04 Abril 2024
O projeto ainda não prevê impacto ambiental significativo em região com 49 terras indígenas e 86 unidades de conservação. Prioridade no novo PAC, a ponte tem conclusão prevista para 2027 e deverá conectar áreas produtoras do agronegócio do Brasil e Bolívia a portos no Atlântico e Pacífico.
A reportagem é de Fabio Bispo, publicada por InfoAmazonia, 28-03-2024.
O trajeto entre Porto Velho, capital de Rondônia, e Guajará-Mirim, município na fronteira com a Bolívia, faz esquecer que estamos na Amazônia. A paisagem no horizonte varia pouco: quando não é gado, é soja a perder de vista, com pouca ou nenhuma floresta. Máquinas e caminhões graneleiros transitam nos dois sentidos da BR-364. Mas, por enquanto, toda essa produção agrícola é transportada pelas estradas até um certo limite geográfico de escoamento, localizado na margem direita do rio Mamoré, no oeste do estado. Do outro lado, está a cidade boliviana Guayaramerin.
É neste ponto da fronteira que o governo federal vai construir a ponte binacional Brasil-Bolívia, um pedido histórico do agronegócio brasileiro, uma das obras prioritárias do novo Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC). A licitação foi lançada no final do ano passado com a promessa de consolidar a ligação transoceânica, conectando as regiões produtoras do Brasil e da Bolívia aos portos com saída para o Atlântico, na bacia amazônica, e para o Pacífico, principalmente nas cidades de Arica, no Chile, e Illo, no Peru.
Com um custo inicial de R$ 430 milhões e previsão de conclusão da obra em 2027, o projeto quer impulsionar o escoamento da produção do agronegócio em uma das regiões mais desmatadas da Amazônia. O principal objetivo é viabilizar a exportação brasileira a custos mais baixos para outros continentes e países, especialmente para China, que é o principal parceiro comercial da América do Sul e que está construindo a maior estrutura portuária do continente em Chancay, a 600 quilômetros da capital peruana Lima. Com a nova ponte, uma viagem à China, por exemplo, levaria 12 dias a menos do que atualmente, podendo gerar uma economia de até 30% nos custos de logística.
“A ponte é uma vértebra da espinha dorsal que vai finalmente ligar o Brasil a esses países e que envolve uma série de outros projetos de rodovias, ferrovias e hidrovias. A infraestrutura, de fato, é uma questão importante nessa região da Amazônia, mas a questão é que não se discute esse desenvolvimento dentro de um planejamento estratégico, em como ele vai se relacionar com as populações locais”, aponta pesquisadora Marta Cerqueira Melo, que estuda a integração logística Brasil-Bolívia da perspectiva das relações internacionais no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP).
Essa economia financeira e logística prevista para o agro não leva em conta, pelo menos até agora, os riscos para a floresta e as comunidades tradicionais. A ponte binacional está inserida no projeto da denominada Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira (SDZ), que abrange 32 municípios nos estados de Amazonas, Acre e Rondônia, região também chamada de AMACRO, para criação de um pólo agrícola.
Nessa região, estão pelo menos 49 terras indígenas (TIs) e 86 unidades de conservação (UCs), incluindo territórios com presença de povos isolados em áreas que já estão invadidas, como é o caso das TIs Karipuna, Igarapé Lage e Uru-Eu-Wau-Wau; e das UCs Parque Estadual Guajará-Mirim e Reserva Extrativista Jaci-Paraná. A expansão de áreas produtivas do agronegócio na AMACRO tem intensificado os conflitos no campo nessas áreas protegidas, como é o caso da Terra Indígena Igarapé-Lage, a mais próxima do local onde será erguida a ponte.
“A soja já está chegando na terra indígena e foi uma evolução rápida. Até pouco tempo, era tudo pasto, agora já tem lavouras encostando nos territórios”, conta Eva Kanoé, liderança do povo Kanoé em Rondônia e integrante do Conselho de Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Eva conta que o projeto não foi apresentado à comunidade e que muito menos se falou em consulta. “As nossas terras já estão sendo invadidas e devastadas. Agora mesmo, com a lei do marco temporal e com todas essas obras, as invasões aumentaram. Estamos desprotegidos, preocupados, mas com coragem para seguir na luta”, afirma.
A ponte também deverá integrar os portos dos oceanos Atlântico e Pacífico a outras obras polêmicas na Amazônia, como a reconstrução da BR-319, entre Porto Velho e Manaus (AM), apontada como um dos grandes vetores de desmatamento da Amazônia; a hidrovia do rio Madeira, por onde já ocorre escoamento de grãos para os portos do chamado Arco Norte; e pode facilitar a construção de novas usinas no Complexo Hidrelétrico do Madeira, que já conta com duas barragens em operação: Santo Antônio, logo acima de Porto Velho, e Jirau, a 110 quilômetros rio acima, perto da fronteira com a Bolívia.
“Junto com a ponte, vem a viabilidade dos projetos hidrelétricos e da hidrovia para facilitar toda a expansão desse modelo do agronegotóxico (sic). O plantio de soja já está avançando pelas vicinais e afetando as terras indígenas, comunidades ribeirinhas e pescadores”, afirma o historiador Iremar Antônio Ferreira, fundador do Instituto Madeira Vivo (IMV) e membro do Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira (COMVIDA).
Ferreira afirma que há risco de violação dos direitos dessas populações por falta de estudos ambientais adequados “que não consideram os efeitos sinérgicos da obra” e o descumprimento de consultas prévias, livres e informadas às comunidades, como estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante aos povos tradicionais o direito de serem consultados sobre todo e qualquer projeto ou ato administrativo que afetem seus territórios.
“São propostas que se conectam nessa grande integração de infraestrutura para viabilizar projetos de desenvolvimento dos governos e empresas que arrancam o nosso povo do seu lugar. Nós, enquanto povos desta bacia do Madeira, defendemos projetos de envolvimentos, que incluam as comunidades, não esses que nos excluem e nos matam”, completa Ferreira.
Uma das preocupações é de que o desmatamento e os casos de conflitos sejam ampliados, a exemplo de outros empreendimentos que mantêm relação direta com o aumento do desmatamento na região, como é o caso das obras das usinas hidrelétricas, da BR-319 e da Transamazônica, citados frequentemente como impulsionadores da devastação.
Em março deste ano, um estudo publicado na Perspectives in Ecology and Conservation aponta que só o fato de o governo anunciar a criação do polo agrícola na AMACRO foi suficiente para atrair produtores rurais e fazer o desmatamento na região disparar.
A pesquisa aponta que, ao contrário dos possíveis benefícios econômicos da zona integrada, o desmatamento pode levar a perdas socioeconômicas e afetar condições ambientais e climáticas essenciais para a atividade agropecuária no Brasil. Os autores destacam a importância de um planejamento prévio antes da implantação dos projetos da zona de desenvolvimento para evitar uma catástrofe regional.
A AMACRO, com seus 45 milhões de hectares (ha), representa 8,9% da área total da Amazônia brasileira (501,5 milhões ha), mas registrou, em 2022, 34% de todo o desmatamento do bioma no país, com 440 mil ha de floresta devastados, segundo dados de desmatamento anual do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em dez anos, o desmatamento nessa região cresceu mais de 400% e em uma intensidade até duas vezes maior do que a registrada nas demais áreas da Amazônia, segundo análises da InfoAmazonia com base nos dados do Inpe. A maior parte desse desmatamento está concentrada em Porto Velho, que, em 10 anos, foi a segunda cidade mais desmatada de toda a Amazônia.
Esse avanço da produção agrícola, movido à destruição das áreas de floresta, também impõe uma reconfiguração dos polos produtivos, cada vez mais ao norte, e de distribuição de commodities como soja, milho e carne, que estão migrando dos portos e das estruturas alocadas no Sudeste para serem escoados pela região Norte, barateando os custos com transporte e logística.
Em 1985, existiam 1,6 milhões de hectares de áreas de agropecuária em Rondônia e 20,6 milhões de hectares de florestas. Em 2022, a área ocupada pela agropecuária atingiu a marca de 9,2 milhões de hectares (+475%), enquanto a cobertura por floresta caiu para 13 milhões de hectares (-36,9%%), segundo dados da rede MapBiomas.
Para Laura Vicuña, missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Rondônia, o projeto de integração binacional vai na contramão das promessas do governo do presidente Lula (PT) — eleito com com o compromisso de proteger a Amazônia e os povos tradicionais — e amplia o descumprimento de decisões judiciais que já determinam a desocupação de terras indígenas da região.
“Temos decisões do STF [ADPF 709] para retirar os invasores das terras indígenas que não estão sendo cumpridas. E essa pressão vai aumentar ainda mais com esse corredor transoceânico que vai afetar toda a região da AMACRO. Nós temos visto o governo comemorar a redução de desmatamento na Amazônia, mas aqui, na prática, não é isso que vemos”, afirma a missionária.
A pesquisadora Marta Cerqueira Melo também vê posicionamentos contraditórios do Estado brasileiro, que coloca essas situações como irresolvíveis, principalmente, pela divisão que aglutina a classe política e empresarial de um lado e as comunidades e povos tradicionais de outro.
“Se existe a necessidade dessas infraestruturas para atender a economia, ela tem que ser pensada no contexto que se insere. Por que não prever uma governança que inclua a proteção ambiental? Por que não se leva universidades para essas regiões? O Estado não pode ser dependente apenas de um segmento, e o agronegócio não pode se expandir sem limites”.
A pesquisadora cita o contexto global dos países da América do Sul, que têm a China como principal parceiro comercial, e as limitações que o canal do Panamá enfrenta com a crise climática, “com períodos de seca que interrompem o fluxo de navios”, afirma. Atualmente, o canal é a principal rota dos navios que saem do Atlântico com destino à Ásia.
Consultado pela reportagem, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) informou que o projeto da ponte binacional está na fase inicial de licenciamento e que o processo para liberação do empreendimento “terá como base a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental".
“Os estudos ambientais deverão analisar os efeitos sinérgicos da implementação do empreendimento, assim como indicar os principais impactos ambientais previstos por sua execução e operação. A avaliação sobre o projeto será realizada a partir de tais subsídios técnicos”, afirmou o órgão.
O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) informou que a licitação para obra da ponte está em prazo de recursos, e que o resultado da empresa que vai realizar o projeto e construção da estrutura deve ser homologado na segunda quinzena de abril.
A Reserva Extrativista (Resex) Rio Ouro Preto, em Rondônia, é uma das primeiras unidades de uso sustentável criadas no Brasil para abrigar famílias de seringueiros, e está a menos de 30 quilômetros do ponto de travessia do rio Mamoré, que ao se encontrar com o rio Madre de Dios, que atravessa o Peru e a Bolívia, forma o rio Madeira, principal tributário da bacia do Amazonas. A conversão de áreas de floresta para produção de gado na região motivou um pedido de retirada de 20 mil hectares da área protegida.
“Antes ainda existia uma área de amortecimento, hoje em dia não existe mais, e a pecuária já está dentro da unidade de conservação. Tanto que estamos fazendo um desmembramento de uma área de 20 mil hectares por causa do gado. Não são 20 metros. Para a gente, futuramente vai fazer falta”, explica Edvaldo Souza da Costa, presidente da Associação dos Seringueiros Agroextrativistas do Baixo Rio Ouro Preto (Asaex).
Dentro da Resex, 178 famílias vivem da extração da borracha, coleta de castanha e da agricultura familiar. “A questão é que estamos cercados e tememos que o veneno das lavouras também afete as nossas roças e nossos castanhais”, conta a indígena Tapuya Mura, que nasceu na Resex e junto com o marido, Lucas Mura, pratica agricultura familiar em sistema agroflorestal.
No sítio da família, eles cultivam mandioca, café, milho de sementes crioulas utilizadas há várias gerações, e promovem o plantio de novas castanheiras como forma de garantir mais oferta da noz brasileira consumida mundialmente. “Plantar uma castanheira é como deixar uma herança para nossos filhos e netos. Mas até isso está ameaçado”, emenda Tapuya.
A sensação de crescimento da soja por parte dos moradores da Resex Rio Preto se comprova em números: ela se espalha exponencialmente em Rondônia. Na safra de 2011/2012 eram 107,6 mil hectares do grão plantados no estado, em 2023, foram contabilizados 544,1 mil hectares, segundo dados do governo de Rondônia.
Em audiência na Câmara dos Deputados para debater a construção da ponte binacional, em abril do ano passado, o secretário de governo da Prefeitura de Porto Velho, Fabrício Grisi Médici Jurado, informou sobre a expansão das grandes empresas do agronegócio na região.
“Toda semana estamos recebendo grandes empresas que estão se instalando na nossa capital. Recebemos recentemente o grupo Cargill, que tem expandido negócios na região, Amaggi, Hidrovias do Brasil, que vai montar um porto em Porto velho para ampliar o comércio da hidrovia do Madeira”, disse.
Boa parte da bancada rondoniense na Câmara e no Senado, que apoia a construção da ponte, é composta por fazendeiros com propriedades na região da AMACRO, como os senadores Marcos Rogério (PL-RO), que foi relator da lei do marco temporal, Jaime Bagattoli, cuja família, de acordo com o De Olho Nos Ruralistas, se diz dona de fazendas em terras indígenas, e o deputado federal Lúcio Mosquini (MDB-RO), autor do chamado PL da Grilagem, e dono de fazendas próximas a áreas invadidas na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
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Ponte Brasil-Bolívia quer escoar produção do agro, mas não considera desmatamento e impacto nas comunidades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU