Só um radical ecossocialismo democrático pode mudar o horizonte

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18 Outubro 2021

 

A cientista política Nancy Fraser conversou com a Jacobin sobre a profunda crise capitalista em que vivemos e como ela está destruindo o campo social, ambiental e político. Sem uma intervenção dramática, podemos terminar vivendo sob o que ela tem denominado de “capitalismo canibal”.

Ao longo das últimas três décadas, a teórica política Nancy Fraser tem fornecido à esquerda algumas de suas ideias mais convincentes. 

Nancy Fraser é professora de filosofia e política na New School for Social Research. É co-editora do livro "Feminismo para os 99%"(Boitempo 2019) e autora do livro "O velho está morrendo e o novo não pode nascer" (Autonomia Literária 2020).

Por vezes, essas ideias são inquestionavelmente políticas, como quando Fraser convoca o feminismo a cortar os laços com a elite econômica e abraçar políticas da classe trabalhadora que possam atacar as raízes da opressão. Outras vezes, são poderosamente teóricas, como quando Fraser analisa a interação entre o capitalismo e as “condições de fundo” das quais o capitalismo depende e que não é capaz de subordinar completamente.

Em seus trabalhos mais recentes, encontramos uma Fraser que avança uma síntese entre prática e teoria, interessada em evitar os desastres em curso do que ela chama, em seu próximo livro, de “capitalismo canibal”: a possibilidade de que o capitalismo, ao invadir todas as esferas da vida, possa destruir suas — e, mais importante, as nossas próprias — condições de sobrevivência.

Em uma entrevista recente ao editor da Jacobin América Latina, Martin Mosquera, Fraser explica que o seu interesse reside em promover um raio-X do capitalismo moderno e suas crises a fim de fornecer aos ativistas uma espécie de mapa para a agir politicamente, como parte de um coletivo ainda maior.

A esquerda, afirma Fraser, está começando a recuperar um senso de poder unificado depois de décadas obcecada com sua fragmentação em subunidades menores e voltadas para si mesmas. Contudo, ainda há muito trabalho pela frente. Para construir poder coletivo, precisamos compreender melhor como todas as partes da moderna sociedade capitalista se conectam. Nós precisamos, Fraser insiste, abraçar um movimento de estilo populista no qual as diferentes queixas de cada um possam se expressar, mas permaneçam unificadas em uma agenda socialista que nos dê uma visão comum sobre a direção que estamos tomando.

Em sua entrevista com Mosquera, Fraser fala sobre os futuros cenários que espreitam o horizonte caso não tomemos ações decisivas para minar o poder do capital e sobre os desafios de se construir uma frente comum para lutas políticas.

 

A entrevista é de Martín Mosquera, publicada por Jacobin, 11-10-2021. A tradução é de Natanael Alencar e Isadora Xavier.

 

Eis a entrevista.

 

Em seu trabalho mais recente, você desenvolveu o que chama de “uma concepção expandida de capitalismo”. Por que os conceitos de capitalismo existentes precisam ser expandidos? É por que estão focados no capitalismo como um sistema econômico? 

 

Sim, exatamente. Desenvolvi uma concepção expandida de capitalismo para fugir das versões base-superestrutura do marxismo, que enxergam os sistemas econômicos como o real alicerce da sociedade, enquanto tratam todo o resto como mera “superestrurura”. Nesse modelo, a causalidade flui apenas em uma direção, da base econômica à superestrutura político-legal. E isso é profundamente inadequado. Minha alternativa foca em repensar a relação econômica entre o subsistema econômico da sociedade capitalista e o plano de fundo de suas necessárias condições que a tornam possível — processos, atividades e relações que são absolutamente essenciais para a economia capitalista, como a reprodução social, natureza não-humana e bens comuns.

Isso complica a clássica figura da base-superestrutura. Dizer que algo é uma condição de fundo necessária significa que o sistema econômico capitalista não pode funcionar sem ela: a capacidade do capitalismo de comprar força de trabalho e colocá-la em funcionamento, de acessar matérias-primas e energia, de produzir commodities e vendê-las com lucro, de acumular capital, nada disso acontece a não ser que essas condições “não-econômicas” estejam em seus lugares. Portanto, essas condições de fundo possuem seu próprio peso causal. Eles não são “epifenômenos”.

 

 

Tome o exemplo da reprodução social: as atividades, geralmente desempenhadas por mulheres fora da economia oficial, que sustentam os seres humanos que constituem o “trabalho”. Então, por exemplo, o parto, o cuidado, a socialização e a educação de novas gerações; mas também a restauração dos trabalhadores adultos, que têm de estar alimentados, limpos, vestidos e repousados para voltar ao trabalho no dia seguinte — tudo isso é necessário para o funcionamento da economia capitalista. Esse argumento foi desenvolvido por feministas que estavam elaborando a teoria da reprodução social, que é uma variante do feminismo marxista. Ela indica que se a reprodução social sair dos eixos, haverá sérios problemas para a produção econômica. E isso significa que a acumulação de capital é restringida por relações de parentesco, taxas de natalidade e de mortalidade, etc. Portanto, complicamos um quadro de causalidade unidirecional.

Um caso paralelo pode ser estabelecido a respeito das condições naturais ou ecológicas subjacentes. A produção e a acumulação capitalistas pressupõem a disponibilidade das coisas materiais das quais a produção depende –– matéria-prima, fontes de energia, estações para despejo e tratamento de dejetos. E caso essas condições sejam comprometidas, isso também pode obstruir os trabalhos. Temos um interessante exemplo nesse momento com a Covid-19, que é, em certo nível, uma desfunção ecológica. O vírus emergiu como ameaça para os seres humanos por um transbordamento zoonótico, uma transferência dos morcegos para nós por meio de espécies intermediárias, possivelmente pangolins, provavelmente resultado de uma migração induzida de espécies por causa do clima — ou do “desenvolvimento”.

O resultado tem sido uma enorme contração do sistema econômico como um todo. A Covid-19 é um ótimo exemplo de causalidade que se dá por outros meios.

 

Conforme você destacou, o capitalismo não é um sistema econômico completamente autônomo, no sentido de que ele parte e depende de condições de fundo que são, de alguma forma, externas a ele. Porém, ainda que todas essas esferas sejam relativamente independentes umas das outras, o sistema econômico ainda consegue agir e transformar essas outras esferas. Esta não seria uma das peculiaridades do capitalismo, que ele possua a capacidade de moldar áreas fora dele, tal como a natureza? 

 

Definitivamente, existe algo especial sobre a economia capitalista que a dota de um imenso dinamismo causal: o imperativo de acumular capital e de expandir “valor” sem limites. Da forma que a conhecemos, uma economia capitalista não admite que você faça algum dinheiro e relaxe para curtir a vida em sua mansão, gastando tudo. Em vez disso, há o imperativo de reinvestimento, voltado para gerar ainda maiores quantidades de valor excedente, lucros crescentes e mais capital. É uma força poderosa, que inclina os detentores de capital a forçar os limites, a tentar torcer as condições não-econômicas às suas vontades. Entretanto, a capacidade deles de fazer isso não é absoluta. Está sujeita a resistências, inclusive da natureza, que procede em seu próprio ritmo, em sua própria programação. A temporalidade da reprodução ecológica não está, no fim das contas, dentro do controle capitalista. Dessa forma, é sensato falar de esferas “relativamente autônomas” que são postuladas como “não-econômicas”.

Todavia, o impulso expansionista do capital é uma compulsão cega, brutal e está entranhado no sistema. É muito mais poderoso do que a vontade de seres humanos individuais que possuem o seu próprio capital e são incentivados a expandir seu valor — como se estivessem realizando “suas vontades”. Esse impulso é tão poderoso que tem sido bem sucedido em rearranjar suas próprias condições de fundo (família, natureza, formas de Estado e daí por diante), não obstante dentro de alguns limites, como disse antes. O que estou tentando sugerir é que os marxistas estão totalmente certos em insistir no poder e na força modeladora da dinâmica de acumulação. Mas é um erro traduzir essa ideia em um quadro de causalidade do tipo base-superestrutura. Há muitos reveses, pois essas condições de fundo tem suas próprias gramáticas e temporalidades de reprodução e porque elas abrigam valores “não-econômicos” aos quais as pessoas dão importância e que influenciam suas ações.

 

 

Você mencionou que a crise da Covid-19 é um exemplo dramático de como essas externalidades interagem com o capitalismo de maneiras complicadas, levando ao tipo de crises capitalistas que você tem descrito como “multidimensionais”. Em outra ocasião, você também sugeriu que, pelo menos desde 2008, o atual estágio do capitalismo neoliberal financeirizado atravessa uma crise — talvez terminal — que pode eventualmente significar uma mudança histórica rumo a uma forma de acumulação capitalista diferente. Como você avalia a atual crise?

 

Eu quero sublinhar vários pontos que já estão implícitos na forma que você colocou a questão. Um deles é que devemos distinguir entre crises setoriais e crises generalizadas. Uma crise setorial significa que existe uma área significativa em dado regime de acumulação capitalista ou uma fase do desenvolvimento capitalista que é notoriamente disfuncional, ao passo que outras parecem mais ou menos bem. Geralmente, tendemos a pensar sobre crises econômicas como crises setoriais exatamente dessa forma. Historiadores poderiam indicar vários exemplos de tais crises setoriais que pertencem a apenas um reino da sociedade. Mas isso é diferente de uma crise generalizada na ordem social como um todo. O conceito de crise generalizada sugere uma convergência ou sobredeterminação de diversos e importantes impasses e disfunções. Não apenas um setor, mas todos ou praticamente todos os principais setores da sociedade estão em crise e agravam a situação um dos outros. Esse foi o caso dos anos 1930, por exemplo.

 

 

Suspeito que estamos atravessando uma crise geral desse modelo agora. Certamente, temos visto severas formas de crises econômicas, como a dissolução financeira de 2007-8. E embora possa parecer que nossos governantes encontraram soluções, aquela crise ainda não foi realmente resolvida. A financeirização pervasiva segue sendo uma bomba relógio. Porém, segundo mostra relatório do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC), nossos infortúnios convergiram com outra crise muito grave, ainda mais catastrófica: o aquecimento global. Essa crise ecológica vem sendo fermentada há muito tempo e agora se torna palpável. Mais e mais segmentos da população global, incluindo segmentos que tinham se mantido relativamente a salvo dos seus piores efeitos, estão despertando para o problema.

Há também, como disse antes, uma crise na reprodução social, que coloca uma pressão ou acaba esgotando nossas capacidades de criação, cuidado e sustento de seres humanos: assistência às crianças e aos idosos, cuidados voltados para a saúde e para a educação. Na medida em que o Estado desinveste no orçamento público e os rebaixados níveis salariais nos forçam a devotar mais horas ao trabalho pago, o sistema devora o tempo e a energia necessários para o trabalho relacionado ao cuidado. Portanto, esse setor está em crise também, especialmente em condições pandêmicas. Alguém poderia dizer que a Covid-19 exacerbou agudamente as crises pré-existentes na reprodução social. Mas também poderia ser dito de forma igualmente acertada que as crises pré-existentes na reprodução social (incluindo o desinvestimento público em infraestrutura de saúde e em serviços sociais) exacerbaram agudamente os efeitos da Covid-19

Finalmente, também enfrentamos uma grande crise política. Ela é, em certo nível, uma crise de governança, pois mesmo Estados poderosos como os Estados Unidos não possuem a capacidade de resolver os problemas que o sistema produz. Eles estão esgotados, paralisados por congestão e desarmados por megacorporações, as quais são responsáveis por capturar virtualmente todas as agências regulatórias e arquitetar enormes isenções fiscais para si mesmas e para os mais ricos. Destituídos de renda há décadas, os Estados permitiram que suas infraestruturas desmoronassem e drenassem seus estoques de bens públicos essenciais, tais como equipamentos de proteção individual (EPI). Eles são, por definição, impotentes para lidar com questões como crise climática, algo que não está abarcado dentro de nenhuma fronteira jurídica.

O resultado é uma aguda crise de governança no nível estrutural. Mas há também uma crise política em outro nível, uma crise de hegemonia no sentido gramsciano: a vasta deserção da política segundo parâmetros usuais, a partir de partidos políticos e elites que se contaminaram por associações com o neoliberalismo, e a aparição de outrora impensáveis populismos — alguns potencialmente emancipatórios, outros decididamente não. 

 

 

A consequência é que agora nós encaramos um emaranhado de múltiplas crises: econômica, da reprodução social, ecológica e uma crise política de duas faces. Me parece que isso se soma à crise geral da sociedade capitalista. Seus efeitos borbulham por todo lugar, aqui e ali, como um câncer em metástase. Todos os esforços para remediar um surto leva a outros, afligindo novos setores, regiões, populações, até que todo o corpo social esteja em farrapos. A experiência da crise generalizada vem se tornando palpável para muitas pessoas, embora isso não signifique que elas irão se insurgir ou que teremos um clímax revolucionário a qualquer momento. As crises capitalistas podem se prolongar por décadas, infelizmente. Alguém poderia afirmar que toda a primeira metade do século XX até a derrota do fascismo no fim da Segunda Guerra foi apenas uma longa e turbulenta crise do capitalismo liberal-colonial. Portanto, pode ser que tenhamos muito trabalho duro pela frente.

 

A Covid parece ter realmente limitado nossas capacidades de previsão. Apesar disso, parece importante exercitarmos o pensamento sobre diferentes cenários futuros baseados em tendências do presente — ao menos para elaborar guias para nossas ações tendo em vista cenários mais emancipatórios e evitar os mais catastróficos.

 

Concordo. Fico feliz em pensar em cenários possíveis, alertando que não estou fazendo nenhuma previsão. Começaria considerando se a atual crise é “desenvolvimentista” ou “epocal”. É uma distinção que devemos à Escola de Binghamton. Uma crise epocal é uma crise do capitalismo como tal; a resolução requer a superação desse sistema, sua substituição por alguma nova forma de sociedade pós-capitalista. Por contraste, uma crise desenvolvimentista é específica a um dado “regime de acumulação” ou fase no interior da história do capitalismo e pode ser resolvida, ao menos temporariamente, por sua substituição por um novo regime — diferente, mas ainda assim capitalista. Nesse caso, as divisões constitutivas do sistema entre produção de mercadoria e reprodução social, “o econômico” e “o político”, sociedade humana e natureza não-humana, exploração e expropriação não seriam eliminadas, mas “apenas” redesenhadas.

Tais divisões existem de uma forma ou de outra em toda fase do capitalismo, mas são espaços de contradição. Cada uma delas abriga uma tendência à crise (econômica, ecológica, social ou política) que está fadada a causar problemas mais cedo ou mais tarde. Um dado regime pode amaciar ou amansar essas contradições por um tempo, mas não para sempre. Eventualmente, elas eclodem à vista de todos e o regime entra em crise explícita, desencadeando uma busca frenética por soluções — e intensa lutas sobre os contornos dessas soluções. Entretanto, aqueles que estão implicados nessas lutas não tem como saber se o resultado será um novo regime dentro do capitalismo ou uma alternativa pós-capitalista. Isso só fica claro a posteriori, com o benefício da retrospectiva.

Até o momento, toda crise generalizada na história do capitalismo provou ser “meramente” desenvolvimentista. A crise geral da fase mercantil levou ao regime liberal-colonial do século XIX, cuja crise levou, por sua vez, ao regime da administração estatal da metade do século XX, o qual abriu caminho para o capitalismo financeirizado da era atual. Em cada caso, o novo regime desativou temporariamente a crise desenvolvimentista do seu predecessor antes de, eventualmente, sucumbir à sua própria crise. Contudo, muitos atores sociais acreditaram que a crise que estavam experimentando era epocal e chegaria ao fim com a abolição do capitalismo. No entanto, eles subestimaram a inventividade do sistema, a sua capacidade de auto transformação.

Devemos ter essa história em mente conforme tentamos entender nossa própria situação. É possível que alguns aspectos da nossa atual crise possam ser desenvolvimentistas, específicos ao regime financeirizado. Mas não todos. O componente ecológico é o que me faz pensar que podemos estar enfrentando algo diferente, uma crise epocal genuína, cuja resolução requer a superação do capitalismo de uma vez por todas.

 

 

Se assim o for, então existem diversos cenários possíveis. Entre eles estão alguns desejáveis, como o ecossocialismo democrático global. É difícil dizer, é claro, a aparência que ele terá, mas vamos assumir que ele desmantelaria a “lei do valor”, aboliria a exploração e a expropriação e reinventaria as relações entre a sociedade humana e a natureza não-humana, entre a produção de bens e o trabalho de cuidado, entre “o político” e “o econômico”, planejamento democrático e mercados. Esse seria o lado “bom” do nosso espectro de possibilidades. No outro extremo, temos resultados não-capitalistas verdadeiramente terríveis: uma enorme regressão social sob a conduta de brutamontes belicosos ou um regime autoritário global. Há, é óbvio, uma terceira possibilidade, segundo a qual a crise não é resolvida de fato, mas simplesmente continua sua orgia de auto-canibalismo da sociadade até que reste muito pouco de algo que reconhecemos como humano. 

 

Como afirmei, não estou fazendo nenhuma previsão aqui. Mas eu diria que se essas forem as nossas opções atuais, deveríamos começar a lutar com todas as forças pelo primeiro cenário. E isso significa trabalhar na construção de um novo bloco contra-hegemônico que possa unificar todas as potenciais forças emancipatórias por trás de um projeto de transformação eco-social. Em um artigo recente para a New Left Review, tentei esboçar essa estratégia e explicar o pensamento por trás dela. Minha ideia é que tal projeto é melhor concebido como anticapitalista e transambiental: anticapitalista porque o capitalismo é embutido de uma tendência estrutural à crises ecológicas e esse é o principal motor sócio histórico da mudança climática, transambiental porque as contradições ecológicas do sistema são intrinsecamente enredadas com outras contradições (econômica, política, social) e não podem ser resolvidas abstraindo-as. O desfecho é que os ativistas verdes devem se unir por causas comuns com aqueles que lutam por direitos trabalhistas, moradia e segurança alimentar; por uma reavaliação do trabalho de cuidado e investimento público em reprodução social; contra a expulsão e exclusão de imigrantes; contra despejo de imóvel e terra, contra o autoritarismo e a opressão imperial-racial.

 

O que torna tal coalizão transambiental possível, em princípio, é o “conveniente” fato de que todos esses males sociais encontram suas raízes em um mesmo sistema social — o capitalismo. Esse sistema poderia, ou melhor, deveria ser tratado como o inimigo comum dos vários parceiros da coalizão e com um foco convergente de seus vários ativismos. Se adotassem uma postura anticapitalista, as correntes ecopolíticas atualmente divididas poderiam unir forças umas com as outras — e com os movimentos sociais “não ambientais”. Estou pensando em movimentos pelo decrescimento, justiça ambiental e pelo Green New Deal, que encontram-se desarmônicos hoje em dia. Da forma que os vejo, cada um dos três possui percepções genuínas e pontos cegos que os fragilizam. Aposto que os insights poderiam ser amplificados e os pontos cegos corrigidos se essas correntes fossem rearranjadas em um bloco contra-hegemônico de caráter transambiental e anticapitalista. Nesse caso, seus programas específicos, como o Green New Deal, pareceriam menos como fins em si mesmos e mais como “estratégias socialistas de transição” (para usar a velha formulação trotskista) em vista de uma transformação mais radical, que podemos chamar de “ecossocialismo democrático”.

 

 

De qualquer forma, é impossível dizer exatamente o que e quando vai acontecer, porque isso depende, obviamente, do que as pessoas fazem. O que eu mesmo estou fazendo nestes dias são tentativas de esclarecer a dinâmica da crise atual em suas várias dimensões. Meu objetivo é traçar um mapa da totalidade social na qual ativistas em potencial podem localizar suas várias preocupações, que de outra forma tendem a permanecer parciais e desconectadas. Dessa forma, espero transmitir uma ideia de onde e como essas várias preocupações se encaixam no quadro geral; bem como mapear a situação entre as forças sociais em conflito. Meu objetivo maior é prático: esclarecer como essas forças e essas preocupações podem ser mobilizadas de maneira mais eficaz em nome de uma resolução emancipatória da crise.

 

O que você descreve parece um pouco com uma estratégia populista: a ideia de que a sociedade é composta de interesses e preocupações inerentemente parciais, onde o desafio consiste em fazer com que essa diversidade de interesses sedimentem-se em um agente político coerente. Você também falou em favor do populismo de esquerda no passado, mas os eventos recentes parecem sugerir que, enquanto movimento, possuem viabilidade política limitada. Enquanto isso, o populismo de direita parece ter um melhor desempenho histórico.

 

Comecei a pensar seriamente sobre populismo logo após o Ocupe Wall Street. Eu fiquei muito impactada com a retórica dos 99% e dos 1%, que é quintessencialmente populista. Mesmo não possuindo a precisão e o rigor analítico de uma análise de classe, é imediatamente compreensível e poderosamente efetivo. Foi maravilhoso como essa linguagem foi rapidamente absorvida nos Estados Unidos. Isso se deu, em parte, porque foi bastante amplificada por Bernie Sanders, que falava sobre um “sistema manipulado” em favor da “classe dos bilionários”. Essa palavra, “manipulado”, provou-se incrivelmente poderosa, algo que não escapou a Donald Trump, que um tempo depois se apropriou dela e deu um sentido diferente. 

 

Em todo caso, a irrupção dessa linguagem populista no universo político dos Estados Unidos foi dramática. Foi não apenas o prenúncio de uma grande cisão na hegemonia neoliberal, mas também rompeu com a retórica particularizante que prevalecia em alguns círculos de “esquerda”, que se encontravam até então engajados em compartimentar categorias políticas (tais como “mulheres”) em partes ainda menores, em unidades mais distintas. Falar no confronto dos “99%” contra os “1%” foi em uma direção oposta, rumo à coletividade mais ampla. Isso me fez perceber um crescente interesse, nos Estados Unidos, na construção de uma vasta coalizão de esquerda. Pareceu expressar uma fome que as pessoas sentiam, talvez sem nem mesmo perceber, por uma análise centrada em conexões, que pudesse ajudar a superar a fragmentação da esquerda e construir uma frente unificada — vejo tudo isso como sinais positivos.

 

Ao mesmo tempo, a aproriação de Trump da retórica populista tornou imperativo distinguir um populismo de esquerda e um populismo de direita. Cada um deles oferece um mapa de hierarquias sociais, quem está acima e quem está abaixo, quem está com o pé na cabeça de quem. Contudo, os dois mapas diferem agudamente. O populismo de esquerda é binário, divide a sociedade em dois grupos: uma pequena elite oligárquica que acumula enormes riquezas às custas da grande maioria — decorre disso o seu projeto de mobilização dos “99%” contra os “1%”. Em contraposição, o mapa do populismo de direita é tripartite, divide a sociedade em três grupos. No topo está a elite “sanguessuga”, na base, miseráveis dependentes e ao meio, acossada por ambos, está o virtuoso “cidadão de bem”. Desse modo, o populismo de direita tem como alvo os 1%, mas também imigrantes, pessoas não-brancas, sexualidades minoritárias, etc. Tanto a representação da sociedade quanto o projeto político são muito diferentes.

 

Uma segunda diferença é que o populismo de direita define seus inimigos em termos particularistas e substantivos. No linguajar de alguns apoiadores de Trump, por exemplo, aqueles que estão no topo são “a cabala judaica-pedófila internacional”, enquanto aqueles que estão na base são “mexicanos estupradores” ou “folgados”, ambos os extremos caracterizados concretamente, em termos culturais. Em contraste, o populismo de esquerda define o inimigo funcionalmente, em termos do papel que desempenha no sistema social — daí o uso de “Wall Street” ou “classe biblionária”. É verdade, evidentemente, que termos funcionais podem deslizar para termos identitários, como quando “Wall Street” muda para “banqueiros judeus”. Portanto, não existe um muro absoluto entre os dois populismos e deve haver muito cuidado por aqueles da esquerda para deter qualquer deslize iminente. Todavia, essa diferença entre eles, como a anterior, é política e moralmente relevante. Não esqueçamos: a sociologia “funcional” binária do populismo de esquerda está tão longe da verdade quanto o identitarismo tripartite da direita. A esfera financeira realmente expropria a imensa maioria no capitalismo contemporâneo, ao passo que “a subclasse” não acossa de fato o “cidadão de bem”.

 

A próxima questão é se o populismo de esquerda, assim definido, pode servir como uma formação de transição que conquiste vitórias, aumente o alcance delas, acentue suas críticas sociais e se torne mais radical. Também é o caso saber se ele pode educar as pessoas no decorrer da luta, elucidando pontos a respeito do sistema contra o qual se está lutando, explicando exatamente de que forma esse sistema é manipulado. Não tenho tanta certeza se haverá sucesso na geração de insights genuínos relativos ao real modo de funcionamento do “sistema” e o que realmente precisa ser feito para transformá-lo. Suspeito que será preciso alguma ajuda dos marxistas nesses últimos pontos. Mas vamos ver o que acontece.

 

Agora, tendo dito isso, eu concordo completamente com você que o histórico do populismo de esquerda em comparação ao seu rival à direita não é impressionante. Certamente, o populismo de direita tem sido mais bem sucedido em conquistar e em manter o apoio de um grande número de pessoas. Contudo, parte do problema é o papel vergonhoso que ele desempenha em vários países por partidos e líderes supostamente social-democratas e socialistas em instalar ou consolidar o neoliberalismo: Bill e Hillary Clinton nos Estados Unidos, Tony Blair na Inglaterra, Gerhard Schröder na Alemanha. Ambos os populismos se desenvolveram em resposta a esse fiasco, mas a variante de esquerda tem se revirado para diferenciar a si mesma desses “neoliberais progressistas” que nos legaram a financeirização, ainda que eles tenham tentado capturar a base da classe trabalhadora que desertou daqueles partidos.

 

Em todo caso, eu não vejo nenhuma outra estratégia disponível. É crucial para a esquerda cortejar as frações da classe trabalhadora que hoje apoiam o populismo de direita. E essa é uma operação muito delicada. Por um lado, não devemos ceder um milímetro aos racistas de carteirinha que pertencem a esse grupo. Por outro lado, não devemos assumir que estes constituem a esmagadora maioria da classe trabalhadora que vota em Trump ou Jair Bolsonaro. Se fizermos isso, o jogo acabou. Devemos começar, ao invés disso, assumindo que uma considerável parte desses eleitores pode ser conquistada pela esquerda, através do populismo de esquerda. E sabemos que, de fato, alguns deles votaram, não faz muito tempo, em figuras como Lula e Barack Obama, só depois mudando de posição, quando suas esperanças foram desapontadas. O que o populismo de esquerda pode e deve fazer é validar suas mágoas legítimas, ao mesmo tempo em que disponibiliza diferentes interpretações para o que está por trás delas, explicando quem exatamente manipula o quê, porquê o foco em uma subclasse menosprezada é um beco sem saída e porquê eles nunca serão fortes o suficiente para derrotar o real culpado (o capitalismo e o setor financeiro global) se apoiarem partidos que dividem a classe trabalhadora. Em outras palavras, nossa melhor esperança nesse momento é que o populismo de esquerda possa, em seu tempo, desenvolver-se e tornar-se algum novo tipo de movimento socialista.

 

 

Como a luta de classes se encaixa na evolução do populismo de esquerda até um movimento socialista? Alguns poderiam argumentar que o populismo enfatiza a unificação de múltiplos antagonismos num “povo” simbólico que não é totalmente compatível com a política socialista — ou ao menos com a versão da política socialista que entende o poder da classe trabalhadora como “estrutural”, ou seja, começando no ponto da produção, onde trabalhadores podem potencialmente usar o poder que eles têm como produtores para gerar ganhos políticos materiais.

Parece que o seu pensamento sobre o que você chama de lutas de fronteira contém pistas. Pode-se ter a impressão de que a luta de classes toma a aparência das lutas de fronteira no contexto da sua concepção expandida de capitalismo. Parece justo?

 

Ao menos dentro do marxismo tradicional e do socialismo mainstream e dos movimentos de trabalhadores, há uma tendência histórica de pensar a luta de classes num sentido estreito, ou seja, como lutas no momento da produção pela taxa e distribuição de mais-valia extraída dos trabalhadores assalariados nas fábricas. E aí, claro, é esperado que essas lutas se expandam para além das portas da fábrica, desenvolvam uma dimensão política, e adotem outras causas. Mas eu ainda acho que, de maneira geral, essa imagem da luta de classes, como essencialmente preocupada com o trabalho assalariado em contextos industriais, continua sendo uma imagem muito poderosa. 

 

Essa imagem da luta de classes levou muita gente a argumentar contra o que Chantal Mouffe e Ernesto Laclau chamaram “essencialismo de classe”. Nesses debates, defendia-se que a luta de classes não é o único tipo de luta nas sociedades capitalistas, e que ela não tem o monopólio sobre o que constitui uma visão justa da sociedade. Os que denunciaram o essencialismo de classe dizem que socialistas e marxistas não têm o monopólio da nomeação de todas as formas de opressão e injustiça. E, de fato, sociedades capitalistas foram historicamente espaços nos quais tremendas lutas por causa de trabalho não-livre e dependente e várias outras formas de opressão ou dominação que não se enquadram nos parâmetros convencionais de lutas de classe. Em outras palavras, uma posição diz: “A luta de classes tem um significado muito específico e, portanto, precisamos validar lutas que não são de classes, que possuem um outro sentido.”

 

Porém, em outra perspectiva, alguém poderia dizer que o problema está na estreita definição de luta de classes. Se considerarmos novamente a primeira parte da nossa conversa, é a concepção expandida de capitalismo que discutimos que nos permite ver os conflitos de classe sob uma luz diferente. Da mesma forma que o capitalismo não é apenas uma economia, classe não é apenas a luta na esfera da produção. Se você entende o capitalismo como algo que engloba todas essas condições de fundo, que são necessárias para os lugares extremamente especializados onde o valor excedente é acumulado, extraído dos salários do trabalho explorado, você também consegue compreender que a reprodução social é um componente igualmente essencial do sistema, bem como a forma que suas partes se encaixam. Se o mesmo é válido sobre a natureza, os bens públicos, as capacidades regulatórias e as formas legais que nós pensamos como políticas, então pode ser perfeitamente verdade que as lutas que envolvem essas coisas também são anticapitalistas ou pelo menos lutas a respeito dos componentes essenciais do sistema capitalista. Colocadas sob o ângulo correto — o que não acontece — elas também podem ser entendidas como lutas de classes.

 

Lutas pela reprodução social são historicamente, de fato, parte da luta de classes. É o que está por trás de poderosas demandas do movimento trabalhista por um salário familiar. Essa demanda foi tanto uma luta, literalmente falando, pelas condições de emprego, quanto uma luta pelas condições de reprodução social e da vida doméstica. No fim das contas, não foi uma das melhores soluções para as mulheres ou para aquelas parcelas da classe trabalhadora que nunca foram consideradas elegíveis para um salário familiar. Mas, como você pode ver, dependendo de como falamos sobre conflito de classe, as coisas podem se tornar complicadas rapidamente.

 

De certa forma, a melhor solução é redefinir classe e luta de classes de um modo abrangente. Porém, ao mesmo tempo, precisamos ser cuidadosos ao distinguir o que significa dizer que existe um senso diferente de luta de classes. Expresso isso com uma preocupação particular em mente: encontrar melhores formas de promover os tipos de alianças amplas que precisamos para tomarmos os gigantescos poderes que precisam ser confrontados e desmontados.

 

Dizer que estes conflitos aparentemente diversos são todos lutas de classes parece, à primeira vista, abrir possibilidades: estamos nessa juntos e todos temos o mesmo inimigo. Mas, se nós tomarmos esse caminho e adotarmos uma visão expandida do capitalismo — e, portanto, uma visão expandida da luta de classes e da luta anticapitalista —, então recai sobre nós o ônus de nos mantermos muito atentos às maneiras pelas quais tais lutas não se harmonizam imediatamente. É uma tarefa de natureza política e é um trabalho duro. Isso nos leva de volta à ideia do populismo de esquerda: você tem que criar um mapa mostrando como essas lutas se encaixam e como certas maneiras de construí-las tendem a criar desnecessários jogos de soma zero, algo que poderia ser evitado se adotássemos diferentes abordagens.

 

Ao explicar lutas de fronteiras, às vezes introduzo a perspectiva de Karl Polanyi. Sem usar o termo, Polanyi estava realmente focado em lutas de fronteiras entre o que ele chamou de mercado autorregulado — a economia, podemos dizer assim — e a sociedade. O que é intrigante e fértil a respeito dessa abordagem é a ideia de que a luta não é apenas sobre como o valor excedente vai ser distribuído. É sobre o que vai determinar a gramática da vida. Sobre se, em dada comunidade, o capital vai ter ou não a autoridade de fazer o que quiser.

 

Isso faz emergir questões sobre quem na sociedade realmente tem o poder de moldar a gramática da vida. Em sociedades capitalistas, essas são as questões que são sub-repticiamente removidas da agenda política e são legadas, às nossas costas, para o capital e para aqueles que estão encarregados com a acumulação de capital.

 

Falar a respeito de lutas de fronteiras significa tentar ir além de questões de distribuição e chegar a questões de como a gramática da vida social é organizada. As lutas de fronteiras afirmam que há uma questão real e fundamental sobre onde nós traçamos uma linha entre sociedade e natureza, trabalho pago e outras atividades envolvidas no atendimento de relações comunitárias e de parentesco e assim por diante. Essas questões se resumem a: quais são as fronteiras legítimas dentro das quais os mercados podem operar? Quais são as coisas legítimas que podem ser compradas e vendidas? Eu penso que a razão de falar sobre lutas de fronteira envolve afirmar que essas coisas sempre foram contestadas em sociedades capitalistas. Não é que elas consistam em uma alternativa à luta de classe, é que as lutas de classe às vezes tomam a forma de lutas de fronteiras e as lutas de fronteiras — quando as coisas vão bem — às vezes tomam a forma de lutas de classe.

 

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