25 Janeiro 2024
Parceria entre Brasil e Bolívia, os primeiros estudos do projeto reacenderam o debate sobre as usinas na Amazônia sob as perspectivas climática, energética e socioambiental.
A reportagem é de Kevin Damasio, publicada por ((o))eco, 23-01-2024.
Mais de 140 pessoas se reuniram no Centro de Treinamento de São José, no município de Guajará-Mirim, em Rondônia, para um seminário público organizado pela Eletrobras, a estatal boliviana Empresa Nacional de Electricidad (ENDE) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). Naquela tarde de 8 de agosto de 2023, representantes do setor energético apresentariam os resultados dos primeiros estudos da Hidrelétrica Binacional do Rio Madeira. O projeto reacende o debate sobre as usinas na Amazônia em um contexto de emergência climática, segurança energética e impactos socioambientais.
Enquanto uma porta-voz do Ministério de Minas e Energia (MME) abria a apresentação, cerca de 40 manifestantes de organizações da sociedade civil e comunidades tradicionais adentraram o salão e se colocaram diante da mesa, com mensagens contrárias ao empreendimento. “Não à hidrelétrica Ribeirão! Águas para a vida, não para a morte!”, lia-se em uma das faixas.
Além de efeitos socioambientais negativos, indígenas, extrativistas, pescadores e ativistas da região queixavam-se da falta de participação social e transparência na elaboração dos estudos de inventário – a primeira etapa de um projeto hidrelétrico. Os organizadores, então, decidiram encerrar o evento “por motivos de segurança”.
O protesto reuniu grupos locais, como a Associação Indígena Oro Wari, a Colônia de Pescadores Z2 de Guajará-Mirim, a Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR) e o Comitê de Defesa da Vida na Bacia do Rio Madeira (Comvida), e organizações a exemplo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Gerônima Costa, presidente da Colônia Z2, recebeu o convite no mesmo dia da reunião, mas os grupos locais já estavam cientes e se mobilizaram. “O rapaz falou que o estudo já estava feito. Não precisava da gente aprovar nada. Os técnicos tinham feito o trabalho deles. Mas que trabalho é esse que não ouve a comunidade?”, ela questiona.
A insatisfação local com a hidrelétrica binacional foi colocada em uma carta aberta de 30 de julho, destinada aos presidentes dos dois países, Luís Inácio Lula da Silva e Luis Arce. “Convocar comunidades para divulgar estudos sem prévio conhecimento da sociedade […] é violar a participação dos povos a serem afetados e esconder os impactos sinérgicos e cumulativos que os afetarão”, escreveram 37 organizações da sociedade civil.
“Um apelo aos presidentes do Brasil e da Bolívia se faz necessário para que não incorram nesse retrocesso”, continua a carta, “no momento que estamos avançando, tecnologicamente, em alternativas limpas, prestes a ingressar definitivamente na transição energética, para descentralizar a geração e evitar as obras faraônicas que afetarão um bioma sensível como a Amazônia”.
Após a manifestação, uma série de reuniões aconteceu no segundo semestre de 2023 entre grupos de rondonienses e bolivianos, para debater as consequências de uma terceira hidrelétrica no rio Madeira. ((o))eco escutou temores em comum de lideranças indígenas, extrativistas, pescadores e cientistas: a perda dos modos de vida e o colapso dos ecossistemas.
Quatro das cinco principais hidrelétricas do país estão na Amazônia Legal, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA). Belo Monte (11.233 MW) e Tucuruí (8.535 MW), no Pará, detêm as maiores capacidades de geração. Jirau (3.750 MW), a quarta, e Santo Antônio (3.568 MW), a quinta, estão no rio Madeira, em Rondônia.
O Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira fornece 6,7% da energia do Sistema Interligado Nacional (SIN). A UHE Santo Antônio fica em Porto Velho, capital de Rondônia, e opera desde março de 2012, administrada pela Santo Antônio Energia. A UHE Jirau funciona no distrito de Jaci-Paraná desde setembro de 2013, gerida pela Energia Sustentável do Brasil (ESBR) – da qual a Eletrobras detém 40% de participação societária.
O Madeira é fundamental para o equilíbrio da Bacia Hidrográfica Amazônica. Estende-se por 3.315 quilômetros das cabeceiras no sopé da Cordilheira dos Andes, no norte da Bolívia, até a foz no rio Amazonas, em Itacoatiara (AM). Este rio de águas brancas abriga grande parte da biodiversidade aquática da Amazônia, incluindo 60% das espécies de peixes, e é responsável por metade dos sedimentos que chegam ao rio Amazonas. Apesar disso, o Madeira vive toda sorte de impactos antrópicos – grilagem, desmatamento, agropecuária, garimpo ilegal, barragens hidrelétricas.
Jirau e Santo Antônio adotaram o modelo a fio d’água, no qual a vazão que chega e sai da barragem é praticamente a mesma. Conforme Javier Tomasella, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), “o efeito dessas barragens sobre o regime hidrológico é mínimo”, mas essa tecnologia é mais vulnerável ao clima.
Nas últimas décadas, a sucessão de eventos climáticos no Madeira “parece um pêndulo, de um extremo ao outro”, Tomasella observa: a cheia em 2014 e as estiagens de 2005, 2010 e 2023. A tendência é que a ocorrência desses extremos aumente na bacia em qualquer cenário climático projetado, segundo um estudo dele.
“Essa modulação pouco depende do fator interno da bacia, porque são padrões de circulação dos oceanos que estão sendo alterados pelo aquecimento global”, explica o hidrólogo. O aquecimento acima da média das águas do Pacífico Equatorial (El Niño) e do Atlântico Norte provocam estiagens intensas, como visto nas secas históricas dos rios amazônicos em 2023. Já o resfriamento do Pacífico Equatorial (La Niña) contribui com grandes cheias.
“Esses extremos, principalmente a vazante, conspiram contra as hidrelétricas” de Jirau e Santo Antônio, pois “foram desenhadas para funcionar sem grandes reservatórios”, diz Tomasella. Em outubro de 2023, a ANA declarou situação crítica de escassez hídrica no rio Madeira em decorrência do El Niño, e a usina de Santo Antônio teve de suspender a operação por 14 dias.
“As hidrelétricas estão cada vez menos confiáveis na região Norte do país”, observa Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, porque “foram ou estão sendo construídas em áreas onde os sistemas de vazões ou o regime de chuvas mudou ainda mais”. Com mudanças expressivas nas vazões esperadas para 2040, “a série histórica não vale mais. Agora, estamos em um regime diferente”.
Os estudos de inventário da hidrelétrica binacional não mencionam projeções climáticas para a Bacia do Madeira. A ANA, por sua vez, indica redução da disponibilidade hídrica no Norte para 2040 – no Madeira, há cenários de diminuição superior a 5%.
O Plano Nacional de Energia 2050 prioriza “o aproveitamento das bacias hidrográficas da região Norte sem grandes reservatórios de regularização plurianual”. A meta é ampliar a capacidade instalada de 108 GW para 168 GW até o final de 2030 com novas hidrelétricas – entre elas, a binacional no Madeira.
Mas o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) indica uma mudança de rota, com previsão de construção de 196 usinas fotovoltaicas e 120 eólicas – a única hidrelétrica planejada não está na Amazônia. “O PAC, ao sinalizar a solarização, dá um recado tardio, mas muito importante, porque não é para abastecer o Brasil, não é para a segurança do sistema”, observa Unterstell. “É para distribuir energia para as populações remotas e trocar energia suja por limpa. Pode ser revolucionário.”
Em novembro de 2016, Brasil e Bolívia firmaram um acordo para a primeira etapa do projeto hidrelétrico binacional na Bacia do Madeira, em convênio entre a então estatal Eletrobras, a ENDE e o CAF. Os estudos de inventário foram realizados pela Worley Parsons, vencedora da licitação internacional, com o objetivo de encontrar o melhor local para a instalação da usina em termos de custos de implantação, benefícios energéticos e impactos socioambientais positivos e negativos.
Os estudos propõem a construção de duas barragens. A hidrelétrica seria instalada no encontro do igarapé Ribeirão com o Madeira, em Nova Mamoré (RO) e Nueva Esperanza (Bolívia), com potência de 3.772 MW – superior a Jirau e Santo Antônio.
A segunda barragem ficaria no encontro dos rios Yata e Mamoré, em Guajará-Mirim (RO) e Guayaramerín (Bolívia), a fim de viabilizar a navegabilidade de grandes embarcações do Alto Madeira até Porto Velho. Isso demandaria escavações do leito para formar canais nos trechos de Guajará-Mirim e do distrito de Araras, em Nova Mamoré, bem como a instalação de eclusas nas barragens do Ribeirão e do Yata. Dependeria também de eclusas nas usinas de Jirau e Santo Antônio. A hidrovia do Madeira tem hoje 1.060 km de Porto Velho a Itacoatiara, por onde já passa quase um décimo da carga de transporte por navegação interior no Brasil.
A área inundada prevista é de 319 km2 (176 km2 na Bolívia e 143 km2 no Brasil), com estimativa de impacto de 4 mil pessoas. Seriam alagadas regiões nas reservas extrativistas Rio Ouro Preto e Rio Pacaás Novos, em Rondônia, e nas áreas protegidas Arroyo Las Arenas, Lago San José e Reserva Silvestre de los Ríos Tahuamanu y Orthon, na Bolívia. Também seriam impactados a Estação Ferroviária de Iata, local histórico de Guajará-Mirim, e o Sítio Ramsar Rio Yata, em Guayaramerín, região da bacia do Mamoré onde habitam 24 espécies vertebradas ameaçadas, como a ariranha.
Ainda que não sejam para licenciamento ambiental, João Dutra, membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos do MAB, considera que os estudos foram feitos de “forma unilateral”. “Guajará-Mirim já foi considerado o município mais verde do Brasil. Boa parte são áreas de floresta e territórios de comunidades tradicionais”, avalia Dutra. “Eles apresentam de forma muito tímida, sem trazer a dimensão da problemática que isso pode trazer para o empreendedor.”
Para o projeto da hidrelétrica binacional no Madeira prosseguir, os estudos de inventário precisam da aprovação dos dois países. Se isso acontecer, é necessário que Brasil e Bolívia firmem novos acordos para realizar a etapa seguinte, que envolve estudos aprofundados de engenharia, socioambientais e econômicos, com tempo estimado de seis anos.
Em 2023, autoridades brasileiras e bolivianas trataram de integração energética em alguns encontros. Em maio, o ministro das Relações Exteriores (MRE), Mauro Vieira, reuniu-se na Bolívia com o chanceler Rogelio Mayta, o presidente, Luis Arce, e o vice-presidente, David Choquehuanca, e elegeu “infraestrutura e energia” entre as prioridades do diálogo bilateral. Em novembro, Choquehuanca encontrou-se em Brasília com o presidente Lula e ministros. ((o))eco questionou o MRE sobre o teor das conversas e se houve andamento no projeto da hidrelétrica binacional, mas não obteve retorno.
As terras indígenas Igarapé Ribeirão e Igarapé Lage são as mais próximas das barragens propostas. Enquanto as empresas alegam que as TIs não serão inundadas, os povos originários estão em alerta. Uma análise constatou que as usinas de Jirau e Santo Antônio alagaram 64,5% mais áreas do que o inicialmente previsto.
“Nos deixam muito preocupados”, diz Arão Oro Waram Xijeim, liderança da TI Igarapé Lage. “A inundação vai ser maior do que a prevista no estudo e atingir diretamente na organização social, alimentação, cultura e saúde dos povos indígenas da região.”
A TI Igarapé Ribeirão tem 289 habitantes e 48 mil hectares no município de Nova Mamoré. A Igarapé Lage abriga 783 indígenas e se estende por 107 mil hectares na divisa de Nova Mamoré e Guajará-Mirim.
“Os povos Oro Waram Xijeim, Oro Waram e Oro Mon dependem muito do rio Lage, porque é ali que buscamos as substâncias para nosso povo”, conta Arão. “O Mamoré e o Madeira são rios importantíssimos para nossa região, porque através deles navegamos para o escoamento da nossa produção e, principalmente, os peixes.”
De 2019 a 2023, houve desmatamento de 1.133 hectares na TI Igarapé Lage e 139 hectares na Igarapé Ribeirão. “No Igarapé Lage e no Ribeirão tem bastante invasão, retirada de madeira, devido às terras indígenas serem rodeadas de fazendas”, observa Edvandro Jabuti, coordenador da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) de Guajará-Mirim. Para ele, a pressão às TIs certamente aumentaria com a hidrelétrica. “Ribeirinho e indígena vivem do igarapé, e são muitos impactos. Desde que a gente descobriu, foi contra.”
Os estudos reconhecem que “a atração de população pelas obras poderá provocar modificações no modo de vida existente” e “possível aumento dos conflitos associados ao uso do solo e exploração dos recursos naturais”. “As populações indígenas e tradicionais do Brasil”, continua o texto, “são as mais sensíveis às mudanças nos rios e ambientes naturais e à chegada de novas pessoas ao redor de seus territórios”.
Em Guajará-Mirim, 90% da área é coberta por florestas, concentradas principalmente em um mosaico de unidades de conservação e terras indígenas de mais de 22 mil quilômetros quadrados. Na TI Pacaás Novas, cerca de 1.300 pessoas vivem em 24 aldeias entre os rios Mamoré e Pacaás Novos.
Benjamin Oro Nao, presidente da Associação Indígena Santo André, nasceu em 1982 e nota mudanças climáticas e ambientais significativas na região, apesar do alto grau de conservação da reserva de 280 mil hectares. Foram desmatados 731 hectares desde 2019, mas não houve novas derrubadas em 2023. As principais pressões são de invasores pelo lado do rio Mamoré, para pesca predatória e extração de açaí.
Já os rios mais secos, devido às estiagens severas mais frequentes, refletem na morte de peixes e na diminuição da população de tartarugas, que “procuram o lugar mais profundo”. Há também extremos de cheia, a exemplo de 2014. “Na aldeia em que eu morava, estava tudo alagado. Não tinha para onde ir, aí nós procuramos terra firme lá para dentro”, recorda Benjamin.
“Estou muito triste, porque eu já vi a água subindo. Vão construir aquela usina do Ribeirão para lá, vai impactar aqui”, continua a liderança Oro Nao. “A empresa não dialoga com a comunidade, porque não conhece a realidade de quem está na cabeceira do rio. Essa empresa nunca chegou para nós. Tem que pressionar o governo a não fazer isso, porque a gente vai perder todo o nosso território.”
A ((o))eco, a Eletrobras diz que os estudos “são elaborados com base em dados secundários, e apenas apresentam uma estimativa dos prováveis grupos humanos atingidos”. “Tem-se uma avaliação das potencialidades da bacia, o que recomenda apenas um processo amplo e irrestrito de divulgação das informações, o que foi realizado”, defende a empresa. (Leia a nota na íntegra.)
Segundo a Eletrobras, houve “comunicação permanente com instituições públicas e privadas e a população em geral dos dois países” desde o início dos estudos. Um Centro de Informação em Guajará-Mirim funcionou de março de 2018 a maio de 2020. Distribuíram urnas de consulta “em pontos estratégicos” de agosto de 2018 a setembro de 2021, e disponibilizaram canais de comunicação. Promoveram ainda “reuniões de esclarecimento”, “visitas quinzenais às comunidades e conversas com a população”, como um seminário público em Guayaramerín em 3 de agosto de 2023.
Embora os estudos considerem “alagamentos marginais” nas Reservas Extrativistas (Resex) Rio Pacaás Novos e Rio Ouro Preto, as lideranças locais afirmaram que não foram procuradas durante a realização dos estudos. As reservas situam-se no mosaico de áreas protegidas de Guajará-Mirim.
“A gente sabe que teve uma empresa que se instalou e fez o estudo por dois anos, mas em nenhum momento ela sentou com os extrativistas para falar o que achava que ia acontecer com a gente”, diz Ronaldo Lins, presidente da Associação Primavera, da Resex Rio Pacaás Novos.
Edvaldo da Costa, presidente da Associação dos Seringueiros e Agro-Extrativista do Baixo Rio Ouro Preto (ASAEX), da Resex Rio Ouro Preto, alega o mesmo. “A gente tem o protocolo de consulta. Eles sabem onde encontram a população tradicional e de que forma a gente quer ser consultado”.
A Resex Rio Pacaás Novos é uma unidade de conservação (UC) estadual de 343 mil hectares, onde cerca de 200 famílias vivem do extrativismo de borracha e castanha. Nascido em 1973, Lins acompanhava o pai nas coletas ainda na infância e já reparava no zelo pela floresta em pé: “Não tinha muito desmatamento. Não tinha fogo. Só limpavam o local das casas e das roças”. A conservação se mantém: enquanto o desmatamento explodiu na Amazônia de 2019 a 2022, apenas 75 hectares foram suprimidos na Resex Rio Pacaás Novos.
“Se realmente acontecer essa usina em Ribeirão, com essas duas barragens, pra gente vai ser muito preocupante. A gente é totalmente contra”, diz Lins. “O Pacaás é o rio mais importante para nós para o escoamento de produtos – borracha, castanha, farinha. É a nossa estrada.”
A Resex Rio Ouro Preto é uma UC federal criada em 1990. Seus 204 mil hectares se estendem por Guajará-Mirim e Nova Mamoré, onde 270 famílias trabalham com a coleta de castanha, açaí, seringa, patoá e buriti, além da agricultura familiar. O rio que dá nome à reserva é a principal via dos extrativistas para os locais de coleta e o escoamento da produção na cidade.
A ASAEX também é contrária à hidrelétrica binacional. Os extrativistas já vivem danos relacionados às cheias mais intensas e duradouras, que atribuem às mudanças climáticas e às usinas do Madeira. “A gente não quer esse tipo de usina na nossa Guajará-Mirim, porque nós usamos a várzea do rio”, diz Edvaldo. “Todo ano, o rio enche e seca. Quando seca, as populações tradicionais executam os seus serviços dentro daquela vazão do rio, onde tiram o látex.”
Nas duas reservas, a coleta da borracha acontece no período seco, de maio a novembro, nos seringais das várzeas. Quando chegam as chuvas, os extrativistas deslocam-se para os castanhais em terra firme de dezembro a março, e também coletam açaí. Contudo, a cheia tem se estendido por até dois meses e encurtado a safra da borracha. A inundação prolongada das várzeas também afeta a agricultura familiar.
Se ficarem inundados por muito tempo, as seringueiras e os açaízeiros “vão morrer, não resiste nada”, observa Edvaldo. Foi o que aconteceu na Resex Jaci-Paraná após as usinas de Jirau e Santo Antônio. Houve ainda uma ocupação no entorno sucedida por invasões, que a transformou na resex mais desmatada da Amazônia desde 2008.
“Aqui na Pacaás e na Ouro Preto com certeza vai acontecer a mesma coisa. Eles perderam boa parte dos seringais, porque a água invadiu e demorou a secar”, acredita Lins. “A gente teme que aconteçam inundações em terra indígena e extrativista. Pra gente ficaria difícil na produção da borracha. Se já estamos com problema quando as águas baixam aqui em julho, imagina se constroem outra usina.”
A Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR) tem se reunido com extrativistas e entidades não governamentais para tratar da hidrelétrica binacional. “Todas as comunidades ao longo daquelas adjacências vão ser completamente impactadas. Então, nós somos contra”, diz o presidente Sebastião Neves. “Eu não acredito que essa hidrelétrica sairá. Porém, vivemos em estado de alerta.”
O Alto Madeira é uma região onde a boa conectividade com os tributários da Bolívia mantém a dinâmica da biodiversidade aquática. A baixa ocupação humana contribui para uma floresta alagada preservada e um fluxo contínuo dos rios.
“Por esses tributários, as espécies que estão no Guaporé e no Mamoré ainda conseguem cumprir seu processo fisiológico de migração – não tem barramentos que as impeçam”, observa a bióloga Carolina Doria, coordenadora do Laboratório de Ictiofauna e Pesca (LIP) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). “Se interromper isso, o pouco que ainda sobrevive das espécies de peixes ali será prejudicado. Vai levar a uma diminuição da abundância.”
Com as barragens, os estudos projetaram “impactos nos habitats aquáticos, aluviais e biota associada”, alteração na “dinâmica de transporte de sedimentos, nos processos de erosão e sedimentação” e modificação da “conectividade entre ambientes a jusante e a montante de cada barramento, com a formação de barreiras para os fluxos biológicos”.
Os pescadores não foram citados nos estudos, nem na apresentação no site do Inventário Binacional, mas os impactos seriam inevitáveis pela usina, escavações de canais e a instalação de eclusas previstas para a navegabilidade. Com essas obras, “acaba nossa pesca”, projeta Gerônima Costa, presidente da Colônia de Pescadores Z2, que contempla 130 famílias de Guajará-Mirim e Nova Mamoré e dos distritos de Araras, Iata e Surpresa.
Gerônima nasceu nos seringais do interior de Guajará-Mirim, em 1962, em uma família que vivia da borracha e da pesca, e se mudou ainda na infância para a área urbana. A pesca artesanal segue uma tradição familiar, a bordo de pequenas lanchas com motor de rabeta nos rios Madeira, Mamoré e Guaporé.
Antes do seminário público, Gerônima teve contato apenas uma vez com uma representante da empresa Worley. “Eu falei que era contra, porque em 2014 nosso município ficou tipo uma ilha. Em todo canto chegou água. Tinha que respeitar nossas reservas, área indígena. Não era de acordo. Como vai ficar nossa situação aqui?”, ela lembra. “Nunca mais voltaram.”
Em 2014, o transbordamento do rio Mamoré deixou vários bairros de Guajará-Mirim debaixo d’água e afetou as estruturas da Colônia Z2. Os pescadores tiveram compensações por parte da empresa que administra Jirau: conseguiram uma nova fábrica de gelo e reformaram o mercado de peixe e as barracas de venda.
Além disso, trabalharam por quase dois anos em um plano de manejo do pirarucu – um símbolo amazônico, mas espécie invasora no Alto Madeira. Desde que as enchentes romperam tanques de piscicultura na Bolívia, esses gigantes se espalharam pelos rios de Guajará-Mirim, predando espécies importantes no comércio e na dieta local, como tambaqui, surubim, tucunaré e jatuarana.
As barragens também atrapalharam a migração dos grandes bagres, como a piraíba, “porque tem que subir uma escada”, diz Gerônima, que visitou a usina de Jirau em 2015 e conferiu esse mecanismo de transposição. “Um peixe de 70, 60 centímetros passa. Mas os nossos bagres são imensos, não tem como passar.”
“Apesar do esforço que [as empresas] tiveram para imitar uma situação natural, não substitui o que era antes: um rio muito veloz, com 19 corredeiras, onde as espécies estavam adaptadas a esse processo de migração”, analisa Doria, que estuda a ictiofauna e a pesca no Madeira desde 1996. Para a cientista, as duas barragens propostas dificultariam ainda mais a migração dos peixes e colocariam “em grandes dificuldades as comunidades que vivem nesta região”.
As duas hidrelétricas do Madeira produzem grande quantidade de energia para fora do estado, enquanto nos municípios rondonienses a energia é cara e, muitas vezes, de fontes sujas e intermitentes – esta foi uma queixa constante dos entrevistados desta reportagem. “Esse conjunto hidrelétrico investido, realizado e construído no Brasil foi feito para o sistema. Nunca foi pensado para abastecer a população amazônica de fato”, observa Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa. “Isso é uma prova de racismo ambiental.”
Gerônima sente todo mês a alta tarifa de energia no estado produtor. Na Colônia Z2, a conta mensal gira em torno de R$ 1 mil. Na peixaria, com câmara fria e fábrica de gelo, o custo é de R$ 4 mil. “As hidrelétricas não são pra nós”, ela diz.
Há 211 sistemas isolados na Amazônia Legal – isto é, que não estão conectados ao SIN –, para onde cerca de 80% da energia fornecida advém de térmicas a óleo diesel. Esses locais consumiram, em 2022, 857,9 mil m3 de óleo diesel – 1,4% da demanda anual deste combustível no Brasil –, o que representou emissões na ordem de 2,93 milhões de toneladas de gases de efeito estufa. Esses dados do MME foram obtidos por ((o))eco via Lei de Acesso à Informação.
Na Resex Rio Pacaás Novos, cada família tem seu gerador a diesel e gasta até R$ 400 mensais para ter energia durante quatro horas por dia. Quem consegue um lucro extra nas safras já investe em placas solares, “para ter uma geladeira, ter energia pra própria casa mesmo, para ligar uma televisão”, observa Ronaldo Lins. Mas isso deve mudar em breve: os extrativistas esperam ser atendidos pelo programa Luz Para Todos, do governo federal, neste início de 2024.
Em 2023, este programa federal investiu R$ 1,4 bilhão para atender 64.592 unidades consumidoras (residências, escolas, postos de saúde, associações/centros comunitários, igrejas) no meio rural e em regiões remotas da Amazônia Legal. Cerca de 258 mil pessoas passaram a ter acesso à energia elétrica.
Em 2024, a meta do governo é efetivar cerca de 75 mil ligações, com investimento de R$ 2,5 bilhões via PAC, para atender em torno de 300 mil pessoas em áreas rurais e remotas da Amazônia Legal. Rondônia, que teve 3.450 unidades atendidas (ou 13,8 mil habitantes) em 2023, terá mais 4.321 neste ano.
Em Guajará-Mirim, 348 unidades em terras indígenas e reservas extrativistas foram contempladas pelo Luz Para Todos em 2022 e 2023. Há atendimentos programados para conectar mais 492 clientes dessas comunidades remotas, com previsão de conclusão entre o segundo semestre de 2024 e o primeiro de 2025.
Na TI Pacaás Novas, 279 unidades serão atendidas até março de 2024. A instalação das placas solares começou nas aldeias do lado do rio Mamoré. As 89 famílias da aldeia Santo André aguardam a sua vez, ainda dependentes de motor de luz a óleo diesel com uso limitado – funciona apenas à noite, “pra clarear nossa casa, fazer nosso jantar”, diz Benjamin. “Lá para as 9, 10 horas, a gente desliga o motor, para durar mais tempo o diesel.” A chegada de uma energia limpa e contínua vai mudar bastante a vida, do trabalho na associação ao consumo cotidiano, ele acredita.
Na Resex Rio Ouro Preto, os painéis fotovoltaicos que faltam devem chegar no início de 2024, contemplando as 12 comunidades. Cada unidade consumidora paga uma taxa mensal de manutenção de R$ 60, segundo Edvaldo da Costa. “Aquelas pessoas que moram a dois, três dias de viagem, agora tem sua energia, sua geladeira. Mudou demais, para melhor”, conta o extrativista. “Na alimentação, o pessoal salgava a carne para desidratar, e agora conserva já no gelo. Até pra própria saúde isso ajuda bastante. Beber água gelada – poucas tinham esse privilégio. A comunidade toda está satisfeita.”
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Povos tradicionais se articulam contra hidrelétrica binacional no Madeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU