22 Agosto 2024
"O que significa hoje a palavra liberdade é uma pergunta que tende a não ser feita. Em Gaza, tentava sobreviver ao medo da noite, fora de Gaza, tenta sobreviver às lembranças", o relato é de Louis Har, refém israelense sequestrado pelo Hamas no dia 7 de outubro.
A reportagem é de Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, publicada em La Stampa, 30-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na noite de 12 de fevereiro, quando um homem segurou seu braço e lhe disse em hebraico: ‘Siga-me, fique tranquilo, vou levá-lo para casa, somos soldados’, Louis Har pensou que devia ser um sonho ou uma piada macabra.
Era sua 129ª noite em Gaza, a última. O homem que havia segurado seu braço era de fato um soldado e aquela que o havia resgatado era uma operação especial do exército israelense para levar ele e Fernando Simon Marman para casa em segurança. Era 1h49 minutos da madrugada e, um pouco antes de os soldados entrarem no segundo andar da casa em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, onde estavam sendo mantidos como reféns, Louis pensou que não sobreviveria. A deflagração dos bombardeios era dramaticamente próxima. Não era a primeira, mas era a mais próxima que ele tinha vivenciado nos meses de seu sequestro. Ele não tinha como saber que aquelas bombas eram para cobrir a operação terrestre.
Há um vídeo, no site do exército israelense, que mostra esses momentos. Uma inscrição verde destaca o local onde os dois reféns estavam presos e, na imagem cinza vista de cima, é possível ver as bombas lançadas e o impacto com o solo.
A onda de ataques aéreos que precedeu a incursão que libertou Louis e Fernando durou uma hora, de acordo com fontes palestinas, naquelas horas quase cem pessoas morreram e dezenas de outras ficaram feridas. A maioria, disse Marwan al-Hams, diretor do hospital Abu Youssef al-Najjar, eram mulheres e crianças.
Após a libertação, o porta-voz do exército israelense, Daniel Hagari, disse que os membros da equipe de resgate protegeram os reféns com seus corpos porque uma batalha feroz havia começado ao redor em vários pontos simultaneamente com os homens do Hamas, e Hagari acrescentou que, cerca de um minuto depois, as forças israelenses realizaram ataques aéreos “para permitir que a força interrompesse o contato e retirasse os reféns em segurança”.
As imagens após a operação mostram o hospital Sheba, no centro de Israel, onde Louis e Fernando, magros, pálidos e assustados, depois de meses abraçam seus entes queridos, as pessoas amadas que choram de alegria em seus ombros. E o hospital Marwan al-Hams, em Gaza, onde se contavam as vítimas dos ataques terrestres, por mar e aéreos daquela noite.
Louis Har é um esportista de 71 anos, tem passaporte duplo israelense e argentino, rosto amigável, assim como seu caráter. Jovial, generoso. Mesmo durante a conversa com o La Stampa, é assim. Embora seja exaustivo para ele relembrar os momentos de seu sequestro e da sua prisão, não poupa detalhes. Ele não quer seguir em frente esquecendo, mas ajudando os outros a recordar.
Antes de 7 de outubro, sua vida era dividida entre seu trabalho como contador e suas paixões, o teatro e a dança, que compartilhava com sua companheira Clara. Eles viviam dividindo suas vidas entre dois kibutzim, Urim, a cerca de sete quilômetros da fronteira com Gaza, ou seja, a casa de Louis, e Nir Yitzhak, a três ou quatro quilômetros da fronteira e casa de Clara, onde estavam na manhã de 7 de outubro.
Uma manhã como qualquer outra. O despertador, o café para ele, o chá para ela, um bolo de laranja e a possibilidade de foguetes vindos de Gaza.
A possibilidade se tornou realidade, mas não como nas vezes anteriores. Aquelas com as quais haviam se acostumado, os foguetes, alguns minutos no abrigo de segurança e, depois, de volta à vida no andar de cima. Não, naquela manhã, um grupo de milicianos do Hamas entrou em sua casa, arrastando-os para fora à força, colocou-os em um veículo e os levou para Gaza. Da curta viagem de carro até a Faixa, Louis se lembra dos cadáveres ao longo das estradas, das casas em chamas, dos grupos de civis de Gaza que haviam entrado em Israel e gritavam, e dos milicianos mais jovens atirando para o alto, gritando “Alá é grande”. Em seguida, entraram em Gaza e todos os cinco membros de sua família passaram a fazer parte da lista de mais de 250 reféns sequestrados por grupos armados na Faixa.
A próxima lembrança é de um túnel que não é medido em metros ou quilômetros, mas em horas. Três horas descalço nos túneis escuros sob Gaza “havia grupos de homens que se revezavam em determinados cruzamentos, um grupo nos deixava com outro, eles se ajudavam com mapas para nos levar ao nosso destino. Lembro-me de ver salas iluminadas, homens armados e computadores lá dentro”. O primeiro destino foi uma casa em Khan Younis, onde ficariam até 28 de novembro, o primeiro e único acordo de cessar-fogo para a libertação dos reféns. Clara, sua irmã e sobrinha saíram, mas ele e Fernando não. Esperaram por alguns dias que fossem os próximos, mas depois pararam de pensar nisso, convencidos de que teriam morrido em Rafah, para onde haviam sido transferidos e onde passariam os seguintes 76 dias.
Louis conta que seus captores nunca os espancaram. Sua principal preocupação, enquanto as mulheres estiveram com eles, era um miliciano que apontando para sua sobrinha e dizia que a seguraria e a obrigaria a se casar com ele. Louis disse a ela para não falar, não olhar para ele, nunca interagir. Para conviver com os sequestradores e aliviar a dor de seus entes queridos, usou as mesmas estratégias que usava em casa. Cozinhar e contar histórias. Quando havia comida, Louis preparava comida para os reféns e para os captores. Quando seus familiares eram tomados pelo medo da morte, ele lhes falava de um futuro imaginário, das próximas férias, do cheiro do almoço em casa. O retorno à Argentina, de onde ele emigrou em 1971.
Louis faz distinção entre o miliciano proprietário e os outros. Com o primeiro, ele havia feito uma espécie de pacto de confiança. Ele podia conversar com ele, nunca ouviu de sua parte a intenção de matá-lo, mas sabia que, embora não fosse agressivo, se recebesse ordens para executá-lo, o faria em um segundo. Os outros, por outro lado, travavam uma guerra psicológica diariamente. “Eles me diziam que, mesmo que voltássemos para casa um dia, eles nos encontrariam novamente, daqui a dois ou três anos. Que Israel havia se esquecido de nós, que nosso exército lutando em Gaza estava matando os reféns. Eles nos contaram sobre os três reféns mortos pela IDF, nos impediam de falar por horas porque, se os drones que sobrevoavam Gaza tivessem percebido vozes, teriam enviado a força aérea para bombardear o prédio e nós teríamos morrido sob nosso próprio fogo”.
Toda vez que um prédio era derrubado ao redor deles, os sequestradores entravam na sala e diziam que havia muitos reféns naquelas casas e todos estavam mortos. Louis tentava dar apoio a Fernando, lhe dizia para não acreditar no Hamas, que era tudo mentira. Mas nas bombas tinha obrigatoriamente de acreditar, estavam ao seu redor. Ele se lembra do estrondo das bombas distantes e, em seguida, do chão se mexendo e das paredes rachadas pelas que caiam próximas, dos vidros quebrados e do pensamento recorrente: amanhã não verei a luz do dia. “Era o nosso maior medo, podíamos ouvir nossos aviões sobrevoando e temíamos que bombardeassem o nosso prédio”.
Sua voz se embarga quando ele diz isso, porque Louis além de ser contador, ator e dançarino, também foi um soldado. Ele não conseguia se imaginar morrendo sob as bombas do exército pelo qual havia servido.
Louis ainda não retornou ao seu kibutz, daquele de Clara só restam escombros, para sua casa é cedo demais. Ele passa muito tempo na sede do Fórum de Famílias dos Reféns em Tel Aviv, onde teve o encontro com o La Stampa. Ele aponta nos pôsteres nas paredes os vizinhos mortos, os reféns que conhece e que ainda estão no cativeiro, e depois aponta para os rostos marcados com “Home”, como o seu: são os soltos e os liberados.
Para os outros, o relógio está correndo. É possível perceber isso por suas idades riscadas. Isso significa que fizeram aniversário no cativeiro, significa que meses se passam sem que se chegue a um acordo, enquanto em Gaza, todos os dias, se morre.
O que significa hoje a palavra liberdade é uma pergunta que tende a não ser feita. Em Gaza, tentava sobreviver ao medo da noite, fora de Gaza, tenta sobreviver às lembranças. Antes de 7 de outubro, ele acreditava na convivência, mas hoje não acredita mais. As últimas perguntas são as únicas que alteram os traços em seu rosto. Quando ele pensa nas pessoas mortas por bombardeios na noite de sua libertação, ele diz: todos eram do Hamas, mereciam morrer. Quando perguntado: você acha que há pessoas inocentes em Gaza? Ele não hesita. “Não, não existem”. Tudo mudou, para ele e para o país. Ele diz isso com a mesma convicção com que repete, até o fim, que agora a guerra deve ser interrompida para trazer todos para casa. Imediatamente.
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“Meus 129 dias em Gaza. Cozinhava para os carcereiros e afastava a morte” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU