22 Novembro 2023
Da janela do seu apartamento em Tel Aviv, o escritor Etgar Keret vê um país “suspenso”, muitos cafés estão fechados ou abrem por curtos períodos porque o pessoal está na reserva, as escolas funcionam parcialmente com turmas rotativas com aulas a distância como durante o coronavírus, a maioria dos jardins de infância estão desertos porque não possuem abrigos adequados. A madrugada de 7 de outubro mudou o presente dos israelenses, o dos palestinos e o sombrio de Gaza, a menos de uma hora de distância de carro, contudo muito distante: esse massacre, afirma Keret, deveria ter soado o alerta para o mundo, prisioneiro de esquemas ideológicos inadequados para compreender o aqui e agora.
A entrevista é de Francesca Paci, publicada por La Stampa, 20-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Etgar Keret, escritor israelense e dos mais populares da nova geração.
Cinco semanas depois do sábado mais escuro, a que ponto está Israel na sua história?
Seria errado olhar para o que está acontecendo do ponto de vista local. A guerra na Ucrânia já mostrou como, para além do contingente, existe uma dimensão global que envolve Rússia, China, Estados Unidos, Irã. A mesma coisa acontece em Israel. O mundo está abalado por mudanças muito rápidas em relação às quais a nossa concepção ideológica ficou para trás. Depois de apoiar durante trinta anos a solução de dois Estados e ter-me oposto a Netanyahu pensando que fosse uma história entre nós e eles, percebi nas últimas semanas que o ataque de 7 de outubro, ilógico para os palestinos e autodestrutivo para Gaza, estava sincronizado com a iniciativa saudita e com as contraposições internacionais, como uma jogada de xadrez em que uma peça importante deve ser sacrificada.
O quadro é maior, o conflito territorial passou para o plano da guerra religiosa. Ouvi muitas vezes as vozes dos homens do Hamas que dos kibutzim massacrados ligavam para casa contando quantos judeus haviam matado, nunca os definiam como “ocupantes”, mas como “judeus”. Estamos diante de um terremoto sem precedentes. Penso nos árabes-israelenses, 25% da população israelense: sempre foram contra as operações militares em Gaza e, desta vez, apoiam a guerra porque muitos deles foram mortos em 7 de outubro e veem o Hamas como um inimigo, mesmo assim são vistos com fortes sentimentos de suspeita pelos judeus que não confiam neles.
O que conseguiu o exército israelense ao entrar em Gaza, já que penetrou até onde nunca tínhamos visto antes?
Na memória coletiva israelense há desde sempre o espectro da penetração do exército em Gaza, o próprio Netanyahu evocou-o muitas vezes como um cenário funesto que teria trazido milhares de mortes entre os soldados e de terror nas nossas cidades. Mas depois da enormidade do 7 de outubro não havia alternativas, o orgulho dos líderes do Hamas pelo horror cometido tornou a intervenção popular. E a intervenção chegou, mais brutal do que nunca. Serviu para algo? Por um lado, é um sucesso, excelente coordenação, os combates em solo são, de fato, ‘mais seguros’ para os civis do que os bombardeios aéreos.
Por outro lado, porém, trata-se de um sucesso local que afeta apenas um terço de Gaza e num quadro em que as forças do Hamas ainda estão íntegras, provavelmente prontas para atacar a partir do Sul.
Israel sabe que o drama palestino é inaceitável para a comunidade internacional as manifestações de apoio à Palestina multiplicam-se e a ONU fala agora do risco de fome para Gaza. Até onde pode avançar a caça aos líderes do Hamas?
Sei pouco ou nada sobre estratégia militar. No entanto, sei o que está acontecendo no plano da comunicação e sei que quando as pessoas dizem que são a favor de Israel ou a favor da Palestina fico deprimido porque entendo que não importa o que eu disser, eles permanecerão firmes em sua opinião. Nas manifestações dos últimos dias muitos, de ambos os lados, abusaram das palavras “genocídio”, “holocausto”. Bibi pronunciou mais vezes ‘Hitler’ do que ‘kibutz’. Sou um liberal de esquerda e quando vejo os chamados ativistas pró-palestinos rasgando os cartazes com fotos dos sequestrados, entre os quais Alex Danzig, que sobreviveu ao Holocausto como minha mãe, me sinto mal. Muitos israelenses também não querem ver os mortos em Gaza.
É um exercício de empatia seletiva. As pessoas estão convencidas de que odiar um lado ou outro seja ativismo, mas ativismo é enfrentar os problemas e tentar resolvê-los. Diante do Hamas que se esconde entre os pacientes dos hospitais, alguns ficam indignados e outros descontam em Israel: prefiro sugerir a instalação de hospitais flutuantes onde evacuar os feridos. Qualquer pessoa que queira ajudar deve compreender os efeitos de suas palavras. Sempre usei o slogan ‘fim aos 56 anos de ocupação’, mas hoje nas redes sociais se fala de ‘75 anos’, que remonta a 1948, antes do nascimento de Israel. Estamos nisso? Simplificar é o pior cenário possível.
Os ministros mais extremistas do governo israelense e os colonos pedem todos os dias a expulsão dos palestinos de Gaza. Eles realmente pensam assim?
Loucura, a ideia de que os palestinos possam ir embora é uma fantasia doente. É claro que há pessoas no governo que gostariam de reocupar Gaza como nos tempos de Gush Katif. E é tudo culpa de Netanyahu, que, para sobreviver, cercou-se de parceiros sem lei. Para esses extremistas religiosos, messiânicos e racistas, o 7 de outubro foi quase um sinal de Deus, porque muitas das vítimas eram pacifistas, pessoas que ajudavam Gaza, pessoas que não viviam fora das fronteiras de 1967, mas dentro. Um colono que evoca a bomba atômica é alguém que odeia, capaz de ignorar os reféns porque são ‘amigos dos árabes’. É uma narrativa perversa, simétrica à do Hamas, que vê o que aconteceu como o combustível da ideologia. A extremização do discurso está aqui, agora. Mas quando a guerra terminar, uma guerra que Netanyahu se ilude estar liderando, mas que felizmente é supervisionada pelos Estados Unidos, Bibi será varrido da cena política, assim como o Hamas e então, espero, as portas se abrirão para um Estado palestino.
Você ainda acredita na solução de dois Estados?
A única solução é Abu Mazen assumir o controle de Gaza e que nasça um Estado palestino, aquele estado que Bibi não queria e que o Hamas achava que não era suficiente, contando ambos, por diferentes razões, seguir em frente assim, um mantendo os habitantes de Gaza numa jaula e outro contendo a retaliação. Suas mentiras foram desmascaradas. No Judaísmo acredita-se que às vezes é preciso passar por situações terríveis para chegar a um lugar melhor. O dia 7 de outubro foi um eletrochoque, depois de Oslo, Rabin e da segunda intifada vivíamos na estagnação, acostumados a confrontos periódicos e administráveis. Agora temos uma oportunidade, é hora de decidir pela mudança.
Após os primeiros dias dramáticos, a simpatia para com Israel dissolveu-se. Multiplicam-se as manifestações contra a ocupação, mas até mesmo atos de antissemitismo flagrante. Você está com medo?
Muitos não simpatizaram com Israel nem mesmo no início, Susan Sarandon, Roger Waters e Angelina Jolie não esperaram um segundo para questionar as causas do massacre. Muitos, ao invés de falar sobre a realidade, imediatamente projetaram emoções. É o sinal dos tempos, as pessoas não querem informações, mas causas para apoiar. Por outro lado, a islamofobia também está aumentando em Israel. E, além disso, é claro, existe também o antissemitismo propriamente dito, amplificado pela simplificação da linguagem e difundido indiscriminadamente pelas redes sociais. Se em Gaza se invoca ‘Allah akbar’, já não se fala mais de questão israelense-palestina, mas se entra num campo muito diferente. E erra a Europa que permite que os judeus sejam atacados para defender a bandeira islâmica da causa dos palestinos, ignora que depois será a vez dos não-judeus.
Circula um apelo na Internet de mil intelectuais judeus, de Naomi Klein a Judit Butler, no qual se argumenta que criticar Netanyahu não pode ser considerado antissemitismo. O que você pensa disso?
Respeito totalmente Naomi Klein e os seus argumentos, mas não posso dizer o mesmo de Judith Butler, que no calor do discurso anticolonial apoia coisas absurdas como o fato de a maioria dos judeus de Israel descender dos árabes. Existem argumentos contra Israel e a ocupação absolutamente legítimos e outros especificamente antissemitas, baseados no ignorar as responsabilidades palestinas e na vitimização paternalista. Como se minha mãe, que sobreviveu ao extermínio, tivesse sido legitimada pela sua tragédia a matar os alemães.
Qual deveria ser o papel dos intelectuais? Eu pergunto a você que, parece que foi há um século, assinou com Samir el Youssef, Gaza Blues.
Acredito que não há nada mais perigoso do que o exercício da empatia seletiva, prantear as crianças dos kibutzim, mas não aquelas palestinas, denunciar o massacre em Gaza e azar do 7 de outubro. A humanidade é dinâmica e não tem nada a ver com a estagnação ideológica que, ao contrário, as redes sociais ampliam como falso ativismo. Antigamente o ativista parava as escavadeiras que destruíam as oliveiras mandando uma mensagem clara ao mundo, hoje joga uma sopa num quadro de Van Gogh para defender o meio ambiente. Mas quem entende pelo que está lutando?.
Existe um perigo real de que o conflito se estenda para a Cisjordânia ou para além, envolvendo de forma direta a região?
Sim. No cenário atual existem dois agentes do caos. Há o Irã, que gostaria de incendiar a região através do Hezbollah e da Jihad Islâmica em Gaza, e ainda não decidiu se arriscará. E há os colonos fundamentalistas que veem na crise a oportunidade de tomar mais terras. Não, ter que contar com o bom coração dos aiatolás e dos colonos não me permite realmente dormir sonos tranquilos.
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“É uma loucura ter que escolher quais vítimas chorar e quais não”. Entrevista com Etgar Keret - Instituto Humanitas Unisinos - IHU