"É evidente que a memória desse notável ciclo de protestos paira sobre o ativismo juvenil que começa a inundar as universidades. Contudo, não seria apropriado traçar paralelos excessivos ou lançar muitos sinos ao ar. O 1% está jogando demais este ano. A proximidade das eleições de novembro está acelerando os tempos de repressão, como se pode verificar nestes dias, em que foram presas mais de 2 mil pessoas que se manifestavam nas universidades. É impossível saber se a repressão e o bombardeamento midiático conseguirão fazer recuar o movimento. O que conseguimos nestas três semanas já é bastante transcendente e uma luz de esperança para aqueles que se envolveram".
O artigo é de Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A Gap percorreu os campos das universidades da Pensilvânia e de Los Angeles, enquanto milhares de estudantes nos Estados Unidos manifestam-se contra a agressão de Israel em Gaza e apelam ao fim dos lucrativos negócios comerciais entre as suas instituições de ensino e o regime de apartheid daquele país. Em pleno ano eleitoral, o levante preocupa o governo e a elite americana.
Em 17 de abril, estudantes da prestigiada Universidade de Columbia, em Nova York, iniciaram um acampamento no campus em solidariedade com Gaza. A polícia tentou despejá-los, mas eles resistiram. A repressão indignou estudantes e professores e atraiu um número maior de pessoas ao acampamento. Uma semana depois, quando centenas de estudantes se espalhavam num espaço central do charmoso campus da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, já havia mais de 60 acampamentos em outros tantos estabelecimentos acadêmicos.
A explosão de ativismo mostrou a incrível diversidade daqueles que exigem o fim da matança em Gaza. Na Filadélfia, os mais ativos pareciam ser jovens brancos, muitas vezes rodeados de afro-americanos; havia muitos migrantes latinos exibindo de tudo, desde wipalas até bandeiras mexicanas, um grupo de muçulmanos rezava de joelhos vestidos com seus trajes tradicionais, e muitas mulheres jovens e pessoas queer e trans podiam ser vistas. Alguns professores abordaram com pequenos cartazes manuais demonstrando seu apoio aos alunos, sempre ameaçados de retaliação.
Um pequeno grupo de jovens judias manifestou-se, mostrando o valioso e corajoso apoio dos judeus antissionistas à rebelião causada por uma guerra que consideram profundamente injusta, que não os representa e que é uma mancha indelével na história do judaísmo. As canções soavam contundentes e eram entoadas por uma multidão que ecoava o “viva longa” à Palestina. Não pude ouvir, nem na Filadélfia nem em qualquer outro campus, o menor insulto a ser judeu ou israelense, apesar do que dizem alguns meios de comunicação.
“Aqui está uma parte da geração Occupy”, disse a Brecha um professor de pais peruanos, chamado George, referindo-se ao movimento Occupy Wall Street da última década. Ele acrescenta que estas são as maiores mobilizações estudantis desde a Guerra do Vietnã, um comentário comum que agora se tornou senso comum. Uma pequena ronda responde como foram dispersados os enormes protestos do movimento Occupy Wall Street em 2011, quando ocorreram grandes manifestações em 52 cidades contra o 1% mais rico. “A repressão foi muito forte, com detenções massivas”, concluem vários, mas uma voz acrescenta que houve fortes disputas internas entre as diversas correntes da esquerda radical, nas quais anarquistas e marxistas tendem a azedar as mobilizações até cansá-las.
Columbia deu o primeiro passo, sólido, poderoso, com grande número de estudantes mobilizados. Mas a cachoeira era impressionante. Em duas semanas havia mais de 100 acampamentos e dias depois o número duplicou, com infecções europeias incipientes.
As ocupações na Califórnia são parcialmente diferentes daquelas registradas na Costa Leste. O mais numeroso e simbólico, o do campus da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), apresentava um grande núcleo militante muito bem organizado, com capacidade para garantir alimentação e cuidados de saúde a centenas de campistas, mas com alguns características próprias que também foram registradas na Colômbia.
A entrada dos visitantes solidários ficou a cargo de um grupo de segurança bem estabelecido, com os rostos cobertos e com critérios acordados para evitar contratempos, uma vez que pequenos grupos sionistas frequentemente provocavam e atacavam os acampados, com a passividade cúmplice da Polícia. Quando foi anunciada a iminente vaga da fortaleza em que se tornara o acampamento da UCLA, murada com tábuas nos quatro lados, os campistas tomaram a decisão de se dividir de acordo com três cores: vermelho eram aqueles que não tiveram problemas em serem presos, em verde ou amarelo aqueles que não queriam ser presos.
Na longa noite do despejo, a Polícia deteve cerca de 200 jovens, rodeados por milhares de mãos solidárias que lhes trouxeram comida, mobilizaram-se no exterior das esquadras e contataram a comunicação social e advogados de defesa que usavam capacetes verdes. Uma maravilha de organização em que se destacam os cordões muito largos de uma solidariedade quase espontânea, decorrentes do senso comum de autodefesa não violenta.
Foi surpreendente chegar ao Occidental College, uma universidade relativamente pequena numa área nobre da cidade, numa colina. Mais de 100 tendas num ambiente descontraído, sem problemas com as autoridades acadêmicas ou com a Polícia, o que nunca foi feito presente. O único segurança mostrou aos visitantes onde ficava o acampamento. No entanto, a Universidade Estadual da Califórnia, num bairro remoto de trabalhadores e migrantes, ostentava estilos semelhantes aos das grandes ocupações, embora com menos participantes.
Na verdade, cada acampamento é um mundo à parte dependendo do setor social a que pertencem os alunos, embora seja evidente que têm muito em comum, tanto na estética como nas músicas e objetivos. Uma delas é o “desinvestimento”, desinvestir em todas as empresas que fazem negócios com Israel e com fabricantes de armas, algo que algumas universidades estão em vias de conseguir e tem sido uma das reivindicações centrais além do fim da guerra.
Como aponta a análise do portal anarquista CrimethInc, “as universidades dependem de financiamento e relações de pesquisa com militares, fabricantes de armas e sionistas”. Segundo o Departamento de Educação dos EUA, nas últimas duas décadas cerca de 100 universidades reportaram doações de Israel ou contratos com aquele país no valor de cerca de 375 milhões de dólares, um valor que uma análise da Associated Press considera ainda muito abaixo do valor real estimado. A quantidade de dinheiro investido pelas universidades americanas em empresas e projetos israelitas na indústria de armas e segurança é até agora desconhecida. Estudantes da Universidade de Michigan dizem que a instituição envia mais de US$ 6 bilhões para gestores de investimentos com ligações com empresas ou empreiteiros israelenses. Segundo a CrimethInc, que acompanha de perto o movimento de ocupação, “a exigência básica de ver os palestinianos como seres humanos é incompatível com as agendas do governo e das universidades dos Estados Unidos”, porque este país “precisa de Israel como parceiro estratégico para manter a sua presença na o Oriente Médio.
Enquanto evacuavam a UCLA, outras universidades preparavam-se para se atirarem ao ringue, como aconteceu em Binghamton e Santa Cruz, em extremos quase opostos desta geografia insondável. Começa a surgir entre os jovens um sentimento comum de rejeição ao assassinato indiscriminado de jovens, que mal é expresso.
Eles encontram algumas possibilidades, que não são poucas no edifício rachado do poder americano.
Em alguns bairros de Nova York é possível ver mais bandeiras palestinas do que em cidades latino-americanas. Em Nova Jersey, por exemplo, mas também nos subúrbios deste estado, como Patterson, cidade precursora da industrialização, hoje habitada por peruanos, asiáticos e árabes. Os Kufiyas hoje fazem parte do cenário urbano nos metrôs, trens e ruas da Big Apple.
Os protestos contra a Guerra do Vietnã, nos quais os Estados Unidos desempenharam um papel decisivo e envolveram meio milhão de soldados, começaram em 1963 e no ano seguinte centenas de jovens começaram a queimar publicamente as suas cartas militares em rejeição do alistamento militar. Ao longo dos anos, os estudantes tornaram-se o centro do protesto, ao qual se juntaram mães de soldados, afro-americanos que se mobilizaram contra a segregação racial e depois os principais setores da sociedade, entre os quais o papel dos veteranos militares.
Houve gigantescos eventos de massa e ações ousadas, como a realizada em 21 de outubro de 1967, quando 100 mil pessoas se manifestaram em frente ao Lincoln Memorial em Washington e mais tarde pelo menos 50 mil cercaram o Pentágono. Em Abril de 1971, meio milhão de pessoas marcharam em Washington contra o envolvimento dos EUA no Vietnã. A escalada das mobilizações juvenis mudou o país, que ficou polarizado entre aqueles que apoiavam e rejeitavam a guerra. O movimento teve uma duração notável, uma década longa e conflituosa. Em 1966, já havia se espalhado por todo o país e em fevereiro daquele ano 100 soldados tentaram entrar na Casa Branca para devolver ao presidente suas condecorações.
A oposição à guerra foi ganhando adeptos, ao ponto de a maioria absoluta dos americanos expressar a sua rejeição nas sondagens. Apesar da repressão e infiltração de agências estatais como o FBI e a CIA, as mobilizações não pararam de crescer e expandir-se, desempenhando um papel de destaque na formação de uma consciência global contra a guerra do Vietnã. Artistas como Joan Báez e Bob Dylan, atletas como Muhammad Ali e centenas de personalidades contribuíram significativamente para difundir a consciência de que o seu país não deveria lutar no Sudeste Asiático.
Durante os anos de guerra, milhares de recrutas desertaram (as estimativas variam entre 80.000 e 206.000); Estima-se que meio milhão de soldados deixaram o Exército e outro meio milhão foram dispensados de forma desonrosa por desobediência, números alucinantes que levaram a Casa Branca a suspender o serviço militar obrigatório em 1973. O apoio à guerra caiu de 61% em 1965 para 28% em 1971, mas alguns factos mostram a dimensão da rejeição: "Na cerimônia de formatura de 1969 na prestigiada Universidade Brown, dois terços dos formandos viraram as costas a Henry Kissinger quando ele se levantou para fazer seu discurso”, escreveu o historiador Howard Zinn.
É evidente que a memória desse notável ciclo de protestos paira sobre o ativismo juvenil que começa a inundar as universidades. Contudo, não seria apropriado traçar paralelos excessivos ou lançar muitos sinos ao ar. O 1% está jogando demais este ano. A proximidade das eleições de Novembro está a acelerar os tempos de repressão, como se pode verificar nestes dias, em que foram presas mais de 2 mil pessoas que se manifestavam nas universidades. É impossível saber se a repressão e o bombardeamento midiático conseguirão fazer recuar o movimento. O que conseguimos nestas três semanas já é bastante transcendente e uma luz de esperança para aqueles que se envolveram.
Para os analistas mais críticos, como o já citado CrimethInc, os Estados Unidos vivem uma situação sem precedentes devido à aliança de apoio a Israel entre republicanos e democratas. “Isto cria uma situação que pode ser única entre todas as lutas de massas da história recente”, aponta o portal. Como exemplo, ele situa a rebelião antes do assassinato policial de George Floyd em 2020, sufocado pelo joelho de um policial branco. A grande mídia e os democratas toleraram os protestos sem censurá-los ou rejeitá-los porque “pensaram que poderiam aproveitar esses protestos para construir uma base eleitoral contra Trump durante um ano eleitoral”.
A percentagem de eleitores que aprovam o desempenho do presidente Biden é a mais baixa desde que existem registos, segundo o Gallup. Com 38,7% de apoio, ele está ainda abaixo de Bush pai, que teve o 41,8% e foi capaz de governar um único período. Se você olhar o gráfico, ele é muito plano e, segundo a empresa de opinião pública, a popularidade de Biden “não mostra sinais de aumento” (Gallup News, 26 de abril de 24).
A mesma empresa sustenta que a rejeição a Biden continua a crescer e atinge agora 58% do eleitorado. Entretanto, o índice de confiança econômica é inferior a 29% e apenas 23% acreditam que as coisas estão correndo bem nos Estados Unidos. Segundo as pesquisas, a migração é considerada o primeiro problema e, no plano financeiro, a inflação ocupa o lugar de maior destaque entre as preocupações do eleitorado.
O mais notável, porém, é que apenas 27% aprovam o seu desempenho na crise Israel-Gaza. Uma parte substancial das críticas vem do seu próprio partido.
Também paira sobre o espectro das primárias de Michigan, em Fevereiro passado, quando 100.000 eleitores democratas, a maioria de origem árabe, bem como eleitores jovens e progressistas, viraram as costas a Biden pela sua política de apoio incondicional a Israel. “Historicamente, os governantes que procuravam a reeleição com índices de aprovação inferiores a 50 por cento pouco antes das eleições foram derrotados”, salienta Gallup. O papel dos independentes será decisivo nas eleições presidenciais de novembro, além de 10 por cento dos democratas que não estariam dispostos a votar em Biden mesmo que isso significasse o regresso de Trump.
Com o passar dos dias começam a aparecer dados reveladores sobre a atitude policial, como é o caso do despejo da UCLA. “Na terça-feira à noite, um grupo mascarado cercou o campo em solidariedade com Gaza, soltando fogos de artifício e atacando violentamente os estudantes. Estudantes e jornalistas de vários meios de comunicação social afirmaram que as forças de segurança contratadas pela universidade trancaram-se em edifícios próximos e a polícia observou durante horas antes de intervir" (The Guardian, 2-5-24). Até o jornal pró-Israel e pró-governo The New York Times teve que reconhecer um dia depois dos outros, depois de analisar 100 vídeos, que havia “contramanifestantes” sionistas com máscaras brancas que atacaram violentamente o edifício durante cinco horas.
Evidentemente, o jornal nova-iorquino não menciona que os violentos eram sionistas, mas apenas se opunham aos campistas. O Times of Israel, publicado em Jerusalém, manchete: "Estudantes judeus dizem que a violência pró-Israel no campo de protesto da UCLA minou a sua defesa" (2-5-24). “A Federação Judaica de Los Angeles repetiu essa mensagem numa rara declaração criticando as ações dos judeus no campus”, observa o jornal, acrescentando que agora o prestígio daqueles que defendem Israel caiu muito. Acontecimentos como os ocorridos na UCLA ensinam duas questões fundamentais: que os meios de comunicação mais respeitáveis já não conseguem silenciar os abusos de poder e que o discurso de Biden que acusa os estudantes de serem violentos está longe da realidade.