do movimento.

Esses discípulos, nos primeiros anos após a morte cruel de Jesus, enfrentam condições extremamente duras: incompreensões por todo canto, tanto por parte das autoridades quando por parte da população em geral; perseguições e hostilizações; até condenações à morte, como é o caso de Estêvão no capítulo sete dos Atos dos Apóstolos. O movimento de Jesus vive com uma ameaça constante: a iminência de varrido do mapa por intervenções por parte das autoridades, com a conivência da população majoritária, como acontece com não poucos movimentos populares da época, como nos lembra R. A. Horsley em seu livro Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos populares no Tempo de Jesus (Paulus, 1995).

Mas os seguidores de Jesus não desistem. Eles compartilham a mesma convicção: ‘essa memória não se pode perder’. Todos estão convencidos da necessidade de guardar e difundir a memória do profeta Jesus de Nazaré. Eis a base de uma tradição extremamente resistente, penetrante e inovadora, que se espalha rapidamente pela Galileia e alcança, em poucos anos, a Síria, a Macedônia e a Ásia Menor, até penetrar nos três centros urbanos mais importantes do Império Romano: Antioquia, na Síria, Alexandria, no Egito, e Roma, na Itália.

Veiculada, nos primeiros quarenta anos, por agentes anônimos e, a partir dos anos 70, por evangelistas e redatores de Atos, Cartas e Apocalipses, essa primeira ‘apresentação’ de Jesus trabalha basicamente com dados mitológicos, ou seja, com narrativas transmitidas. Eles não são ‘historiadores’.

Na realidade, os evangelistas demonstram pouco interesse em descrever como foi mesmo a vida concreta de Jesus. Seu interesse é outro: impulsionados por ondas crescentes de uma tradição que se cria a partir da horrível morte do líder de Nazaré, e que já se consolida ao longo de 40 a 50 anos (40 anos no caso de Marcos, pelo menos 50 anos no caso de Mateus e Lucas), seu interesse consiste em apresentar um Jesus que anime e sustente a fé dos discípulos e das discípulas em meio à hostilidade, incompreensão, desprezo e mesmo perseguição aberta (com perigo de vida), por parte das autoridades e também da sociedade.

Daí a luminosa auréola, que passa a envolver a figura de Jesus e o distingue do comum dos mortais. Ele não só expulsa sopros maus, cura leprosos, socorre necessitados, mas vira, com o tempo, uma figura excepcional: anda sobre as águas, acalma tempestades, multiplica pães. Torna-se um novo Elias, o grande profeta da memória popular judaica, que multiplica pão para a viúva de Sarepta, lança seu manto sobre as águas e as separa, ressuscita mortos. Torna-se um novo Moisés, libertador do povo hebreu escravizado no Egito.

Esse Jesus, fazedor de milagres e feitos impressionantes, sustenta a fé dos primeiros seguidores. Combatidas, desprezadas e mal interpretadas, as comunidades de discípulos e discípulas visam, antes de tudo, manter e avivar a imagem de um Jesus que, ressuscitado e divino, demonstra a mais tenaz resiliência, a mais viva resistência, a mais forte persuasão. E eles têm sucesso. Pois, enquanto diversos movimentos proféticos e messiânicos da época sucumbem aos golpes da perseguição, isso não acontece com o movimento de Jesus. Os discípulos e demais seguidores sabem descobrir algo diferente em seu líder, algo que o destaque. Para tanto, eles abandonam a memória histórica em benefício de uma imaginação mitológica, em grande parte fundamentada em textos das Escrituras Sagradas do judaísmo.

Determinados setores do movimento, já na primeira geração, passam a demonstrar mais interesse no Senhor ressuscitado que em Jesus histórico e isso repercute nos quatro evangelhos, que são pensados e programados no contexto da fé no ‘Cristo’ (denominação criada por Paulo no início dos anos 50). Empreende-se um trabalho intenso de releitura de tradições bíblicas milenares em função da figura de Cristo. Gente letrada, ao se juntar ao movimento de Jesus, procura em textos bíblicos, principalmente salmos e profecias, provérbios, sabedorias e histórias, sinais e previsões da figura de Cristo.

O evangelista Marcos, por exemplo, encontra a figura de Jesus em textos do profeta Daniel, do século V a.C (como comento adiante). Ele enxerga em Jesus um ‘novo Elias’. Vira costume, entre os evangelistas, apresentar os sofrimentos de Jesus à luz de textos do profeta Isaías e daí nascem os impressionantes textos da Paixão. Enfim, já nos primeiros decênios após sua morte, a figura de Jesus é submetida a uma releitura bíblica, num trabalho paciente e insistente, que conseguimos detectar em diversos pontos do primeiro universo cristão: Antioquia da Síria, Macedônia, cidades ribeirinhas da Ásia Menor, Alexandria, Roma. O movimento resulta numa imagem multifacetada de Jesus, posteriormente absorvida numa tradição multissecular.

O que acabo de descrever só é uma parte da primeira tradição. Os quatro evangelhos canônicos, trabalhos de rememoração e titulação, não são nossas únicas referências. Na Alemanha, no decorrer do século XX, se ‘reconstruiu’ o famoso Evangelho Q (de ‘Quelle’, que significa ‘fonte’ em alemão), que já teria circulado por volta dos anos 50 (vinte anos antes do Evangelho de Marcos) e que apresenta 21 Ditos de Jesus. Com isso, o Evangelho de Marcos perde seu ‘status’ de primeira fonte histórica e passa a ser entendido como obra teológica e apologética. Efetivamente, o Evangelho de Jesus, que é Cristo e Filho de Deus (Mc 1, 1) repousa sobre escassa base propriamente histórica e muita consideração teológica. Jesus passa a ser apresentado como Cristo e Filho de Deus. A tendência, óbvia, é de defesa e encorajamento. Aliás, sabemos que Marcos, que provavelmente escreve em Roma e escreve para imigrantes judeus, nunca esteve na Palestina. Suas referências topográficas mostram que ele só conhece os lugares por informações indiretas.

Mas o evangelho de Marcos é um fulgurante sucesso e marca toda a tradição ‘mitológica’ que vem em seguida. Dentro de quinze anos (entre 70 e 85), seu texto já se lê em Antioquia da Síria (onde, provavelmente, atuam Mateus e Lucas) e, no final do século, já alcança a Ásia Menor, onde inspira o escritor ‘místico’ do quarto evangelho, que passa por João apóstolo. Há de se ter em mente, sempre, que os evangelhos de Lucas e Mateus surgem na década de 80, enquanto o evangelho de João só aparece por volta do ano 100.

Com isso, estou querendo desacreditar a mitologia como sendo um conhecimento errático? Confesso que eu precisei de tempo para perceber que uma postura puramente ‘histórica’, em que militei por anos, resulta sendo redutiva e, afinal, impraticável. Há tantos elementos, no enfoque mitológico, que levam à espiritualidade, tantos pontos que suscitam reflexão teológica, tantas oportunidades de uma profissão de fé atualizada, que eu não tenho mais condições de me apresentar, fria e tecnicamente, como ‘historiador’.

Para dizer a coisa de outro modo: história e mitologia são duas coisas complementares.  Ao lado de um conhecimento histórico, baseado numa frequentemente penosa investigação de eventos passados, existe o conhecimento mitológico, que abre perspectivas que a história é incapaz de alcançar. A mitologia ‘bem pensada’ apresenta uma profundidade de espiritualidade e de vivência que nenhuma investigação historiográfica alcança. Ela abre a porta para uma compreensão profunda da vida humana.

Apologia da historiografia

Dito isso, passo a fazer uma apologia da historiografia ‘bem pensada’. O pouco interesse em ‘Jesus histórico’, demonstrada na primeira tradição de Jesus, se prolonga por séculos, mesmo após o movimento cristão não ser mais perseguido e, portanto, a imagem superlativa de sua figura deixar de ser ‘orgânica’.

Mesmo assim, questionamentos acerca do teor histórico dos evangelhos nunca faltaram, ao longo dos séculos. O pensador neoplatônico romano Porfírio (ca. 234 - ca. 304), por exemplo, em sua obra Contra os Cristãos, afirmou que os evangelhos não correspondem fielmente à vida histórica de Jesus. Mas essas críticas não mudaram as coisas: o fato é que Jesus saiu dos trilhos e virou puro mito. Sua imagem superlativa atravessou séculos e só na época moderna, em que ciências e pesquisas passam a ser gradativamente praticadas e valorizadas, emerge, lentamente, o tema ‘Jesus histórico’. Só em 1863 aparece, na França, o livro Vida de Jesus, de Ernest Renan. Na Alemanha se verifica a mesma lentidão, ao longo do século XIX. Há tentativas em outros países (Tolstoi na Rússia, por exemplo). Mas, em geral, o processo é extremamente lento.

Volto à antiga lição de meu professor de história: a boa historiografia é, antes de tudo, heurística. Trata-se, em primeiro lugar, de apresentar o passado ‘como realmente ocorreu’ (wie es eigentlich gewesen ist). Depois, em segundo lugar, vem a interpretação. Não se pode confundir. Lembro-me de outras sedimentações de antigas lições. No século V aC, o grego Heródoto, não se conformando com a memória mitológica do povo grego, expressa na poesia homérica, resolve anotar, com cuidado, achados históricos, recolhidos em longas viagens à Macedônia, às Costas do Mar Negro, ao Egito, até à mais distante ilha do Mar Mediterrâneo, a Sicília. A rigorosa ‘heurística’ fez de Heródoto o pai da historiografia.

Se, em meu livro Em busca de Jesus de Nazaré (Paulus, 2016), me limitei a descrições de tipo histórico e evitei considerações de tipo mitológico, é porque penso que isso ajuda a clarear as coisas. Por meio de um enfoque histórico, por exemplo, compreendemos que a experiência de Jesus e dos profetas de Israel não constitui a única revelação de Deus. Há múltiplas experiências, no tempo e no espaço, todas marcadas pela fragilidade, precariedade e possibilidade de erro, que caracteriza empreendimentos humanos. A experiência de Jesus na Galileia não escapa dessa precariedade, nem da possibilidade de erro. Assim, por exemplo, Jesus, pelo que consta no Evangelho de Marcos, pensou que a chegada do Reino de Deus vitorioso fosse iminente: Alguns que estão aqui não morrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com poder (Mc 9, 1). Paulo diz mais ou menos o mesmo: Nós, que ficamos vivos até a vinda do Senhor, não precederemos os mortos (1Ts 4, 15). Hoje, não pensamos mais o mesmo.

Em Busca de Jesus de Nazaré: uma Análise Literária", livro de Eduardo Hoornaert (Paulus, 2016).

Afinal, a experiência de Jesus foi muito breve. Como a de Paulo. E assim aconteceu com a história que aprendemos em nossos livros: Estêvão, Inácio de Antioquia, Justino, Policarpo, Felicidade e Perpétua, Evágrio Póntico, João Crisóstomo, João Cassiano, Gregório de Nissa, Máximo Confessor, Patrício, Bonifácio, Bento, Odon, Odilon e Hugo (de Cluny), Bernardo, Bruno, Francisco de Assis, Domingos de Gusmão, Tomás a Kempis, Inácio de Loyola, Vicente de Paula, Bartolomeu de las Casas, Romero, Helder Câmara, etc. A mesma precariedade nas mais diversas experiências, dentro e fora da tradição cristã ocidental: a tradição budista, a confucionista, a islâmica, a ioruba, a tupi, a tradição de Ajuricaba, de Zumbi, de Antônio Conselheiro, de Ibiapina, etc.

Quem acerta o caminho sem errar? Sem procurar e, eventualmente, errar, não se encontra o caminho certo. O erro faz parte do caminho que leva à verdade. Caso haja disposição a retomar a caminhada, abandonar a trilha errada, reconhecer o erro.

É nesse sentido que percebo que, atualmente, a abertura a um conhecimento à ciência está costurando, devagar e discretamente, em países tradicionalmente pertencentes à ‘cristandade’, um novo consenso em torno de Jesus histórico.

Está na hora de se apresentar a figura histórica de Jesus de Nazaré. Os tempos estão amadurecendo. Hoje lemos com relativa tranquilidade, embora talvez com algum estranhamento, um eventual relato ‘histórico’ da biografia de Jesus. Nos seguintes termos, por exemplo:

Nascido e crescido numa pequena aldeia da Galileia, no Norte de Israel, o carpinteiro Jesus fica interpelado por um profeta no Sul do país, João Batista. Ele deixa a família e a aldeia e vai batizar com esse profeta. Depois de se separar dele, Jesus se instala em Cafarnaum, na Galileia, e aí passa a reunir em seu entorno redor um grupo de discípulos. E, por atos e palavras, anuncia uma mudança radical na avaliação da situação em que o mundo está: Deus mesmo vem reinar, chegou o Reino de Deus. Após dois ou três anos de atividade intensa e de muitas falas, Jesus, ao subir a Jerusalém para a festa de Páscoa, entra na Cidade Santa, sentado num burrinho, rodeado por gente da Galileia. É uma provocação. As autoridades entendem o recado: ‘Jerusalém é nossa Cidade Santa, não é a cidade de sacerdotes, letrados e fariseus’. Então, essas autoridades decidem executá-lo.

Penso que esse tipo de apresentação da vida de Jesus, embora talvez cause alguma estranheza, não encontra hoje recusa formal. Abre-se uma porta para uma compreensão da figura de Jesus em maior conformidade com dados históricos.

O encontro entre mitologia e história

Valorizar um relato histórico da vida de Jesus não implica em rejeitar o que escreveu Paulo de Tarso quando, apenas 25 anos após a morte do líder, fez uma releitura global do evento Jesus e de seu significado a partir da imagem de ‘Cristo (Messias, Ungido) ressuscitado’. Após Paulo se acumulam as titulações de Jesus. Ele torna-se ‘Senhor’, ‘Salvador’, ‘Redentor’, ‘Libertador’, ‘Profeta’, ‘Rei’, ‘Filho unigênito de Deus’. Entra em esfera divina.

Paradoxalmente, opera-se um encontro entre a história da morte de Jesus e o mito de sua ressurreição. Uma antiga antífona litúrgica reza:

Mors et vita duello
Conflixere mirando.
Rex vitae, mortuus,
Regnat vivus.

Morte e vida
Num duelo estranho:
O rei da vida, morto,
Reina vivo.

A história da morte traumatizante de Jesus se encontra com o glorioso mito de sua ressurreição. Um encontro feliz. Pois, enquanto a história da morte nos mantém com os pés firmes no chão da realidade, o mito da ressurreição nos introduz num prodigioso imaginário a fortalecer nossa esperança e nossa resistência.

A combinação entre história e mito não se sustenta sem uma continuada procura de equilíbrio. Uns, ao se limitar a uma visão exclusivamente histórica da figura de Jesus, se perdem na ‘incredulidade’; outros, ao desprezar a história em benefício do mito, se perdem no fundamentalismo. Há muita confusão. Afinal de contas, há de se compreender que a vida humana é, ao mesmo tempo, prosa e poesia, realismo e sonho, elevação espiritual e espírito de observação. Difícil respeitar essa complexidade.

Fica mais fácil partir para partidarismo e exclusivismo. Que o diga o movimento ecumênico que, numa dolorosa caminhada, tenta passar de uma mentalidade exclusivista para uma compreensão inclusivista, para, a partir daí, se abrir a um entendimento pluralista, uma fase que hoje está engatinhando, um pouco por toda parte, com todas as contradições inerentes.

Como se vê, o que escrevo aqui não se aplica só ao cristianismo. Todas as formatações religiosas, islamismo, cristianismo, hinduísmo, budismo, confucionismo, religiões ameríndias e africanas, todas lidam com um eventual encontro entre aspectos históricos e mitológicos, e experimentam dificuldades em combinar os dois modos.

Repito: o passado é sujeito a dois tipos distintos de leitura, a ‘lógica’ e a ‘mitológica’. Há o ‘Jesus histórico’ e o ‘Jesus mítico’. Não distinguir entre ambos leva a confusão. São dois universos, cada um com qualidades e limites. Enquanto o Jesus histórico apresenta lacunas e dúvidas, o Jesus das narrativas interpretativas (Jesus Cristo, Jesus Salvador, Jesus Profeta) tanto pode enriquecer e aprofundar consideravelmente nossa compreensão do significado de sua vida, quanto pode levar ao fundamentalismo. Pois, não podemos esquecer o dito popular: quem conta um conto, aumenta um ponto.

A posição saudável consiste em respeitar ambas as aproximações, a histórica e a mitológica, praticar uma saudável distinção entre um enfoque histórico e um enfoque mitológico da figura de Jesus e, desse modo, se enriquecer pelo intercâmbio entre os dois modos. Isso sem deixar de perceber que a mitologia fica sujeita a erros, fragilidades e desvios, que trouxeram muitos problemas ao longo da história. De tanto insistir na transcendência da figura de Jesus, por exemplo, se chegou a um dogmatismo, que criou, durante séculos, um clima insalubre, de ódio e oposição intransponível, de caça a ‘heresias’ e inquisição. Quanto mais se exaltou a divindade de Jesus, tanto mais se desvalorizou nossa própria humanidade. Hoje entendemos que, ao chamar Jesus de ‘humano’, não o desqualificamos, mas, pelo contrário, reabilitamos nossa própria humanidade.

Convém elogiar uma mitologia cristã bem pensada, capaz de conviver com estudos históricos. Valorizar o senso do sagrado e do mistério e, ao mesmo tempo, não rechaçar o senso histórico. Expressar, de algum modo, o inefável (pela arte, pela poesia, pela contemplação, pela música), enquanto se respeita estudos históricos. Ter consciência da insuficiência da linguagem, enquanto não se desprezam as conquistas de uma linguagem nova e inusitada. Ir para além de fronteiras traçadas por culturas, mentalidades, tempos, povos, países, religiões, sonhar com um mundo que seja uma realização de todos e para todos, e agir na concretude da vida ‘profana’ para realizar esse sonho. Aceitar o fato que o passado passou, inexoravelmente, e que o presente pede um novo modo de pensar. Mudar o foco, de obediência e adoração para vida satisfatória para a humanidade universal. Respeitar a historiografia, o melhor antídoto contra o fundamentalismo. Reconhecer em Jesus o rabi galileu da história, e, ao mesmo tempo, acompanhar a fé descomplicada do povo. Não cair na tramoia de considerar o mito contrário à verdade. Para manter essa postura, que pressupõe equilíbrio e senso de complexidade, tem de saber nadar contra a corrente, pois aparecem correntes contraditórias. Quem se aventura a nadar naquelas águas, vai sentir que há muita contradição na história do cristianismo.

Desequilíbrio

Hoje, a situação não é boa. O desequilíbrio entre Jesus do mito e Jesus da história é patente. Os concílios cristológicos dos séculos IV e V de tal modo exaltaram a divindade de Jesus que sua figura histórica só entrou ‘como Pilatos no Credo’. Os teólogos sabem destrinchar, em eruditas considerações, como combinar Jesus divino com Jesus humano, mas para a imensa maioria dos fieis, Jesus humano simplesmente evaporou, desde muito. Certo dia, uma pessoa me disse: não podemos imitar Jesus, porque Ele é Deus. Só podemos cair de joelhos e adorar. O cristianismo virou uma religião, ao lado de outras.

Isso nos leva, diretamente, aos dias que vivenciamos. Como você, que lê este texto e, de algum modo, pertence ao grupo seleto de formadores de opinião dentro do atual instituto cristão, seja você católico/a, protestante, pentecostal ou ortodoxo/a, reagem diante do fato que uma pesquisa recente informa que, atualmente, 40 a 50 % dos jovens, em cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro, não frequentam mais nenhum tipo de igreja? Se eles e elas se declaram ‘sem religião’, isso significa que rejeitam a figura de Jesus? Formulei essa pergunta na contracapa de um livro de 2016, intitulado Em busca de Jesus de Nazaré (Paulus): alguém que se declara ‘sem religião’, toma distância de Jesus Cristo, sem contudo querer abandonar o seguimento de Jesus de Nazaré, é cristão ou não?

Aqui, apresento um texto que, talvez, ajude a combater a dubiedade reinante na maioria dos discursos acerca daquela figura excepcional, que viveu entre nós dois mil anos atrás, Jesus de Nazaré, e que está na origem do cristianismo. Penso que a distinção entre um Jesus mítico e um Jesus histórico ajuda a gerar um discurso novo que, esse sim, recupera o poder excepcional de uma figura que outrora atraiu jovens pescadores (como Pedro), camponeses e mesmo cobradores de impostos (como Levi) e que, sem dúvida, conserva a mesma potencialidade nos dias de hoje. Sob a condição de ser apresentado de modo crítico, o que não é fácil.

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