19 Novembro 2024
Enquanto o Brasil se prepara para sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2025, a COP30, o governo brasileiro está enviando uma mensagem poderosa sobre seu comprometimento com a conservação ambiental e o desenvolvimento sustentável. No centro dessa mensagem está a proteção da floresta amazônica, vital para o equilíbrio ecológico do planeta. No entanto, um projeto controverso paira sobre essas declarações: a planejada rodovia BR-319 da Amazônia, uma proposta que desencadeou intenso debate sobre seu potencial de perturbar um dos ecossistemas mais críticos da Terra.
A reportagem é de Monica Piccinini, publicada por The Canary, 18-11-2024.
A reconstrução da rodovia BR-319, no Amazonas, que liga Manaus, capital do Amazonas, a Porto Velho, no extremo sul da floresta, cortando um dos blocos mais preservados da floresta tropical, pode desencadear uma reação em cadeia de crise climática com impactos severos e irreversíveis na Amazônia, no Brasil e em todo o planeta.
Embora o governo brasileiro promova o projeto da BR-319 como essencial para o desenvolvimento econômico regional, ele representa uma das ameaças mais significativas à sobrevivência da Amazônia. Este projeto coloca em risco pelo menos metade da floresta tropical remanescente do Brasil, colocando 69 comunidades indígenas, 64 territórios indígenas e mais de 18.000 povos indígenas em risco.
Mapa de terras e comunidades indígenas impactadas pela rodovia BR-319 do Brasil. Referência: Ferrante et al., 2020.
Durante visita ao Amazonas em setembro, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, demonstrou seu comprometimento e total apoio à reconstrução da rodovia BR-319 ao dizer:
"Esta estrada começará agora a ser construída."
Ele acrescentou que:
"A BR-319 é uma necessidade para o estado do Amazonas, é uma necessidade para Roraima e uma necessidade para o Brasil."
A ambição de Lula de liderar a agenda climática parece entrar em conflito com suas próprias políticas e ações.
Philip Fearnside, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e ganhador do prêmio Nobel da Paz, mencionou:
"Em Manaus, todos os políticos apoiam a reconstrução da rodovia BR-319 – com a condição de que o governo federal, e por extensão, os 99% dos contribuintes que vivem fora de Manaus, paguem a conta. Após mais de duas décadas de desinformação consistente sobre o projeto, quase toda a população local agora o apoia, e questionar a iniciativa seria suicídio político para qualquer candidato."
Ele acrescentou que:
"Repavimentar a rodovia BR-319 ligaria a relativamente intocada Amazônia central à região da Amacro– um hotspot de desmatamento nomeado em homenagem aos estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Embora a Amacro seja promovida como uma zona de desenvolvimento sustentável (ZDS), ela se tornou um grande impulsionador do desmatamento na floresta amazônica."
A BR-319, uma rodovia de 885 km, foi inaugurada em 1976 durante a ditadura militar do Brasil, mas foi abandonada em 1988. Em 2015, sob o governo de Dilma Rousseff, um programa de manutenção foi lançado para reviver a rodovia. Desde então, vários governos fizeram várias tentativas de reconstruir uma seção de 406 km da rodovia.
O efeito espinha de peixe resulta da abertura de ramais ilegais em ambos os lados da rodovia BR-319, criados por grileiros. Esse fenômeno já está se desenrolando ao redor da rodovia, com mais de 6.000 km de extensões ilegais, o que é mais de seis vezes o comprimento da BR-319. Além disso, estradas propostas ao longo da BR-319, como a AM-366, dariam aos desmatadores acesso a uma vasta área de floresta tropical na região Trans-Purus, a oeste da BR-319.
Amazônia brasileira e rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho). Mapa produzido pelo pesquisador Lucas Ferrante no software ArcGIS, dados de desmatamento do INPE 2021.
A reconstrução da rodovia BR-319 pode levar a consequências catastróficas e irreversíveis, incluindo desmatamento generalizado, perda de biodiversidade e degradação ambiental. Também pode alimentar um aumento de atividades ilícitas, como crime organizado, extração ilegal de madeira, mineração e invasão de terras indígenas. Além disso, o risco de saltos zoonóticos e o surgimento de novas pandemias podem aumentar. Esses impactos podem levar a floresta tropical além de sua capacidade de sobrevivência, fazendo com que ela pare de funcionar como um sumidouro de carbono e interrompendo seu papel como um regulador climático regional e global.
Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), discutiu o papel crítico dos rios voadores na regulação do clima:
"Nesta região florestal, ocorre um serviço ecossistêmico ambiental crucial, conhecido como rios voadores, que desempenha um papel crucial na regulação do clima do Brasil. A umidade do Oceano Atlântico é transportada para o continente pela região Norte, onde entra na Amazônia. A evapotranspiração da floresta preservada gera sistemas de alta pressão que produzem chuvas, que então viajam para o sul, fornecendo água para as regiões sudeste, centro-oeste e sul do Brasil."
"Por exemplo, 70% das chuvas que abastecem o sistema Cantareira – responsável por fornecer água para São Paulo, a área mais densamente povoada da América do Sul – se originam dessa região florestal. No entanto, o desmatamento ao longo da BR-319 representa uma séria ameaça a esses rios voadores, e a destruição contínua pode levar a consequências devastadoras para todo o país."
Ferrante alertou que:
"Enfrentaremos severas escassez de água em regiões densamente povoadas, levando à morte das populações mais vulneráveis, interrupções industriais e impactos devastadores na agricultura, tornando essas áreas inabitáveis. Essencialmente, o colapso dos rios voadores desencadeará o colapso dos setores econômicos do país, potencialmente causando perdas anuais de até US$ 500 bilhões (R$ 3 trilhões)."
Um levantamento do Monitor de Incêndios do MapBiomas revela que de janeiro a setembro deste ano, o Brasil viu 22,38 milhões de hectares queimarem, marcando um aumento de 13,4 milhões de hectares em relação a 2023. Isso representa um aumento de 150% em relação ao ano anterior. Mais da metade da área queimada (51%, ou 11,3 milhões de hectares) ocorreu na Amazônia.
Comentando sobre os incêndios na Amazônia e em todo o Brasil, Ferrante declarou:
"É fundamental reconhecer que o Brasil superou suas metas de emissões de gases de efeito estufa, com os maiores níveis originados na Amazônia devido aos incêndios generalizados no bioma."
Espera-se que os incêndios e a seca na Amazônia piorem devido às mudanças climáticas e outros fatores, incluindo a expansão desenfreada do agronegócio, particularmente a pecuária, mineração legal e ilegal, exploração madeireira e produção de biocombustíveis em larga escala — especialmente com o recente aumento do mandato de biocombustíveis anunciado por Lula. Isso é ainda mais intensificado pelo esforço de Lula para extrair “até a última gota” de petróleo. A rodovia BR-319 desempenha um papel central na facilitação desses desenvolvimentos na região.
A floresta amazônica é reconhecida como um dos maiores reservatórios de doenças zoonóticas. Cientistas alertam consistentemente que a reconstrução da rodovia BR-319, em conjunto com as mudanças climáticas, acelerará a degradação florestal causada pela expansão do agronegócio, mineração, exploração de petróleo e gás, atividades ilícitas e projetos de infraestrutura. Isso levaria ao aumento da mobilidade humana e da urbanização, aumentando o risco de transbordamentos zoonóticos - doenças armazenadas na floresta potencialmente passando para os humanos, o que poderia desencadear uma pandemia global ou uma série delas.
O desmatamento na BR-319 já resultou em um aumento de 400% nos casos de malária na região, evidenciando os potenciais danos ambientais causados por esse projeto e seu papel no surgimento de uma nova pandemia global.
Um artigo na Nature relatou que a Amazônia ocidental brasileira está enfrentando seu maior surto confirmado do vírus Oropouche (OROV), com mais de 6.300 casos registrados entre 2022 e 2024. Pesquisadores identificaram uma nova variante genética do vírus e destacaram paisagens florestais fragmentadas e perda de vegetação causada pelo desmatamento e expansão de atividades agrícolas como fatores significativos que impulsionam sua transmissão. A maioria dos casos positivos de OROV em 2022–2023 se concentrou na região Amacro, um hotspot de desmatamento.
Fearnside explicou:
"O desmatamento na floresta amazônica e em outras regiões tropicais aumenta o risco de surgimento de novas doenças humanas ao aumentar o contato entre a vida selvagem da floresta tropical e a população humana e seus animais domésticos. Também contribui para a mudança climática, que pode criar condições que favorecem o surgimento de infecções parasitárias, fúngicas, virais e bacterianas."
A rodovia BR-319 atenderá a uma gama crescente de indústrias nacionais e internacionais, particularmente aquelas focadas nos lucros significativos que uma "bioeconomia" pode gerar. Além disso, desempenhará um papel crucial na facilitação da exploração de petróleo e gás na região, incluindo as operações da Petrobras ao longo da margem equatorial, um projeto que tem o apoio total de Lula.
A empresa russa de petróleo e gás Rosneft também se beneficiará do projeto BR-319, pois detém direitos de perfuração em 14 blocos de petróleo e gás situados a oeste da rodovia, a cerca de 35 km do Rio Purus, dentro da Bacia Sedimentar do Solimões. Essa área intocada é maior que o estado da Califórnia.
Outros setores também ganhariam com o projeto da BR-319, como a expansão do agronegócio, a pecuária, a mineração legal e ilegal, a exploração madeireira e o crime organizado.
Ferrante explicou como a BR-319 está facilitando a expansão do agronegócio, da pecuária e da mineração:
"A BR-319 está acelerando o crescimento do agronegócio na região, especialmente em terras públicas não alocadas ('terras devolutas'). Produtores de soja do Mato Grosso do Sul estão migrando para Rondônia, comprando terras de pecuaristas que, por sua vez, estão se mudando para o sul do Amazonas dentro do corredor da BR-319. Essas terras são frequentemente ocupadas ilegalmente, seja por meio de grilagem, desmatamento ilegal ou despejo violento de comunidades tradicionais."
"Desde 2023, Manaus tem experimentado um aumento nos níveis de fumaça durante a estação seca, principalmente devido aos incêndios florestais que se espalham ao longo das seções recém-pavimentadas da BR-319, onde a pecuária está se expandindo rapidamente. A presença de asfalto acelera o desmatamento, e os incêndios são comumente usados para limpar terras para pastagens."
"Além disso, há uma conexão bem documentada entre grileiros e crime organizado ao longo da BR-319. Grupos criminosos tomam terras, expulsando proprietários legítimos e comunidades tradicionais, e frequentemente usam os lucros para forçar essas comunidades deslocadas a trabalhar em operações ilegais de mineração."
Os apoiadores do projeto da BR-319, incluindo políticos, corporações e indivíduos, apresentaram várias justificativas para a reconstrução da rodovia, citando a seca em curso na região. No entanto, Ferrante ressalta que, apesar da seca, o Rio Madeira continua navegável. Além disso, a BR-319 não se conecta a nenhum dos municípios impactados pela seca, pois eles estão localizados do outro lado do Rio Negro.
(A) Desmatamento ao longo da rodovia BR-319 de 1988 a 2020 (dados do PRODES). O desmatamento em vermelho representa o desmatamento cumulativo de 1988 a 2014 antes do início do programa de “manutenção” da rodovia. O desmatamento em roxo representa o desmatamento cumulativo de 2015 a 2020 (ou seja, durante o programa de “manutenção”). (B) Pontos com grilagem de terras, extração ilegal de madeira, prospecção mineral ilegal e vendas ilegais de terras observados na rodovia BR-319. O mapa inserido da América do Sul mostra a região do “Bioma Amazônia” do Brasil em verde, a Rodovia BR319 como uma linha preta e a área do mapa maior como um retângulo vermelho. Imagem fornecida pelo pesquisador Lucas Ferrante.
O Rio Madeira é há muito tempo a principal rota de transporte na região, correndo paralelo à rodovia BR-319 e oferecendo um meio mais seguro, limpo e econômico de transportar mercadorias.
Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama, órgão ambiental brasileiro, disse ao Amazonia Real em 14 de novembro que, sem uma boa governança, o projeto da BR-319 pode se tornar uma “grande frente de desmatamento”. Ele observou ainda que aqueles que constroem uma estrada não assumem a responsabilidade de administrar a área ao redor, o que continua sendo uma questão altamente controversa.
O governo brasileiro continua a defender a governança ao longo da BR-319, com apoio de algumas ONGs apoiadas por uma organização filantrópica internacional. Esses grupos, no entanto, se recusam a se opor ao projeto da BR-319.
Enquanto isso, membros da polícia federal e do exército brasileiros deixaram claro que qualquer cenário futuro de governança é irrealista, pois os órgãos de fiscalização não teriam os recursos necessários para monitorar a área devido ao seu vasto tamanho, complexidade e perigo. O crime organizado já controla a grilagem de terras e a mineração na região, o que teve um impacto devastador nas comunidades tradicionais.
Quem se beneficia do projeto BR-319? Os principais beneficiários são aqueles que financiam atividades ilícitas, como mineração ilegal e crime organizado, bem como a expansão do agronegócio, produção de biocombustíveis em larga escala, pecuária, exploração de petróleo e gás e o desenvolvimento de uma “bioeconomia”. Esses empreendimentos altamente lucrativos são financiados por stakeholders nacionais e internacionais.
Fearnside mencionou que:
"A avaliação de impacto ambiental (EIA) de 2009 indicou que os líderes empresariais não viam esse projeto como uma prioridade para o centro industrial de Manaus. Nos anos seguintes, o apoio político unânime ao projeto naturalmente levou os empresários a adotarem a mesma posição, dada sua dependência de apoio político. No entanto, estudos acadêmicos avaliando a viabilidade do projeto descobriram que ele era economicamente injustificável. Notavelmente, ele continua sendo o único grande projeto no Brasil sem um estudo oficial de viabilidade econômica (EVTEA), o que dificilmente é uma coincidência."
A reconstrução da rodovia BR-319 não conta com o estudo de viabilidade econômica (EVTEA) exigido pela Lei 5917/1973 e não realizou consultas cruciais com as comunidades indígenas, conforme estipulado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pela Lei Brasileira 10.088/2019 , tornando o projeto da BR-319 inconstitucional.
Após a apresentação de Ferrante no Ministério do Meio Ambiente em 29 de outubro destacando os impactos negativos do projeto BR-319, ele está pedindo a suspensão de todas as licenças e licitações até que sejam realizadas consultas com todas as comunidades indígenas afetadas.
Além disso, ele pede a suspensão da licença de manutenção de toda a rodovia devido aos danos ambientais significativos já causados pelo departamento nacional de infraestrutura de transportes (DNIT) aos ecossistemas, córregos e comunidades tradicionais. Ele ainda solicita a remoção dos ramais ilegais e a desapropriação de todas as áreas ocupadas ao longo da rodovia BR-319 desde 2008.
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BR-319: uma rodovia para o caos climático no coração da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU