30 Abril 2024
Os principais aliados de Israel, os Estados Unidos e a Alemanha, estão sendo testemunhas de uma onda de protestos contra o genocídio.
A reportagem é de Sarah Babiker, publicada por El Salto, 28-04-2024. A tradução é do Cepat.
Angela Davis fala para a câmera. Ela sorri: “Penso que os estudantes sempre indicam o caminho”, diz sobre os acampamentos de solidariedade a Gaza que surgiram na Universidade de Columbia e em muitos outros campus dos Estados Unidos. A histórica ativista celebra que os manifestantes utilizem o conhecimento adquirido em todas estas prestigiadas universidades para ajudar a construir um mundo melhor, e que “finalmente a luta pela liberdade do povo palestino seja abraçada em todo o mundo”. Ela deixa outra mensagem: o que acontece agora na Palestina determinará o futuro de todos.
As redes sociais estão fervilhando há duas semanas com imagens de manifestações, acampamentos, pessoas em assembleias debatendo, ouvindo discursos, dançando dakbe [dança tradicional palestina], policiais reprimindo brutalmente estudantes e professores, ou sionistas tentando mostrar que não se sentem seguros nas manifestações a favor da Palestina. Tudo isso acontece nos gramados de inúmeras universidades estadunidenses, sendo a da Columbia onde tudo começou. Muitas destas cenas lembram outras vividas há mais de uma década no Occupy Wall Street, na Primavera Árabe ou no 15M. Mas o objetivo deste ciclo de mobilizações entre tendas e cartazes é muito específico: a solidariedade com o povo palestino e a luta contra o genocídio.
Entretanto, em Berlim, um acampamento resistiu durante duas semanas em frente ao Reichstag, até ser desalojado na sexta-feira passada. Num contexto em que está proibida a organização de uma conferência sobre a Palestina, líderes europeus como o ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, são impedidos não só de entrar no país, mas também de se comunicar por videoconferência com pessoas de dentro do território, ou o uso de outros idiomas além do alemão ou do inglês nas mobilizações.
Tanto nos Estados Unidos como na Alemanha, assim como no Reino Unido, onde as manifestações são massivas, ou na França, onde estudantes da SciencePo em Paris organizaram um acampamento na quarta-feira passada que foi rapidamente disperso pela polícia, os protestos estão aumentando de forma hostil para a crítica ao colonialismo israelense. Nas universidades estadunidenses de elite, kufiyas e bandeiras palestinas tomam conta da paisagem enquanto pessoas de todas as origens conversam, participam de atos e discussões, fazem cursinhos de árabe, aprendem a dançar o dakbe e, acima de tudo, denunciam o genocídio. Ilustres judeus antissionistas como Miko Peled, o candidato presidencial Cornel West, ou políticas democratas como Ilhan Omar ou a atriz e ativista Susan Sarandon, visitam os acampamentos e se juntam às manifestações. Entretanto, os sobreviventes do Holocausto testemunham o que aconteceu e se recusam a permitir que esta memória seja usada para justificar outro genocídio.
O despejo brutal do primeiro acampamento, que começou no dia 16 de abril na Universidade de Columbia, não fez mais que expandir os acampamentos, até chegar a ser dezenas e se alastrarem inclusive para universidades do Canadá. Às imagens das prisões em massa daquele dia seguiram-se outras que mostram a repressão brutal contra estudantes e professores. Na sexta-feira, dia 26, a polícia desmantelou o campo em frente ao Reichstag, produzindo mais uma série de imagens que somente alimentaram a indignação diante da repressão a que a polícia está submetendo os seus próprios cidadãos para defender os interesses de Israel.
Há exemplos circulando em que os principais jornais oferecem um relato distorcido do que está acontecendo nesses protestos, como o artigo do The New York Post que fala sobre “uma estudante judia atingida no olho com uma bandeira palestina” para mostrar um vídeo em que nada disso aconteceu. As contínuas acusações de antissemitismo, ou de defesa do Hamas, não impedem a expansão dos acampamentos; as universidades associadas à Ivy League, como Columbia, Yale ou Harvard, que representam a reprodução das elites do país, estão povoadas por uma população de uma nova geração de estudantes que não estão dispostos a perpetuar a cumplicidade dos EUA com Israel. Na sexta-feira, um vídeo mostrava estudantes ocupando o prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e a pessoa que compartilhou a postagem perguntou: “Estamos diante de uma primavera antissionista?”
Retirada de investimentos, boicote acadêmico, fim da repressão e anistia às pessoas presas, essas são as principais reivindicações dos acampamentos desde que começaram na Columbia. A ação policial também não está atingindo o objetivo de dissuadir os manifestantes; pelo contrário, acabam reforçando as mobilizações: “Parece que a repressão está piorando cada vez mais. Mas quanto mais nos reprimirem, mais nos rebelaremos”, dizia uma integrante da Students for Justice in Palestine ao Democracy Now.
A universidade tem demonstrado a mesma divisão presente na sociedade: enquanto a maioria do corpo docente apoia aqueles que protestam, as suas elites apelam à repressão, expulsando massivamente os estudantes e suspendendo as aulas. Portanto, recebem as mesmas críticas dos partidos: estar à mercê da narrativa sionista porque dependem do financiamento dos seus lobbies, dependência que estaria levando novamente ao macarthismo dentro das universidades. O próprio Netanyahu falou há poucos dias sobre os acampamentos nas universidades, reproduzindo o discurso de que são espaços antissemitas onde os judeus arriscam as suas vidas e comparando os acampamentos com os da Alemanha na década de 1930. A intervenção do primeiro-ministro israelense alimentava a percepção de que Israel intervém na política estadunidense, uma crítica condensada no irônico termo “Estados Unidos de Israel”. A interferência sionista para que os Estados Unidos reprimam os seus estudantes estaria ameaçando algo que os estadunidenses consideram definidor de sua identidade nacional, a primeira emenda que garante o direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa e à liberdade de manifestação.
O movimento nas universidades dos Estados Unidos mostra uma ruptura geracional: os mais jovens parecem mais próximos da luta do povo palestino. Por outro lado, os movimentos interseccionais recuperaram uma tradição anticolonial a partir da qual podem desconstruir as narrativas israelenses, unindo coletivos racializados que demarcam a questão israelense como mais um exemplo de colonialismo racista e de supremacismo. São movimentos e narrativas que preocupam muito os think tanks sionistas, como mostrava o relatório Navigating Intersectional Landscapes (Navegando Paisagens Interseccionais), organizado pelo israelense Instituto Reut e pelo Conselho Judaico para Assuntos Públicos há alguns anos. Nele, dedicaram especial atenção aos movimentos de judeus antissionistas e suas alianças com outros grupos. Por outro lado, os protestos também desafiam a identidade estadunidense, ligando os protestos ao movimento estudantil de 1968 contra a Guerra do Vietnã, desmantelando a narrativa que os enquadra como algo estrangeiro e diferente.
Muito drama
À medida que o número de pessoas mortas por Israel desde 7 de outubro em Gaza ultrapassa os 34.000, o mundo observa como centenas de corpos de crianças, mulheres e homens palestinos, alguns amarrados, outros enterrados vivos, são recuperados em valas comuns perto dos hospitais de Al Nasser ou Al Shifa, ou o exército sionista assassina símbolos como Shaima Refaat Alareer, a filha do poeta Refaat Alareer, e seu bebê, há vários sionistas que insistem nas redes que são vítimas de um sentimento antijudaico nos campus que recorda o Holocausto.
A multiplicação de vídeos que mostram o suposto antissemitismo nas mobilizações chega ao paroxismo: viralizou um vídeo de uma judia “arriscando-se” a se expor ao acampamento e chamando as pessoas presentes aos gritos de “Sou judia, olhem para minha cara”, sem que ninguém prestasse a menor atenção ao que estava dizendo, ou o vídeo de outra mulher com seu cachorro relatando que está cercada por manifestantes e não se sente segura como uma mulher judia, enquanto os ativistas insistem que ela pode ir a qualquer lugar onde queira ir, ou do professor da Universidade de Columbia Shai Davidai, um conhecido sionista e provocador – alguns meios de comunicação ligam a sua família à fabricação de armas – denunciando o antissemitismo e comparando a atual universidade à Alemanha nazista quando lhe negam a entrada no campus temendo confrontos.
Davidai chamaria os manifestantes judeus solidários de Gaza Kapos, em referência aos judeus que colaboraram com os nazistas, fatos pelos quais foi denunciado. E embora movimentos como a Jewish Voice for Peace ou os Jews for Ceasefire estejam entre os organizadores dos acampamentos e contem com a presença permanente de judeus, isso não parece ser suficiente para desmantelar a narrativa que confunde antissionismo e antissemitismo, estratégia repetidamente denunciada por estas organizações que apontam a instrumentalização do antissemitismo para justificar a repressão do movimento contra o genocídio.
Juntamente com a estratégia de autovitimização, a criminalização daqueles que protestam é uma parte fundamental da história. O líder da Liga Antidifamação chegou ao ponto de descrever as organizações Students for Justice in Palestine e Jewish Voice for Peace como representantes do Irã. Ao mesmo tempo, são acusadas de serem financiadas pelo Soros e Rockefeller.
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Rebelião nas universidades e nos acampamentos: uma primavera antissionista? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU