07 Fevereiro 2025
Contra o “ecocídio capitalista” e por uma ampliação da autonomia da sociedade, “o sistema produtivo como um todo deve ser transformado”, afirma o sociólogo marxista Michel Löwy. Diretor de pesquisas emérito do Centro Nacional da Pesquisa Científica [Centre National de la Recherche Scientifique], da França, autor de trabalhos sobre Karl Marx, Leon Trótski, Rosa Luxemburgo, Georg Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin, Löwy falou à Úrsula sobre os princípios do ecossocialismo, que seria uma “alternativa radical” a um modelo econômino que não apresenta perspectivas de contribuir para o confronto da crise climática. Nesse sentido, ele denuncia a ineficácia das conferências e acordos internacionais com esse objetivo, comenta os possíveis efeitos da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e defende uma rota de “vitórias parciais” e de “consciência ecológica e socialista”. Além disso, o pesquisador fala sobre seu interesse sobre o romantismo, que se afigura como um “movimento heterogêneo”, que se fez também como crítica ao capitalismo.
A entrevista é de Daniel Plácido, Rafael Bensi e Thais Zwicker publicada por Revista Úrsula, 30-01-2025.
Daniel Placido – Para começar esta conversa, gostaria de perguntar em qual momento da sua trajetória intelectual o professor começou a se interessar pelo estudo do romantismo e quais razões motivaram tal pesquisa?
Michael Löwy – Eu “descobri” o tema do romantismo quando estava pesquisando para minha tese de doutorado de estado sobre Lukács. Me dei conta de que os círculos intelectuais que frequentava Lukács em Budapeste e em Heidelberg partilhavam de uma crítica romântica da modernidade. O mesmo vale para o primeiro período do itinerário cultural e político do jovem Lukács, e inclusive para seus primeiros escritos marxistas em 1919. O celebre teórico da crítica cultural Raymond Williams escreveu em 1981 uma simpática resenha da edição inglesa do meu livro (que tinha como título Georg Lukács, from Romanticism to Bolchevism); Williams insistia que não é necessário deixar de lado a crítica romântica para aderir ao marxismo. Eu concordava com isto. Havia começado a explorar esta temática em alguns artigos, recolhidos no livro Marxisme et romantisme revolutionnaire (1979). No começo dos anos 1980 encontrei Robert Sayre, que havia sido, como eu, aluno de Lucien Goldmann. Começamos então uma larga pesquisa comum sobre o romantismo, culminando no livro Revolte et Mélancolie. Le romantisme à contre-courant de la modernité (1992) [Revolta e Melancolia: o Romantismo na Contracorrente da Modernidade na edição brasileira, de 2015]. Nosso sentimento era que o romantismo era muito mais do que uma escola literária: se tratava de uma visão do mundo (no sentido que dava a esse conceito Lucien Goldmann) que se manifestava em todos os terrenos da cultura – até na economia política! – e se estendia de meados do século XVIII até hoje. Uma visão do mundo pouco explorada pelas ciências sociais, e que tinha um papel importante na cultura moderna.
Daniel Placido – Em diversas obras e artigos, o senhor caracterizou o romantismo como uma visão de mundo cujo componente central é a crítica à civilização capitalista moderna, manifestando-se ora como um movimento conservador, ora como um movimento revolucionário. Mesmo um filósofo liberal como Isaiah Berlin (por exemplo em A força das ideias, de 2005) compreendeu o romantismo como um movimento ambivalente, gerando características positivas, como a desconfiança de verdades universais, a valorização da criatividade e o respeito à subjetividade, e características negativas, como a exaltação de heróis sobre-humanos, da paixão e do poder arbitrário. O romantismo é um “Janus bifronte” a ser ainda decifrado?
Michael Löwy – A visão romântica do mundo é com efeito uma critica à civilização capitalista, tal como vai se formar a partir da Revoluçâo Industrial no século XVIII. Uma crítica que se refere a valores sociais, culturais, religiosos, políticos, do passado pré-capitalista, e que vai denunciar a quantificação, mercantilização e monetarização da vida social, o desencantamento do mundo, a dissolução das comunidades humanas e a destruição da natureza.
Estou de acordo com Isaiah Berlin que se trata de um movimento ambivalente. Ou melhor, um movimento heterogêneo, dividido em orientações distintas, e às vezes, diametralmente opostas. Discordo de Berlin com respeito ao heroísmo e as paixões: não são, em si mesmas, “características negativas”! Depende de seu objeto e sua natureza… quanto ao poder arbitrário, ele toma, na época moderna, formas burocráticas, militares ou totalitárias que nada têm de “romântico”.
Muitos românticos voltam-se exclusivamente para o passado, sonhando com uma restauração de formas de vida pré-modernas: por exemplo, a Cristandade Medieval, na obra do grande romântico alemâo Novalis. Pode-se citar muitos outros exemplos: os irmãos Schlegel, Schelling, Chateaubriand, Balzac, Coleridge, o jovem Thomas Mann etc. Se trata aqui de um romantismo regressivo, passadista, que desejaria uma (impossível) volta ao passado. Muitos autores, em especial marxistas, – o Lukács tardio é um bom exemplo – chegam à conclusão que o romantismo é uma crítica reacionária do capitalismo.
O que se ignora com este enfoque é a existência de uma outra forma da visão romântica do mundo, que nós chamamos de “romantismo revolucionário”: para este, o objetivo não é a volta ao passado, mas um desvio pelo passado, em direção ao futuro utópico e/ou revolucionário. O primeiro romântico revolucionário foi Jean-Jacques Rousseau, em seu famoso Discurso sobre a origem da desigualdade entre os humanos (1755) – um dos textos fundadores da visão romântica. Rousseau compara a liberdade dos selvagens das Caraíbas com a escravidão do homem moderno, mas ele não propõe que os franceses voltem a viver na mata virgem: sua proposta é restabelecer a liberdade perdida em uma forma nova, a democracia. Podem ser considerados românticos utópico-revolucionários figuras como William Blake, Flora Tristan, Hölderlin, Pierre Leroux, Moses Hess, William Morris, Gustav Landauer e Ernst Bloch. O surrealismo é um exemplo extraordinário de movimento cultural romântico revolucionário.
Rafael Bensi – Para nosso leitor que não está familiarizado com o conceito, o senhor poderia definir em linhas gerais o que é o ecossocialismo e como os ecossocialistas têm questionado as bases do capitalismo predatório global?
Michael Löwy – O ecossocialismo é uma tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical ao ecocídio capitalista, uma alternativa enraizada nos argumentos básicos do movimento ecologista e na crítica marxista da economia política. Ele contrapõe ao “progresso destrutivo” capitalista (Marx) uma política econômica fundada em critérios não-monetários e extra-econômicos: as necessidades sociais e o equilíbrio ecológico. Esta síntese dialética é, ao mesmo tempo, uma crítica à “ecologia de mercado”, que não se confronta com o sistema capitalista, e ao “produtivismo socialista”, que ignora a questão dos limites naturais.
Os ecosocialistas se inspiram nos comentários de Marx sobre a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparato de estado capitalista e colocá-lo para funcionar a seu serviço. Eles têm que “quebrá-lo” e substituí-lo por uma forma radicalmente diferente, democrática e não-estatizante de poder político. Algo similar se aplica ao aparelho produtivo: as forças produtivas, e não somente as relações de produção, têm que ser profundamente modificadas – em primeiro lugar, através de uma revolução no sistema energético, com a substituição da matriz essencialmente fóssil responsável pela poluição e envenenamento do ambiente, por outras renováveis: água, vento, sol. É claro que muitas descobertas científicas e tecnológicas da modernidade são preciosas, mas o sistema produtivo como um todo deve ser transformado, e isso só pode ser feito por métodos ecossocialistas, isto é, através de um planejamento democrático da economia, que leve em conta a preservação do equilíbrio ecológico.
A própria sociedade, e não mais uma pequena oligarquia de donos de propriedades nem uma elite de tecnoburocratas, será capaz de escolher, democraticamente, quais linhas produtivas deverão ser privilegiadas, e o quanto de recursos que será investido em educação, saúde ou cultura. Os próprios preços das mercadorias não serão entregues às “leis da oferta e da demanda”, mas, até certo ponto, determinados segundo opções sociais e políticas, assim como critérios ecológicos, levando à taxação de certos produtos, e subsidiando o preço de outros.
Longe de ser “despótico”, o planejamento ecossocialista é o exercício, pelo conjunto da sociedade, de sua liberdade: liberdade de decisão, e libertação das alienadas e reificadas “leis econômicas” do sistema capitalista, que determinam a vida e a morte dos indivíduos, e os encarceram em uma “gaiola de ferro” (Weber). Planejamento e a redução do tempo de trabalho são os dois passos decisivos da humanidade rumo ao que Marx chamou de “o reino da liberdade”. O ecossocialismo é baseado em uma aposta, que já foi de Marx: o predomínio, em uma sociedade sem classes e liberta da alienação capitalista, do “ser” sobre o “ter”, isto é, do tempo livre para a realização pessoal de atividades culturais, esportivas, ludicas, científicas, eróticas, artísticas e políticas, ao invés do desejo pela posse infinita de produtos.
Thais Zwicker – De que forma as metas estabelecidas nos acordos ambientais globais, como o Acordo de Paris, podem ser compatíveis ou conflitantes com os princípios do ecossocialismo, especialmente no que diz respeito à superação do modelo capitalista para alcançar justiça climática?
Michael Löwy – As metas estabelecidas no Acordo de Paris são legítimas: tomar as medidas necessárias para impedir que a temperatura do planeta supere os 1,5° acima da época pré-industrial, considerando que, a partir deste limite, existe o risco – apontado pelo Grupo Internacional de Estuado do Clima (GIEC) – de um processo incontrolável e irrreversível de aquecimento global. Os vários países participantes se comprometeram a reduzir suas emissões de gases com efeito de estufa. Este grande resultado é infelizmente comprometido por dois “detalhes”: 1) Nenhum dos participantes do Acordo de Paris cumpriu suas promessas; 2) Cientistas calcularam que se todos os países que assinaram o Acordo de Paris tivessem cumprido suas promessas, a temperatura do planeta ainda assim subiria para mais de 3°.
Na verdade, as varias COPs [sigla de Conferências das Partes, reuniões da Organização das Nações Unidas sobre o clima] que se sucederam desde então nada de novo trouxeram, senão vagas promessas de “reduçâo” das emissões, sem controle, sem sanções, sem resultado: as emissões continuam subindo, e a temperatura também. É a prova mais evidente de que não há solução para a crise climática nos limites do modelo capitalista.
Os principios do ecossocialismo exigem uma ruptura com a lógica de expansão e acumulação do capital, a expropriação da “oligarquia fóssil” – os interesses ligados ao carvão, petróleo, gás, indústria automóvel, eletricidade, plásticos etc – e o início de uma processo de transição em direção a uma nova sociedade.
Thais Zwicker – Como o senhor avalia o papel do G20, composto pelas maiores economias do mundo, na promoção (ou impedimento) de uma transição para modelos como o ecossocialismo, considerando que esses países lideram tanto a emissão de gases do efeito estufa quanto a implementação de políticas ambientais globais?
Michael Löwy – As conclusões que se pode tirar das várias COPs valem para o G20: eles são parte do problema, não da solução. Claro, existem diferenças entre governos diretamente ecocidas, climato-negacionistas (Bolsonaro, Trump) e governos que têm algum tipo de política ambiental (a União Europeia). No meio caminho se situam os hipócritas, que falam de ecologia, mas queimam o carvão em quantidades astronômicas (Modi, na Índia). Mas entre uns e outros, nada aponta às medidas urgentes necessárias para tentar limitar o desastre. Estamos avançando para o inferno climático, e o capital pisa no acelerador. A União Europeia fala em “neutralidade de carbono” em 2050, mas recusa tomar agora e já iniciativas visando a redução drástica das emissões. Como bem resume Greta Thunberg, “é matematicamente impossível resolver a crise ecológica nos quadros do atual sistema econômico”.
Sonhar e lutar por uma civilização ecossocialista não significa que não se deva lutar por reformas concretas e urgentes. Sem nenhuma ilusão sobre um “capitalismo limpo”, deve-se tentar ganhar tempo, e impor aos poderes constituídos algumas mudanças elementares: o abandono de novos projetos de exploração das energias fósseis, de novos oleodutos, de novas centrais elétricas térmicas; a elaboração de um programa público de investimentos em energias renováveis e na agricultura orgânica; o fim da obsolescência programada dos produtos; a supressão da publicidade.
Essas e outras bandeiras ecossociais urgentes podem levar a um processo de radicalização, sob a condição de não se aceitar limitar alguma meta tendo em vista interesses do “mercado (capitalista)” ou da “competitividade”. De acordo com a lógica do que os marxistas chamam de “um programa de transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial pode imediatamente levar a uma demanda superior, para uma meta mais radical. Essas lutas em torno de questões concretas são importantes, não somente porque vitórias parciais são bem-vindas, mas também porque elas contribuem para elevar a consciência ecológica e socialista, promovem atividade e auto-organização desde as bases: ambas são pré-condições decisivas e necessárias para uma radical, isto é, revolucionária, transformação do mundo.
Rafael Bensi – Recentemente, o economista Jefrey Sachs concedeu uma entrevista a Piers Morgan e foi enfático em suas críticas ao governo americano. Dentre os assuntos, ele tratou da influência negativa que os EUA exercem no mundo através de interferências políticas. Ele disse que o governo americano não é confiável em nenhum aspecto. Como o professor enxerga o futuro da política estadunidense sob a administração Trump, principalmente no que tange aos compromissos internacionais do clima? Existe alguma chance de uma transição para o ecossocialismo tendo os EUA como opositor global?
Michael Löwy – Donald Trump é um climato-negacionista declarado, um partidário incondicional das energias fósseis e seu progama é claramente ecocida. Representante da oligarquia fóssil e do setor mais reacionário do grande capital, ele recusa qualquer regulamentação ecológica, nacional ou internacional. Já em seu governo anterior ele havia se retirado dos Acordos de Paris e provavelmente fará o mesmo agora 1. Os “compromissos internacionais do clima” já estavam dramaticamente atrasados em relação à urgência da crise climática, e sem dúvidas o governo Trump vai contribuir para agravar este atraso.
Dito isto, haverá sem dúvida oposição à politica ecocida de Donald Trump em seu próprio país: uma oposição mais moderada, de governadores democratas (California, Nova York, etc), e uma oposição mais radical de movimentos sociais, de forças políticas de esquerda (Democratic Socialists of America, o Partido Verde etc), de comunidades indígenas (os Sioux), de setores ecologicamente conscientes do movimento sindical, do feminismo, do movimento negro, da juventude etc.
Processos de transição ecológica, mais ou menos radicais segundo os países, em particular na América Latina, enfrentarão sem dúvida a oposiçâo das oligarquias locais, apoiadas pelo imperialismo americano, sob a égide de Trump. Mas o poder do imperialismo ianque não é o mesmo de 40 anos atrás: sua hegemonia econômica e política está bastante fragilizada. As lutas de movimentos socioecológicos, com ou sem o apoio de governos progressistas, se desenvolverão necessariamente, como resultado do agravamento visível da crise climática (inundações, furacões, incêndios, temperaturas insuportáveis, subida do nível do mar etc). Poderão vencer os obstáculos e iniciar um processo de transição em direção ao ecossocialismo? Não existe nenhuma garantia de sucesso… mas, como dizia Bertolt Brecht, quem luta pode perder, quem não luta já perdeu.