27 Março 2024
"Para legitimar o golpe, eles mataram, prenderam, estupraram, torturaram, exilaram (e a lista poderia ser ainda mais estendida), deixando um rastro de miséria, de subnutridos e de analfabetos, de abandonados, e uma dívida externa para ser paga com o trabalho e com o suor da classe trabalhadora, além de uma inflação que beirava os 80% ao mês. Esse foi o resultado, o legado final desse famigerado golpe civil-militar e empresarial que teve como seu último presidente, João Batista Figueiredo, saindo pela porta dos fundos, afirmando para a grande imprensa preferir o cheiro de cavalos ao cheiro de povo", escreve Jaci Guilherme Vieira, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Mesmo que o atual governo Lula, em seu mandato de 2023-2026 mande os seus ministros se calarem diante de mais um aniversário do golpe militar-civil e empresarial que completa 60 anos, ele não vai conseguir seu intento. Mais uma vez esse governo, como tantos outros que se passaram, não vai punir os militares golpistas, que iniciaram a sua carreira de conspiradores na Proclamação da República em 1889. Naquele período unindo-se aos civis do Partido Republicano, fundado em 1870, dão o primeiro golpe militar para derrubar o Império. Daí para frente houve uma sequência de outros golpes militares, como: 1930, 1945 e finalmente o de 1964.
Diferente dos outros golpes, o de 1964, que colocou os militares no poder, não foi um movimento conspiratório apenas, mas, ao contrário disto, uma campanha bem elaborada do ponto de vista ideológico, político e militar, organizada através de grupos multinacionais e associados dentro do complexo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) (Dreifuss, 1981).
Completando essa ideia, poderíamos acrescentar que, além dessas instituições, participaram da derrubada da democracia no Brasil, em 1964, a Escola Superior de Guerra (ESG), o Estado Norte Americano, a Igreja Católica, a mídia e a classe média, que depois, arrependidas, viram seus filhos morrerem torturados. Esta campanha teve o seu auge em abril de 1964 com uma ação militar para derrubar o governo de João Goulart e conter, daí para frente, a participação dos movimentos sociais tanto do campo como da cidade. Vivia-se a expectativa de termos, finalmente, uma reforma agrária, mas, para uma burguesia tão atrasada como a nossa, seria inadmissível aceitar até mesmo que Jango ousasse fazer uma reforma agrária em terras públicas controladas pelo Estado. E foi o que ocorreu. Jango anuncia a reforma agrária no dia 15 de março de 1964, no comício da Central do Brasil, e não chega ao final do mês como chefe de Estado.
Uma das melhores descrições do sentido do golpe está contida nas palavras de Herbert de Souza, o Betinho: “num primeiro momento, o golpe paralisou para, em seguida, desarticular as forças embaladas na mobilização social por um país novo, diferente, mais justo e mais livre. Era um processo que seguramente levaria o Brasil para o caminho das reformas. Não estávamos a caminho da revolução, mas da libertação. Mas aqueles setores extremamente atrasados, temendo que isto se transformasse na revolução, resolveram se unir para matar a criança ainda no útero. Foi o primeiro golpe absolutamente preventivo contra a liberalização e a democratização da sociedade brasileira” (Barros, 1991, p. 18).
Todos sofremos ainda hoje com o golpe civil-militar implantado em 1964. Não foi um período apenas de retirada de direitos, do fim da democracia, mas foi o período de muita, muita repressão e intervenção em todos os setores da sociedade brasileira. Nos sindicatos, nas universidades, na imprensa. Repressão sobre todos aqueles que não estavam alinhados com o novo projeto de governo, baseado na Doutrina de Segurança Nacional (Desenvolvimento e Segurança).
Em nome dessa doutrina, para legitimar o golpe, eles mataram, prenderam, estupraram, torturaram, exilaram (e a lista poderia ser ainda mais estendida), deixando um rastro de miséria, de subnutridos e de analfabetos, de abandonados, e uma dívida externa para ser paga com o trabalho e com o suor da classe trabalhadora, além de uma inflação que beirava os 80% ao mês. Esse foi o resultado, o legado final desse famigerado golpe civil-militar e empresarial que teve como seu último presidente, João Batista Figueiredo, saindo pela porta dos fundos, afirmando para a grande imprensa preferir o cheiro de cavalos ao cheiro de povo.
Entre os grupos afetados naqueles “anos de chumbo”, os indígenas estão entre os que mais sofreram. Os Waimiri-Atroari quase desapareceram por causa da construção da hidrelétrica de Balbina, da estrada BR-147 e da mineração, que ainda hoje rasgam seu território ancestral. Os Cinta-Larga, de Rondônia e Mato Grosso, ficaram conhecidos pelos brasileiros por causa do “Massacre do Paralelo 11”, em 1960, quando 3.500 indígenas foram mortos por pistoleiros a mando de empresários e acobertados por servidores do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), o órgão indigenista que devia protege-los; os Gavião, do rio Tocantins, tiveram que sair de sua área por causa da hidrelétrica de Tucuruí, que fez desaparecer suas terras tradicionais. Isso só para citar três casos. O prognóstico sobre os indígenas era de sua extinção, mas eles resistiram, se reorganizaram. Hoje estão vivos e lutando pelas suas terras. Há muitos exemplos de resistência, desde os indígenas que continuam em suas áreas.
Mas isso não é tudo. Nesse pequeno artigo, gostaríamos ainda de lembrar que muitos sofreram, estudantes, sindicalistas e até mesmo os militares legalistas que tiveram suas carreiras interrompidas entre outros. Principalmente, aqueles que ainda necessitam ter a sua história contada, possuindo pouquíssimos registros, são os povos indígenas.
Tais fatos já eram de conhecimento público há anos, mas — em função de uma nova documentação conhecida com a Comissão Nacional da Verdade, criada pela presidente Dilma Rousseff, em 2012 — essas questões ressurgem, devem e podem ser rediscutidas. Esse foi o sentido do golpe: atender aos grandes interesses econômicos do capital, seja na Amazônia ou fora dela, não se importando com o que estivesse à sua frente.
BORGES FILHO, Nilson. O Estado e Militarização: as políticas militares como aparelhos repressivos de Estado. Florianópolis: 1989. Tese de Doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina
DREIFUSS, René Armond. 1964 A conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.
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Povo brasileiro não pode apagar da memória o golpe militar-civil e empresarial de 31 de março 1964. Artigo de Jaci Vieira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU