25 Outubro 2024
Mariana Mazzucato (Roma, 1968), farol acadêmico do pensamento progressista, costuma dizer, brincando, que entra em uma reunião “como economista” e sai “como coach de vida”. Apesar de falar em dinheiro, no discurso da midiática diretora do Instituto para a Inovação e Propósito Público, da University College London (UCL), emergem imediatamente a coragem, a mentalidade, a liderança e o resultado de cada escolha. Refere-se ao papel central que defende para “um Estado empreendedor”, que inova, arrisca, investe, catalisa, condiciona, coordena e colabora em torno de uma “missão”.
O exemplo feliz que ilustra esta ideia é a promessa mobilizadora de viajar à Lua, formulada há 62 anos por John F. Kennedy. Em O Estado empreendedor’, O valor de tudo, Missão economia e no último a chegar: A grande falácia, Mazzucato dá uma sacudida no discurso tradicional da esquerda, bem como no capitalismo. Não basta falar de desigualdade, de redistribuição ou de corrigir as falhas do mercado. “Tomas Piketty e eu somos duas caras da mesma moeda”, destaca a ítalo-estadunidense, em uma entrevista concedida durante o fórum internacional World in Progress Barcelona, organizado esta semana por PRISA, SER e El PAÍS.
A entrevista é de Ariadna Trillas, publicada por El País, 20-10-2024. A tradução é do Cepat.
Diante da enorme concentração de poder econômico, financeiro e tecnológico, que margem real os governos têm, para além de fazer remendos?
Os estados são parte do problema. Com as suas políticas, permitem que o setor financeiro tenha peso maior, que as empresas tecnológicas sejam mais poderosas e que as farmacêuticas operem de forma mais extrativa. Permitirmos a evasão e a elisão fiscais é uma escolha. Fragilizar os sindicatos ou pagar adequadamente os profissionais de saúde que aplaudíamos durante a pandemia, também.
É necessário dinheiro para a transição verde, a digitalização, a inovação, a desigualdade, a segurança... Teme a austeridade das novas e velhas regras fiscais na União Europeia?
A austeridade é um mito. Pensamos em austeridade quando vemos cortes na saúde e na educação públicas. Na realidade, optamos por gastar mais em algumas coisas e menos em outras. A Alemanha dizia que não tinha dinheiro, mas para a guerra na Ucrânia fez um esforço de 190 bilhões de euros. Onde estava esse dinheiro antes? Para a guerra, o dinheiro surge do nada. Para problemas sociais, não existe. É necessária uma guinada. Por outro lado, acreditar que se poupa por não gastar mais em educação, pesquisa e desenvolvimento e saúde é uma forma estúpida de poupar dinheiro. Custará mais corrigir a bagunça.
A polarização na Europa e nos Estados Unidos não facilita as coisas.
Os governos devem ser corajosos. Se se fala de polarização, também é preciso falar de desigualdade. Os cidadãos desconfiam dos governos e das empresas porque são parte do problema. O populismo surge da desconfiança. Na Itália, muitos trabalhadores que não se beneficiaram com a globalização acabaram votando em Giorgia Meloni.
A esquerda perdeu parte da sua base eleitoral. No que ela deveria se concentrar?
A esquerda, e falo em escala mundial, não pensou o suficiente sobre como criar riqueza de forma diferente, para que seja inclusiva e orientada à inovação, às energias renováveis, à saúde e ao futuro da Inteligência Artificial (IA). Se você não gera riqueza, não há nada para distribuir.
Na Espanha, assim como em outros países, não vejo um bom banco público de desenvolvimento do estilo do alemão KfW, que ajude as empresas a avançar na direção correta, por exemplo, para reduzir materiais de produção como o plástico. Os contratos públicos também têm um papel importante. Uma alimentação saudável e sustentável nas escolas pode ser reflexo de como um governo interage com a indústria da alimentação.
Considera que a insistência na falta de competitividade europeia frente aos Estados Unidos e a China, nos relatórios de Draghi e Letta, é compatível com o modelo social europeu?
Em 2013, escrevi O Estado empreendedor justamente contra a mentalidade que diz: “Ah, os Estados Unidos têm todos os amazons e os googles. Por que a Europa não? Precisamos de mais capital de risco, de outro sistema fiscal…”. Foram os grandes investimentos públicos que permitiram o surgimento da indústria tecnológica. O Vale do Silício nasceu fruto de uma incrível rede de empreendimento ao longo de toda a cadeia de inovação. É algo que não existe na Europa, uma questão na qual Draghi não incide.
Meu trabalho não é apenas atuar com uma missão, mas também com a governança, com uma política pública inteligente que permita ao estado receber a sua parte, não apenas via impostos, mas como recompensa pelos seus investimentos. Fracassamos porque os lucros gerados pela tecnologia que é paga pelo Estado não são compartilhados. E ainda por cima, essas empresas atuam para não pagar impostos. Precisamos que se compreenda que inovação e competitividade andam de mãos dadas. Também falta vincular ciência e indústria. E uma aprendizagem adequada para os trabalhadores. É o que leva à competitividade.
Cortaria o Google?
O problema não pode ser abordado como uma questão de tamanho, mas, sim, de governança que vele pelo interesse público.
Como garantir que a IA seja desenvolvida para o bem comum?
Com a IA corremos o risco de repetir os erros do passado. Se as oportunidades relacionadas à inovação e tecnologia não forem estruturadas de forma adequada, acabarão prejudicando as pessoas. Pode agravar a desigualdade e também há riscos em matéria de privacidade. Para onde vão os dados todas as vezes que usamos um aplicativo? Como uma cidade pode utilizá-los para o interesse público, em vez de servirem para que algumas empresas saibam mais sobre nós? O setor público deve garantir que os lucros sejam distribuídos o mais amplamente possível, também no setor da saúde e no farmacêutico, para que não haja abusos com as patentes e os direitos de propriedade intelectual. Por isso, sou a favor de bons acordos.
Quais seriam esses bons acordos?
No Reino Unido, o trabalhista Keer Starmer vence as eleições e já diz que não há dinheiro. Com o Brexit, você precisa de investimento, para as empresas. Mas qual é o seu valor, como governo? Faça com que as empresas invistam. Conceda auxílios, mas em troca introduza condições. Certifique-se de que, em troca, sejam orientadas para o crescimento sustentável, coisa que não se alcança só diminuindo impostos, mas com dinheiro e uma relação público-privada adequada.
Os fundos europeus estão transformando a economia europeia?
Não transformam a economia. Muitas vezes, chovem milhões em países com uma fraca capacidade. Os lucros aumentam, não o investimento. Como garantir que os lucros não sejam apenas para os acionistas, para os dividendos e as recompras de ações? Esta ideia de ser business friendly, de facilitar a vida das empresas, consegue políticas ruins. Não se deve conceder empréstimos públicos para uma empresa porque está com problemas ou porque é pequena ou média, mas, sim, condicioná-los a uma transição.
Como avalia as empresas que pressionam por uma interrupção da transição energética na União Europeia?
É preciso eletrificar e investir na mobilidade sustentável, mas, sobretudo, precisamos de menos carros, elétricos ou não, e de implementar um transporte público em condições. Extrair o lítio para baterias também não é muito sustentável. No México e nos Estados Unidos, o trem é um meio destruído, em favor do automóvel. Os governos foram capturados pela indústria.
E segundo você, também por grandes consultorias.
Em muitos países, deixou-se de investir nas próprias estruturas estatais. Se a capacidade governamental é externalizada, torna-se difícil para que o setor público aplique boas políticas. Também são necessários bons advogados. Sem eles, você não vence. As grandes empresas petroleiras, os bancos e as farmacêuticas têm os melhores.
A transição energética agravará as desigualdades?
A transição deve, acima de tudo, ser justa. Todos esses trabalhadores nas fábricas que produzem carros poluentes precisam de investimento, capacitação, formação, reciclagem. Não podem simplesmente perder os seus empregos. Caso contrário, surgem pobreza, desconfiança e populismo. A transição não pode levar à dessindicalização nas fábricas de baterias. A greve do motor nos Estados Unidos, há alguns meses, foi importantíssima. Sem sindicatos, não teríamos fins de semana, nem férias. E as crianças trabalhariam nas fábricas.
Qual é o papel do PIB como termômetro para saber se uma economia vai como um foguete?
Se você estivesse dirigindo e tivesse apenas um número, bateria. Por que ter apenas um número? No painel, você vê a que velocidade está indo, quanto combustível resta, se o motor precisa de água ou óleo. Não descarto o PIB. É útil para ver se uma economia cresce apenas pelo consumo ou se é pelo investimento. É útil consultar o PIB per capita, pela distribuição. Mas o coeficiente de Gini (sobre a desigualdade) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) também importam.
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“Para a guerra, o dinheiro surge do nada”. Entrevista com Mariana Mazzucato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU