05 Dezembro 2024
“É verdade que o trabalho de cuidados não remunerado tem sido essencial para o capitalismo há muito tempo. Mas quando digo que o capital de plataforma desmercantiliza o trabalho anteriormente assalariado, falo de algo fundamentalmente diferente. Neste caso, o trabalho não remunerado e não assalariado produz diretamente capital de uma forma que não tem precedentes. A cuidadora que não é paga por causa do patriarcado está suavizando a distribuição do mais-valor na economia capitalista, mas não está produzindo capital diretamente”. A reflexão é de Yanis Varoufakis, em entrevista publicada por Diario Red, 29-11-2024. A tradução é do Cepat.
Yanis Varoufakis (Falero, Grécia, 1961) é economista, ensaísta, ativista e político. Foi ministro das Finanças na Grécia e é cofundador, junto com Bernie Sanders, da Internacional Progressista (IP).
Você é um dos vários teóricos, junto com Cédric Durand, Jodi Dean, Mariana Mazzucato e outros autores e autoras, que especularam sobre a possibilidade de que a hegemonia das Big Tech – ou seja, das grandes empresas de tecnologia (Alphabet/Google, Amazon, Apple, Meta/Facebook e Microsoft), que utilizam algoritmos para construir impérios de dados capazes de funcionar como uma fonte de valor aparentemente ilimitada – desencadeou uma série de processos que nos levam talvez para além das fronteiras do capitalismo. Em seu livro Technofeudalism: What Killed Capitalism, publicado em 2023, você afirma que, assim como no início da era moderna a terra foi suplantada pelo capital produtivo como fator dominante do processo produtivo, no início do século XXI, o capital produtivo foi substituído pelo “capital de plataforma” [cloud capital], o que indica uma mudança em direção a um novo regime de acumulação. Por que, na sua opinião, o capital de plataforma é qualitativamente diferente de outras formas de capital? Qual foi sua evolução histórica?
Antes de mais, permita-me um esclarecimento preliminar. Technofeudalism não é uma análise pós-marxista de um sistema pós-capitalista. É uma análise totalmente marxista do funcionamento contemporâneo do capital, que tenta explicar porque este sofreu uma mutação fundamental. Evidentemente, ao longo dos séculos anteriores, o capital evoluiu das varas de pescar e das ferramentas simples para a maquinaria industrial, mas todos estes instrumentos tinham em comum uma característica básica: eram produzidos como meios de produção.
Agora, ao contrário, temos bens de capital que não foram criados para produzir, mas para manipular comportamentos. Isso ocorre através de um processo dialético pelo qual este seleto grupo de grandes empresas de tecnologia incita milhares de milhões de pessoas a realizarem trabalho não remunerado, muitas vezes sem sequer o saberem, para repor o núcleo patrimonial do seu capital de plataforma. Este é um tipo essencialmente diferente de relação social.
Como surgiu? Como sempre, isto é, através de mudanças quantitativas, graduais e constantes verificadas na tecnologia, que num determinado momento produziram uma mudança qualitativa de maiores proporções. Havia duas pré-condições. Uma foi a privatização da internet, a privatização dos “bens comuns que se originaram da rede mundial de computadores”. Chegou um momento em que para realizar uma determinada ação on-line você tinha que fazer com que seu banco ou uma plataforma como Google ou Facebook verificasse quem você era. Essa foi uma forma muito significativa de cercamento, de mercantilização da ciberesfera e de criação de identidades digitais privatizadas que não existia anteriormente.
Outro fator foi a crise financeira de 2008. Para enfrentar as suas consequências, os Estados capitalistas imprimiram 35 bilhões de dólares entre 2009 e 2023, dando origem a uma dinâmica de expansão monetária em que os bancos centrais, e não o setor privado, foram a força motriz. Os Estados também impuseram a austeridade universal em todos os países ocidentais, o que deprimiu não apenas o consumo, mas também o investimento produtivo. Os investidores responderam comprando ativos imobiliários e investindo dinheiro nas grandes empresas de tecnologia.
Assim, naturalmente, este último tornou-se o único setor capaz de transformar aquela torrente de recursos líquidos criada pelos bancos centrais em bens de capital. O seu capital social tornou-se tão substancial e deu aos seus proprietários um poder tão grande para influenciar o comportamento e extrair rendas, que introduziram um ponto de ruptura no funcionamento tradicional do sistema capitalista. E isso aconteceu de forma totalmente acidental: um caso clássico de consequências imprevistas, que não teve a intenção explícita nem mesmo das próprias empresas de tecnologia.
Evidentemente, se estamos ou não entrando numa era pós-capitalista depende da nossa concepção de capitalismo. Argumentou-se que a definição de capitalismo cunhada por Robert Brenner, que o considera como um sistema no qual a coerção do trabalho e, portanto, também a acumulação de capital são completamente mediadas pelo mercado, nos leva a algo semelhante à tese do tecnofeudalismo, dada a proeminência dentro do atual modelo de acumulação da coerção “extraeconômica”, se esta for expressa na forma de um poder político forte disposto a proteger os monopólios e garantir a canalização de benefícios para as camadas superiores da estrutura social ou através de formas de controle algorítmico. Mas outros pesquisadores, por exemplo, Morozov, rejeitam esta concepção brenneriana como muito restritiva, uma vez que o capitalismo sempre implicou uma interação complexa entre as esferas econômica e extraeconômica. O que você responde a esse raciocínio?
Eu não sou brenneriano. Minha concepção de capitalismo vem diretamente de Marx, que o considera baseado em duas grandes transformações: a transferência de poder dos proprietários da terra para os proprietários das máquinas após os cercamentos das terras comuns ou ainda não mercantilizadas e a passagem da acumulação de riqueza através da forma de renda àquela verificada através da acumulação de lucros.
A primeira destas transformações desencadeia um processo aparentemente interminável de mercantilização, uma expansão perpétua do mercado em todas as áreas da vida. A segunda consagra o mais-valor, isto é, a quantia que o capitalista pode extrair do trabalho uma vez pagos os custos gerais de produção, como o objetivo principal do investimento.
A minha convicção de que ultrapassamos o capitalismo desenvolveu-se a partir de uma observação muito simples: se olharmos para a Amazon.com, percebemos que não é um mercado. É um feudo digital ou capital de plataforma. Partilha certas características com os feudos de antigamente: existem fortificações à sua volta, existe um “senhor” que o possui, etc. Mas, ao contrário destas estruturas pré-modernas caracterizadas pela preeminência da terra e pela existência de meros cercamentos físicos, os feudos nas nuvens são construídos através de capital de plataforma e operados por um sofisticado sistema de planejamento econômico, um algoritmo que teria sido o sonho de consumo da Gosplan, o ministério de planejamento soviético.
Lembremos que a cibernética foi desenvolvida na União Soviética. Os soviéticos usavam o termo “algoritmo” para se referir a um mecanismo cibernético que substituiria os mercados por um método diferente de adequar as necessidades aos recursos. Se a Gosplan tivesse à sua disposição a sofisticação tecnológica, por exemplo, do algoritmo da Amazon, a URSS poderia muito bem ter sido uma história de sucesso a longo prazo.
Hoje, no entanto, os algoritmos não são usados para fazer o planejamento em nome da sociedade em geral, mas para maximizar as rendas geradas na nuvem pelo capitalismo de plataforma para os seus proprietários. A reprodução do capital de plataforma, bem como dos feudos digitais na nuvem que ela erige, destrói não apenas a concorrência comercial, mas também mercados inteiros. Então, o mais-valor residual produzido no setor capitalista convencional (fábricas e similares) está sujeito à apropriação como renda capturada na nuvem pelos proprietários do capital de plataforma. Desta forma, o lucro fica marginalizado e a acumulação de riqueza depende cada vez mais da extração de renda através do capitalismo de plataforma.
Você escreve que enquanto o capitalismo mercantilizou o trabalho, o tecnofeudalismo está fazendo o contrário: desmercantilizando-o. Ou seja, as referidas grandes empresas de tecnologia apostam na exploração que ocorre fora do mercado de trabalho, mediante a substituição do trabalho remunerado pela coleta de dados. Mas, não diriam os teóricos da reprodução social que o capitalismo sempre fez algo semelhante, extraindo valor de formas de trabalho não monetizadas?
É verdade que o trabalho de cuidados não remunerado tem sido essencial para o capitalismo há muito tempo. Mas quando digo que o capital de plataforma desmercantiliza o trabalho anteriormente assalariado, falo de algo fundamentalmente diferente. Neste caso, o trabalho não remunerado e não assalariado produz diretamente capital de uma forma que não tem precedentes. A cuidadora que não é paga por causa do patriarcado está suavizando a distribuição do mais-valor na economia capitalista, mas não está produzindo capital diretamente.
No capitalismo, o capital é produzido exclusivamente pelo trabalho assalariado. Se um industrial têxtil quisesse uma máquina a vapor, teria de ir a James Watt e encomendá-la, e teria de pagar aos trabalhadores encarregados da sua produção uma quantia suficiente para que eles fornecessem a sua força de trabalho.
Numa empresa como a Meta, grande parte do seu capital social não é produzido pelos seus funcionários, mas pelos usuários espalhados pela sociedade em geral: pessoas não remuneradas, que, como “servos da nuvem” do momento presente, entram em contato com seus algoritmos e trabalham de graça para imbuí-los de uma maior capacidade de atrair outros servos da nuvem.
Esta é a razão pela qual afirmo que o capital de plataforma supõe a mutação do capital numa nova estirpe que, pela primeira vez na história, já não é um meio de produção produzido, mas um meio produzido a partir da modificação do comportamento, que é em grande parte, senão inteiramente, fabricado pelo trabalho não remunerado.
A hipótese do tecnofeudalismo tende a ver rendas e lucros como estruturalmente opostos e que as primeiras suplantam os últimos, substituindo o dinamismo e a inovação capitalistas pela estagnação e a oligarquização. Mas Marx mostra como a busca de rendas nem sempre precisa neutralizar os ganhos de produtividade; na verdade, no início do capitalismo, esta dinâmica fez praticamente o contrário, uma vez que encorajou os capitalistas a desenvolver as forças produtivas para cobrir os custos impostos pelos proprietários de terras sobre os custos de produção na forma de renda. É possível que, de forma semelhante, as rendas geradas pelo capital de plataforma possam restaurar a rentabilidade capitalista em vez de asfixiá-la? E se a relação entre os dois for menos antagônica do que você propõe?
Marx reconheceu que a busca de renda pode impulsionar o desenvolvimento, mas também concordou com Ricardo que se, como proporção da renda total, ultrapassar determinado limite, então torna-se um obstáculo ao crescimento capitalista. Hoje, as rendas do capitalismo de plataforma são tão exorbitantes que estão tendo claramente esse efeito. De fato, eu arriscaria dizer que, se tirássemos da Bolsa de Valores de Nova York as empresas cotadas que prosperam graças aos rendimentos gerados pelo capitalismo de plataforma, seus valores entrariam em colapso.
Numa escala mais microeconômica, não esqueçamos que a Amazon fica com até 40% do montante de um determinado produto vendido na sua plataforma, uma percentagem que mal deixa qualquer excedente para o vendedor reinvestir. E quando você tem renda sendo desviada da economia, do fluxo circular de renda, então o setor capitalista fica privado de recursos e torna-se cada vez mais subordinado ao setor da renda gerada pelo capital de plataforma.
Não que o setor capitalista tenha deixado de existir, uma vez que, de modo crucial, ainda é responsável por todo o nosso mais-valor produzido na economia, de acordo com a teoria do valor-trabalho. Mas é relativamente pequeno comparado a este crescimento parasitário, que se tornou tão colossal que, como eu disse, a quantidade se tornou qualidade e, portanto, todo o sistema se transformou.
A maior parte dos grandes monopólios intelectuais, proprietários da infraestrutura digital da qual depende a economia mundial, estão sediados nos Estados Unidos, o que poderia ser interpretado como um sinal de que, apesar do debate em curso sobre a emergência de uma ordem global multipolar, o império estadunidense goza de boa saúde. Mas você escreve que a China conseguiu algo que o Vale do Silício não conseguiu, ou seja, realizar uma fusão bem sucedida do capital de plataforma com alguns grandes atores do setor financeiro. Quais são as implicações disto para a Nova Guerra Fria travada pelas potências?
Na minha opinião, o que temos agora diante de nós é uma ordem bipolar, que não é o que a China quer. O que é surpreendente no Partido Comunista Chinês é que realmente não quer governar o mundo, ou mesmo ser um segundo polo hegemônico que se oponha ao primeiro. O que os seus dirigentes querem é governar a China, além de todos os lugares que sentem que ela perdeu, como o Tibet, Hong Kong e Taiwan, e negociar livremente com outros países.
Os chineses gostariam realmente de um mundo multipolar em que compartilhassem o poder com os seus parceiros comerciais, mas o problema é que só têm uma forma de conseguir isso, que é utilizar o seu setor tecnológico em concertação com os atores mais poderosos do setor financeiro para criar algo semelhante ao sistema de Bretton Woods dentro dos BRICs. Isto implicaria taxas de câmbio fixas, de fato essencialmente uma moeda comum apoiada pelo yuan. Seria um projeto de grande envergadura, equivalente ao criado pelos arquitetos do New Deal quando planejaram a ordem mundial em 1944, na Conferência de Bretton Woods.
Os demais membros do BRICs não estão preparados para isso, como demonstram as enormes tensões entre a Índia e a China. Grande parte do Sul Global também não está preparada para este tipo de multipolaridade. E os próprios dirigentes chineses estão muito reticentes. Mas se não começarem a avançar nessa direção, permanecerão presos num mundo bipolar sino-estadunidense, com todos os riscos que isso implica.
Mas o modelo chinês de uma economia de mercado em que o Estado desempenha um papel ativo na direção e alocação de investimentos, não prejudica potencialmente a premissa de que as já mencionadas grandes empresas de tecnologia ocidentais são agora a força hegemônica no planejamento da economia? Parece possível, pelo menos em teoria, que os países ocidentais, à medida que enfrentam os efeitos da estagnação econômica e da crise climática, optem cada vez mais por soluções neoestatistas. O que isto significaria para o rentismo organizado através do capital de plataforma?
Acredito firmemente que nos países ocidentais subestimamos o papel do Estado e na China o superestimamos. A minha recente viagem à China abriu-me os olhos para o fato de que muitas das ideias ousadas sobre a projeção dos valores e da influência chinesa vêm do setor privado, ao passo que o próprio Estado é muito mais hesitante. (O setor privado é também onde se encontra a maioria dos marxistas, embora não haja muitos deles.)
Entretanto, nos Estados Unidos, pessoas como Eric Schmidt e Peter Thiel estão totalmente interligadas com o Estado: o Pentágono, o complexo industrial farmacêutico, etc. Julian Assange publicou um breve livro intitulado When Google Met Wikileaks (2016), enquanto ainda estava detido na embaixada do Equador em Londres, cuja leitura recomendo vivamente. É uma conversa entre ele e Schmidt, o CEO do Google, e o surpreendente é que, quando este último fala, é impossível dizer se se trata de um representante do Google ou um representante do Estado estadunidense.
Portanto, penso que a ideia de que o Estado esteve separado do mercado no Ocidente, e que talvez agora seja o momento para desempenhar um papel maior, é em si uma ficção libertária. Sempre foi impossível separá-los. E se observarmos atentamente as formas de convergência entre os dois, tanto no Oriente como no Ocidente, confirma-se de fato um notável grau de semelhança.
Quando Elon Musk comprou o Twitter, você escreveu que era uma tentativa de ascender ao círculo dourado dos rentistas do capitalismo de plataforma. Acontece o mesmo com a sua entrada na política? Será que isso implica, como especularam alguns críticos, que a classe dominante estadunidense se sente imperativamente obrigada a comprar o acesso às alavancas do poder político para garantir os seus lucros?
Não creio que seja estritamente necessário para eles. Jeff Bezos não faz isso. Ele usa outros canais de influência, como o The Washington Post. Embora os dirigentes do Google tenham muito a perder com qualquer tentativa de regulação dos seus negócios pela Comissão Federal de Comércio, não parece provável que invistam muita energia no envolvimento na política. Musk é diferente por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque é um megalomaníaco extravagante, cujas decisões não se baseiam necessariamente em nenhum interesse material específico. E, em segundo lugar, porque tem um controle relativamente pequeno sobre o capital de plataforma. As suas empresas – Tesla, Neuralink, The Boring Company – foram todas empresas capitalistas antiquadas. Até a Space X foi construída, paradoxalmente, com capital terrestre.
Seu objetivo era transformá-las em empresas de plataforma e por isso comprou o Twitter: não como um investimento tradicional do qual esperava obter lucros, mas como uma interface com você, comigo, com todos nós; o tipo de interface que outros tinham e ele não. Adquiriu-o de forma bastante grosseira e a empresa perdeu imediatamente metade do seu valor de mercado, um padrão, por outro lado, típico de Musk: há momentos em que a capitalização das suas empresas dispara e momentos em que parece que elas poderiam perder tudo.
O seu envolvimento com a administração Trump, que, aliás, tenho a certeza que não vai acabar bem, deve-se em parte ao desejo de obter alguns favores. A perspectiva de flexibilizar as atuais regulamentações sobre carros autônomos sem condutor deu à Tesla, num único dia, uma capitalização de mercado adicional equivalente à capitalização da General Motors, Volkswagen, Stellantis e Mercedes-Benz juntas.
Portanto, a sua entrada na política está lhe dando bons retornos, mas certamente não é a única razão pela qual tomou esta decisão. Ele também é movido pela ideologia: ao contrário de Bezos ou Gates, ele realmente acredita que é uma força do bem. Agora, esse é realmente um nível único de ilusão.