"Nesta Páscoa, somos convidados a olhar sessenta anos atrás a Páscoa celebrada pela Igreja em 1964 e refletir sobre a passagem feita durante essas seis décadas. Não podemos reduzir as experiências narradas aqui como vidas pautadas apenas no fazer, nem analisá-las como “ativismos exagerados”, mas, de rostos proféticos impelidos pelo anúncio e denúncia na vida cotidiana", escreve Leonardo Bentes Rodrigues, Mestre em História Social e Especialista em Historiografia e Ensino de História pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
As passagens na história são acontecimentos de conflitos e esperanças, carregadas de memórias que emergem à consciência e nos provocam. Neste percurso, em 2024, o golpe civil militar no Brasil completa sessenta anos, ferida traumática aberta em nossa historicidade. Concomitantemente, a Igreja Católica encontra-se diante de duas realidades: primeiro, também completam-se seis décadas da Campanha da Fraternidade, cujo objetivo é despertar o espírito comunitário e cristão em seus fiéis, situa-se atualmente censurada por grupos reacionários que articulam estratégias de perseguição ao clero e leigos que colaboram na sua promoção (atitudes que lembram as investidas de núcleos organizados que apoiavam a ditadura); em segundo, os cristãos celebram a Páscoa durante o curso desta efeméride, assim como na execução do golpe em 1964, portanto, oportunidade única para a Igreja refletir sobre os traumas que cercam essa passagem em nossa história: é tempo de fazer memória e não esquecer dela.
Contextualizando, fazer “[trazer à] memória” trata-se de expressão atribuída à mística elaborada por Inácio de Loyola no século XVI, na ocasião, também inaugurou a chave hermenêutica de “provação” com o objetivo de saborear tempos, pessoas e lugares. Essa chave disponível precede a categoria de “experiência”, central na modernidade, mas impronunciável na Igreja de sua época até o século XX. Consequentemente, essa noção nos instiga a reler a história, reconstruir e impelir a escrever uma nova narrativa. Fazer memória, de fato, não é mudar o passado, mas sim, convite a elaborar outra perspectiva e também um horizonte de compromisso social. Neste sentido, encontramos aqui o ponto de conexão entre fazer memória e a construção da consciência histórica: precisamos entender que há uma interdependência entre passado, presente e futuro, para assim, conseguirmos orientar não só as nossas vidas, como os nossos “feitos” no tempo, logo, a história é busca, portanto escolha.
Historicamente, nem sempre a Igreja Católica esteve em saída, ou mesmo, não tinha como opção preferencial os pobres. Por conseguinte, é preciso considerar as continuidades do peso da conquista colonial, primeiro, espiritual, depois, material de sua presença nas Amazônias. A obra A conquista espiritual da Amazônia (1942) escrita pelo historiador Arthur Reis coroou a justificativa da exploração ao afirmar que a colonização foi “uma empresa seguramente dominada pelo sentido espiritual”, logo, a intenção política estava fortemente marcada pela incorporação à cultura dominante, devendo as ordens religiosas impelidas pelo “serviço de Deus” a agir na catequização dos povos originários. Protagonizaram essa “obra de civilização” os franciscanos, jesuítas, carmelitas, mercedários e couberam a esses missionários a função de servir a ocupação colonial portuguesa na região, principalmente submetê-los à autoridade do rei. Consequentemente, a região foi entrecortada entre missões, proferiram imperiosamente o jugo da fé sobre as plurais culturas milenares que ali habitavam.
Na ocasião da publicação da obra, no auge da ditadura do Estado Novo, a Igreja através da ação de seus missionários, era força predominante na região, fruto de três séculos de cooperação com o poder metropolitano. Essa justificativa encontra-se alojada nesta história apologética, oficialesca sobretudo, que pôs para debaixo do tapete a memória, o sangue das etnias e povos tradicionais para exaltar a vitória do colonizador, preço imensurável da conquista espiritual das Amazônias.
Aliás, preferimos aqui a noção de Amazônias, possibilitando dar vazão à diversidade de temas e saberes de cada local articulados pela particularidade de seus saberes históricos. Assim, em contraposição ao discurso hegemônico, que compreende a região como território homogêneo, contemplar a pluralidade cultural e o dinamismo histórico destes conjuntos de universos.
Conforme dito anteriormente, Estado brasileiro e Igreja estavam alinhados na justificativa de “responsabilidade civilizatória” através de princípios humanitários (a partir de escolas e hospitais, por exemplo) na região amazônica. Para o antropólogo Georges Balandier, esse problema colonial de “valorizar” a região considerada decadente pela presença marginal de sujeitos “primitivos” resultou neste cenário de situação colonial, consequências que perturbam brutalmente a história dos povos.
Quando o golpe civil militar foi executado em 1964, os militares - com apoio amistoso de civis (inclusive do próprio Reis, como governador biônico do Amazonas entre 1964 e 1966) e da Igreja Católica - colaboraram na narrativa da pretensa melhora do sofrimento do “homem amazônico” que vivia nos confins dos igarapés e dos caprichos da natureza. Na verdade, se auto intitularam “redescobridores da Amazônia”, tomando como princípio humanitário desencadear o desenvolvimento econômico da região após a mesma permanecer por mais de meio século “entregue a si mesmo”. Naquela conjuntura, a Igreja concordou em não romper com a historicidade da conquista espiritual, tão necessária para justificar a consolidação da ditadura na região.
Cumpriu ardorosamente essa missão, o Arcebispo de Belém, Dom Alberto Gaudêncio Ramos, imponente com sua veste talar e barrete episcopal, posou sorridente para os jornais em meio à multidão na versão da Marcha da Família com Deus na capital paraense. Durante entrevista concedida a TV Marajoara, deixou claro o apoio irrestrito da Igreja ao golpe. Na missa em ação de graças pela ditadura, não hesitou em conceder bênção ao autoritarismo, frisou em sua homilia que foi no sábado santo que o Brasil, mergulhado em trevas, “entoou verdadeiramente aleluia”, pois, a “liberdade” voltou a reinar. Insuflando o discurso anticomunista, sentenciou que os acontecimentos dos últimos anos foram influenciados por “forças comunistas” que não respeitaram a vontade do povo cristão. Embalado por essa narrativa, o Arcebispo de Manaus, Dom João de Souza Lima, conclamou seus fiéis a se somarem ao “Movimento Solidarismo e Democracia” em defesa da pátria com o objetivo de expurgar tais forças no comando do país. Ao lado de padres, pastores, representantes judeus e espíritas, percorreu as principais ruas de Manaus dando graças pela vitória da tirania.
Acreditamos que o ponto unívoco deste alinhamento religioso tenha sido o discurso do ateísmo presente nas representações do comunismo. Deste modo, tal união religiosa e política pode ser lida através do objetivo de combater a subversão e salvar a destruição da religião. Essa tradição anticomunista, constantemente adaptada e ressignificada durante a história na sociedade brasileira, tem como objetivo político preservar a ordem social e escamotear mudanças através do medo imposto aos fiéis por meio de discursos religiosos. Por exemplo, a narrativa de que o Presidente Goulart implementaria a partir da suposta conspiração golpista, um regime comunista “ateu” aliado a Cuba e a União Soviética, nunca teve sustentação empírica provada, isto é, trata-se de mentira histórica. Essa obsessão nos custou caro, consolidou uma ditadura de vinte e um anos e permanece ameaçando a nossa frágil democracia. Enquanto a nação se rendeu a esse discurso em 1964, inúmeros foram torturados e perseguidos. Na ocasião, a Páscoa celebrada pelos católicos como festa máxima de sua fé entre os dias 31 de março e 1 de abril, foi marcada pelo sangue derramado para além dos altares, mas, nas ruas, nos quartéis, nas prisões e eles não ouviram o clamor do seu povo.
Contudo, não contaram com o movimento do Espírito, aquele que sopra onde quer. Entre 1967 e 1968, a ditadura sofreu desgaste entre os setores que a apoiaram, de um lado os militares desejosos em aperfeiçoar a aparelhagem autoritária, do outro a imprensa, os economistas e a própria Igreja, incomodados com a herança econômica das pautas liberais e a moderação do governo Castelo Branco.
Com efeito, vinte e três padres da Arquidiocese de Belém assinaram nota publicada no jornal A Província do Pará no domingo de Ramos de 1968 em defesa dos estudantes e condenando o autoritarismo. Apoiaram as ocupações estudantis por melhorias na infraestrutura da Universidade do Pará, intensificada após o assassinato do estudante paraense Edson Luiz no Rio de Janeiro. Amparados na encíclica Populorum Progressio de Paulo VI, afirmaram que eram padres de uma igreja que não se refugiava no mero plano espiritual, mas na presença de Deus no meio da humanidade. Desdenhando do manifesto, Dom Alberto Ramos afirmou que a instituição sempre defendeu o direito humano da expressão do pensamento, também acusou a influência dos clérigos estrangeiros sobre a minoria brasileira daqueles que assinaram a nota, por fim, proibiu a missa campal organizada pelo grupo com receio de incentivar “arruaças”.
Posteriormente, inspirados tanto pelo Concílio Vaticano II quanto pela Conferência de Medellín, os bispos da região amazônica ousaram em promover a atualização nas estruturas eclesiais a partir da elaboração da Carta de Santarém em 1972. O documento, aponta a partir das críticas às invertidas da ação colonialista desenvolvimentista, a necessidade de priorizar a ação evangelizadora “encarnada” e “libertadora” na região, evidenciando o rompimento da ala progressista (ligada ou não à Teologia da Libertação) com a Ditadura militar. A propósito, encontramos não apenas críticas ao regime, mas, outras direcionadas ao próprio capitalismo, também manifestaram apoio à causa dos povos originários. Como signatários do documento final do Encontro de Santarém, encontram-se os nomes de Dom Alberto Ramos e Dom João Lima juntamente ao de Dom Pedro Casaldáliga. Ali, juntos, ouviram o apelo de Paulo VI que os incitaram “que Cristo aponta para a Amazônia”. Aliás, o pontífice tinha especial afeto pela região, pois nela repousa o seu sobrinho, Luís Montini, missionário salesiano falecido em 1963 após banhar nas águas de São Gabriel da Cachoeira (AM). Finalmente, encerra com o imperioso apelo aos membros da Igreja: “sermos dignos pastores no momento histórico que vivemos”.
Nesta ocasião, não descartamos a influência da cultura política nas experiências dos bispos, cremos que o que deve ser levado em consideração é o protagonismo de agentes que fazem escolhas e o peso das relações estruturais refletiram em seus comportamentos políticos, já que as “tradições preexistentes impactam as escolhas políticas e impõe certos limites aos agentes” conforme afirma o historiador Rodrigo Motta. Encontramos ecos destes comportamentos na difusão do relatório final da 2° Assembleia Inter-Regional da Pastoral da Amazônia assinada pelo contraditório Dom Alberto Ramos. O documento ressalta que a Igreja na Amazônia não deveria alhear-se à situação do povo, marcadas por verdadeiras injustiças, situações de angústia e desequilíbrios sociais. Neste sentido, sua relação ambígua pode ser explicada a partir da influência entre valores defendidos por culturas políticas concorrentes, embora sejam adversárias e detentoras de características antiéticas, encontram grande aceitação social. Talvez, o que uniu os progressistas e conservadores naquela ocasião seja a defesa intransigente do Concílio Vaticano II, sobretudo, expresso no desejo da unidade eclesial.
Porém, essa postura não se deu de maneira unânime e sem disputas internas. De acordo com o historiador Paulo César Gomes, o posicionamento da Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB) foi sendo construída aos poucos durante a década de 70, reconhecida neste percurso pela sociedade civil como canal de denúncia das arbitrariedades do regime. Aliás, descreve ainda, que neste contexto o Amazonas foi palco de conflito entre a Igreja e o Estado após a publicação do documento A Marginalização de um povo, denunciando o estado de vida imposto à população local, ao criticar o sistema de saneamento básico, a educação, as moradias e concentração de terras, principalmente, a ação autoritária da ditadura na região.
Finalmente, a materialização desta ruptura instauradora tem como marco histórico o IX Congresso Eucarístico Nacional (CEN) realizado na cidade de Manaus em 1976. Tão importante evento forçou a ditadura a organizar denso aparato de arapongagem, principalmente nas ações de infiltrações entre o clero em face de possíveis pronunciamentos críticos. Seus “alvos” principais foram bispos de diversos espectros ideológicos, tais como os cardeais Eugênio Sales, Paulo Arns, os bispos Mário Gurgel, Ivo Lorscheiter e o monge Estevão Bittencourt. Quanto a Dom Antonio de Castro Mayer, de posição reacionária, não compareceu por ser contrário ao evento. Enquanto a presença não confirmada de Dom Hélder Câmara foi encarada com ansiedade pelos agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI), em decorrência de sua enfática presença non grata ao regime e por sua grande influência no meio católico.
A propósito, encontram-se preservados no acervo Memórias Reveladas cerca de quatro dossiês com quase cem páginas produzidos pelo SNI entre relatórios de monitoramento e clippings. Neles localizamos o objetivo posto pela CNBB em oferecer à Igreja oportunidade de refletir sobre sua contribuição para que a “integração da Amazônia” na comunidade nacional se procedesse à luz de “princípios humanos e cristãos” através da realização do congresso. A instituição entendeu que tal “desenvolvimento” e “progresso”, sem estes princípios, provocaria desequilíbrios profundos e irreparáveis não só na região, mas em todo o Brasil. Por conseguinte, alguns pontos foram conduzidos aos debates do congresso a partir do documento da 2° Assembleia Inter-Regional da Pastoral da Amazônia, pontuando o aumento exagerado e incontrolado do custo de vida, a cessão de grandes posses de terras, a desumanidade de empreiteiros no aliciamento dos trabalhadores, aumento vertiginoso da prostituição e da miséria e por fim, a falta de legalização de títulos de terras. Coube ao conservador Dom João de Lima, como presidente do CEN, a função de levar tais reflexões para a programação do evento.
Tal encontro protagonizou uma singular mudança no posicionamento da Igreja. Até a comunidade de informações redigiu em seus documentos, outrora confidenciais, como “marco de um período de transição” presente na quebra da tradição de pompa e oficialismo presente em congressos anteriores. Frisou que não apenas a forma mudara, mas o conteúdo, retratando como ponto inovador os debates entre os leigos e os jovens. Descreve ainda, que houve a preocupação de aproximar a liturgia aos problemas concretos da população, além da exigência de compromisso com a justiça, a liberdade, a igualdade e o direito à melhoria de vida do povo nas Amazônias.
Durante os debates, os congressistas acentuaram a necessidade de encarar os problemas daquela atualidade, como o conflito de terras, situação dos indígenas e a realidade eclesial. Na ocasião, a associação de ex-padres de Manaus pediu para que aproveitassem os “padres casados” perante o número insuficientes de sacerdotes na região, criticando a “casta fossilizada” que escraviza-os e acovarda-os em troca de uma vida acomodada, tirando-lhes toda a capacidade de sentir a encarnação com povo de Deus. Por outro lado, a presença de padres de fora da região causou incômodo aos bispos das Amazônias, criticaram as conversas atraídas pelo “exotismo” presente em perguntas irrelevantes que prejudicaram a essencialidade das discussões.
Ainda no bojo dos debates, o discurso da coordenadora geral do CEN, Irmã Marília Menezes (Congregação das Irmãs Adoradoras do Sangue de Cristo) gerou tensão na comunidade de informações, ao afirmar que o encontro não significava apenas reunir os homens, mas repartir com eles o pão do amor, da fé, da justiça e a todos deveria ser dado o direito de ser feliz, sem discriminação de cor, raça, religião e principalmente de classe.
Também elencamos dois gestos que indispuseram o regime: primeiro, a distribuição de 30 mil pães, coordenado pelo presidente do Sindicato dos Panificadores e Confeitaria de Manaus; segundo, o pedido do pastor Pedro aos bispos e congressistas para que rogasse a Deus e as autoridades a solucionar o problema de moradia no bairro da Compensa, onde ocupantes foram ameaçados por latifundiários. De fato, o congresso incomodou pela forma simples e conteúdo questionador, seu principal crítico, o escritor Gustavo Corção, alegou em sua coluna no jornal O Globo que o encontro nada tinha de “católico porque renega as leis de Deus”.
Tachados como “esquerda clerical”, tanto Dom Pedro Koop quanto o padre Oscar Beozzo tiveram suas ações monitoradas, aliás, toda a aparelhagem de espionagem também serviu para produção de contrainformações sobre a conduta dos ditos membros deste “clero”. Tomemos como exemplo o caso do padre Caetano Maiello (missionário italiano do PIME) então secretário executivo do CEN, incriminado por “doutrinação” ao “agitar” os estudantes, “homem altamente subversivo”, escritor de artigos críticos na Amazônia Amapaense, causador de atritos entre Igreja e o regime, detentor de pregações rebeldes com citações ofensivas e apologia a Carlos Marighella, além da acusação de manter vida dupla com uma amante brasileira. Durante o congresso, Maiello denunciou a presença de agentes que distribuíram panfletos com conteúdos difamatórios, também delatou os membros da Tradição Família e Propriedade (TFP) de colaborar junto destes na disseminação de propaganda reacionária embasadas nas obras de Dom Castro Mayer pelas casas da capital na tentativa de desmobilizar o encontro. Na abertura, 35 mil pessoas assistiram a missa solene e mais de 250 suspeitos foram detidos durante a “blitz” realizada pela polícia no entorno do evento e nos subúrbios.
Em mensagem televisionada, Paulo VI transmitiu novamente que a Igreja “volta-se para a Amazônia” naquela hora de esperança, expressando seu afeto e solidariedade aos católicos reunidos na ocasião. Durante o discurso, o pontífice frisou que o país era “levado nas asas de um surto de progresso admirável”, contudo, criticou a realidade brasileira ao afirmar que o país ainda beirava à margem do comum bem-estar e da solidariedade fraterna, convidando-os a repartir e partir o pão com os mais pobres. Era o tempo de Médici ou “os anos de chumbo”, marcado pela ilusão do milagre econômico e da crescente carestia que afetou a população, além do adensamento da repressão. Por outro lado, tempo de persistência, resistência, novidade e da urgência da ação solidária neste virar decisivo da história da humanidade.
Consequentemente, a ruptura instauradora também se instalou no seio das dioceses, ordens e congregações: padres, religiosos e religiosas deixaram o horizonte da conquista pelo caminho da liberdade. Essa “outra Igreja”, no qual o ministério de evangelizar foi compartilhado com todos os cristãos, foi contemplada por uma profundidade nova imersa no coração do ministério sacerdotal junto da vida religiosa: o convite de saborear o seu rosto pluriforme. Aliás, esses sujeitos tomaram consciência da mudança que o saber operou em suas experiências e da necessidade da inserção no mundo, tornando possível a permissão deste acontecimento instaurador ao compreender que o Espírito “age desde baixo, desde os diferentes”, ou seja, desde os marginalizados conforme afirma Víctor Codina. Além do mais, os documentos conciliares deram vazão às suas ações, incentivando a conhecer os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho (cf. Gaudium et Spes, 4) para que não se tornem alheios aos seres humanos ou inúteis na cidade terrena (cf. Lumen Gentium, 46).
Neste caminho, o catolicismo vivenciou momento único, caracterizado na circularidade do trânsito de carismas e moções de atualização pelo globo: dos cardeais Ribeiro na defesa pela democracia em Portugal, Bernardin e sua ética coerente da vida nos Estados Unidos, Landázuri e a luta pela vida dos marginalizados no Peru, Arns e a expansão dos direitos humanos junto de Dom Hélder Câmara no Brasil. Para além, Pedro Arrupe como Padre Geral da Companhia de Jesus, Chiara Lubich no Movimento Focolare, a espiritualidade ecumênica do Irmão Roger em Taizé, o amor às margens do jesuíta Michel de Certeau, a arquitetura da renovação de Mary Luke Tobin, a defesa dos povos originários pelo irmão (kiwxi) Vicente Cañas, os conselhos espirituais de Thomas Merton, o ativismo de Dorothy Day, enfim, a representatividade de Pillar Bellosillo. Tudo era novo, inspirador, renovador e o Espírito soprava também no norte do Brasil.
Nas Amazônias, o missionário Dom Aldo Mogiano, bispo de Roraima e suas práticas proféticas de assistência à resistência dos povos originários é grato exemplo. Quem nos aponta essa constatação é o historiador Jaci Vieira, ao analisar as práticas de resistência e libertação organizadas em Roraima (RR) com o apoio de missionários entre 1969 e 1999. Ressalta ainda que a ditadura considerava os indígenas como “figura inútil” que ocupavam as áreas mais ricas do país, impedindo a sua exploração e ocasionando prejuízo à nação, consequentemente, o dever do regime era transformá-los em “seres úteis à pátria”. Neste momento histórico, Mogiano fez opção pelos indígenas, seu testemunho incomodou as elites locais e os fazendeiros. Clamou pela demarcação das terras indígenas, disponibilizou sua diocese para supervisionar o projeto “uma vaca para o índio” e possibilitou base material essencial para a luta da terra dos povos originários. Tudo isto em consonância com os documentos conciliares, em específico, a Lumen Gentium, expresso na sua vontade de apresentar o Reino de Deus que acreditava se manifestar aqui na terra.
Aliás, a historiadora Tamily Frota aponta que a década de 1970 viu crescer a organização política e pastoral entre as alas progressistas da Igreja Católica, inclusive, considera o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) como fruto dessa guinada. A ação da instituição foi crucial no enfrentamento das dimensões de continuidades da repressão sistematizadas pela ditadura, descreve que as heranças desta “historicidade maldita” se encontram na atualidade marcadas pela ausência de reparação em diversos genocídios cometidos contra os povos indígenas.
Na contramão de sua própria congregação, acusada no Tribunal Internacional Bertrand Russell em 1980 de “atos etnocidas sistemáticos”, o salesiano Casimiro Béksta denunciou no jornal Porantim (1978) o suicídio de jovens indígenas que tinha em comum o fator de estudar em internatos salesianos da Prelazia do Rio Negro (AM), onde sua línguas foram emudecidas pela educação colonialista. Para o professor Higino Tuyuka, Béksta causava estranhamento entre os indígenas, jocosamente conhecido como “padre do diabo”, pois, de um lado estavam os padres que afirmavam que suas culturas eram “coisa do diabo”, enquanto da parte dele queria tomar conhecimento não só de suas histórias, mas da preservação de suas diversidades culturais. Por suas atitudes a contrapelo, o antropólogo lituano pagou caro ao levantar sua voz contra o genocídio linguístico em marcha, inclusive delatado pelos próprios irmãos de missão aos órgãos da ditadura.
Entretanto, junto do CIMI e de outros missionários como o indigenista Egydio Schwade, não deixou de denunciar as práticas de dominação da Igreja sobre os povos indígenas. Ao documentário Remições do Rio Negro (2010), no findar de sua profética existência, como num mea culpa em seu exílio penitencial de si, declarou: “os missionários destruíram muito e depois procuramos recuperar o que sobrou (...) desconhece, condena tudo e depois vangloria-se”.
Nesta Amazônia Amazonense, também fazemos memória de Dom Milton Correa Pereira, cuja trajetória foi rememorada pelo movimento estudantil como impelida pela causa do povo, da sociedade, da democracia, demonstrando solidariedade e humanidade em momentos conturbados durante a ditadura. Após passar seis anos como bispo da Diocese de Garanhuns (PE), imerso na dura realidade nordestina, tomou posse como arcebispo coadjutor de Manaus em 1973. Influenciado por tantos contextos periféricos, sua nomeação causou receio no regime, pois seus comportamentos destoavam do seu antecessor, simpático à ditadura.
Na madrugada de 1979, cerca de seis mil pessoas percorreram as ruas de Manaus em Caminhada Missionária, na maioria jovens pertencentes às pastorais juvenis, além de outros membros da Pastoral da Terra, CIMI e Movimento de Defesa do Meio Ambiente. Durante a caminhada, os participantes gritavam palavras de ordem como “queremos comunhão contra a opressão” e o arcebispo, influenciado pelos apelos da Carta de Santarém, discursou que a Igreja estava atenta à realidade e que não pactuaria com o processo de extermínio dos povos indígenas, afirmando que a Amazônia vivia importante momento histórico e a própria instituição deveria estar consciente para a missão que os esperavam.
No percurso, ainda foram proferidas outras manifestações contra o autoritarismo e a realidade socioeconômica da América Latina. Todas essas informações foram recolhidas por agentes do SNI, receosos pelo aumento da adesão dos fiéis, que desde 1976 vinham engrossando a participação das caminhadas, acompanhada pelo que nomearam de “radicalismo cada vez maior” nas escolhas dos temas, além de acusarem o clero de manipular pessoas “ignorantes” e “vulneráveis”.
Caminhavam também ao lado de Dom Milton e do povo, os companheiros jesuítas Albano Ternus e Renato Barth, idealizadores da Pastoral Operária, ambos foram constantemente monitorados pela comunidade de informações e frequentemente presos em decorrência destas ações. Também atuaram na Comissão Pastoral da Terra (CPT), num estado marcado por conflitos de terra, imputado pelo regime como resultante da atuação conjunta de sindicatos e trabalhadores rurais. Foram acusados de promover “agitação subversiva” em decorrência da organização das caminhadas missionárias, distribuições de panfletos, das denominadas “missa de protesto” e dos cursos que ministravam nas paróquias e no Centro de Estudos do Comportamento Humano (CENESC), instituição considerada núcleo das atividades do “clero progressista”. Barth fora fichado como organizador de “movimentos contestatórios” em Manaus e parceiro de Dom Pedro Casaldáliga na Prelazia de São Félix do Araguaia (MT), destacado por suas ações em preparação ao funeral do padre jesuíta João Bosco Burnier, assassinado pela ditadura em 1976 no Mato Grosso (MT). Amado e admirado por toda a classe trabalhadora devido ao seu reconhecido carisma popular, a socióloga Iraildes Torres rememora sua figura como o “maior mentor dos operários”.
Afinal, a Igreja, fosse ela instituição ou templo, também prestou apoio aos estudantes perante as investidas do autoritarismo. Em 1968, os frades capuchinhos celebraram a missa de réquiem em intenção ao estudante Edson Luís na Igreja de São Sebastião. Encerrada, os estudantes portando lenço preto amordaçando a boca em sinal de luto, percorreram as ruas do centro de Manaus num sinal claro de “amordaçamento total”. No mesmo templo, em agosto de 1981, a ditadura cometeu sacrilégio ao invadir o espaço litúrgico durante perseguição aos estudantes que ali buscaram refúgio. Vasos e paramentos sacros foram danificados pelos militares e alguns estudantes chegaram a ser reprimidos por cassetetes, provocando lesões corporais nos manifestantes. Ao tentar apaziguar o conflito, Frei Mário, superior da Fraternidade de São Sebastião, foi agredido por policiais dentro do templo e o estudante Jorge Vieira, ao escapar da perseguição, escondeu dentro do tanque de água, enquanto vasculhavam a igreja.
O Conselho Presbiteral da Arquidiocese de Manaus protestou e condenou a ação repressiva como sacrilégio. Em sinal de reparação, o templo permaneceu fechado até o retorno do arcebispo que se encontrava em Brasília. Publicaram nota nos jornais comunicando de modo oficial as atitudes sacrílegas promovidas pela repressão, posicionando contra a violência praticada pela polícia contra pessoas indefesas. Outros setores religiosos também expressaram suas denúncias. Na ocasião da festa de Dom Bosco, considerado padroeiro dos jovens, integrantes da Paróquia de São José lançaram seu manifesto em prol dos estudantes espancados durante o ato repressivo, denunciando as medidas truculentas e antipedagógicas tomadas pela polícia militar durante o confronto.
O bispo da Prelazia de Itacoatiara (AM), Dom Jorge Marskell, repudiou a ação através de nota enviada ao Conselho Presbiteral, transmitindo sua solidariedade às vítimas indefesas do autoritarismo e a falta de respeito aos direitos fundamentais. O canadense “mano Jorge”, conforme descreve a escritora Sylvia Ribeiro, tinha grande preocupação com os mais pobres e enxergava o povo como sua família. O missionário Scarboro desfrutava de carinho existencial para com cada pessoa, expressa em suas viagens pastorais pelos rios do Amazonas, como guia e condutor das embarcações e das almas. Ordenado bispo no território de sua prelazia, recebeu das mãos do ordenante, Dom João de Lima, o báculo de carnaúba, anel episcopal feito de tucumã e a estola confeccionada de juta, promovendo a inculturação com o seu povo. Homem atento ao seu tempo, inspirado em Paulo VI, conclamava os fiéis a comprometer-se com a “boa política” capaz de zelar pelos interesses dos populares.
Talvez, da Amazônia Paraense, vieram as críticas mais duras e diretas à ditadura a partir do enfrentamento do dominicano Dom Alano Maria Pena. Em 1980, ao presidir missa em intenção aos mortos e desaparecidos da Guerrilha do Araguaia na Catedral da Prelazia de Marabá (PA), fez memória dos jovens que deixaram suas cidades para aderir à guerrilha, além dos camponeses e lavradores mortos pelas Forças Armadas que nada tinham a ver com o conflito. Imbuído de misericórdia, também pediu oração aos soldados falecidos, pois, os mesmos apenas cumpriam ordens das autoridades. Também confrontou diretamente os agentes infiltrados durante a celebração, ao dirigir a palavra, avisou que podiam ligar seus gravadores e microfones para informar as autoridades, que não temia ser preso pela repressão, pois, estava no espaço de liberdade - “a casa do Senhor” - e ali ninguém o tocaria. O documento foi enviado ao Comandante Militar da Amazônia, general Leônidas Pires, reafirmando a narrativa das contrainformações, acusando o clero de ligações com a esquerda radical.
Nesta Páscoa, somos convidados a olhar sessenta anos atrás a Páscoa celebrada pela Igreja em 1964 e refletir sobre a passagem feita durante essas seis décadas. Não podemos reduzir as experiências narradas aqui como vidas pautadas apenas no fazer, nem analisá-las como “ativismos exagerados”, mas, de rostos proféticos impelidos pelo anúncio e denúncia na vida cotidiana. Trata-se do tempo de ação em que o serviço e a comunhão incentivaram o despertar e o agir em suas comunidades para além das fronteiras existenciais e humanas. Portanto, refletir sobre esses lugares de sofrimento e esperança presentes nestas realidades escondidas, nos ajudam a ter esperança nos interditos das experiências destes pastores desconhecidos, mais do que isso, para que as futuras páscoas sejam passagens de vida e liberdade.