06 Setembro 2022
"Esperamos que a nomeação de Dom Steiner permaneça e faça sentido no coração da Amazônia, conferindo visibilidade às experiências históricas dos que não tiveram o mesmo reconhecimento, para que outros no futuro também venham da Amazônia para irradiar o coração da Igreja", escreve Leonardo Bentes Rodrigues, Mestre em História Social e Especialista em Historiografia e Ensino de História pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
O anúncio de que a região amazônica foi agraciada pelo Papa Francisco com sua primeira sede cardinalícia na pessoa de Dom Leonardo Steiner, que hoje é Arcebispo de Manaus, volveu novamente os olhares para a cidade que, recentemente, tomou os espaços dos noticiários nacional e internacional durante as tristes ondas da pandemia de Covid-19. O olhar afetuoso pela Amazônia, expresso de modo singular para a cidade de Manaus pelo pontífice, pode ser corroborado pela força histórica da Igreja nessa “cidade doce e dura em excesso”, como nas palavras do geógrafo José Aldemir de Oliveira.
Aliás, a presença de uma igreja em saída, à primeira visada, em Manaus pode ter seu marco datado a partir do Congresso Eucarístico Nacional ocorrido na cidade em 1975, muito antes do pontificado de Francisco, e durante os anos pós-conciliares do papado de Paulo VI. Este, em mensagem direcionada aos participantes do congresso, chamou a cidade de “coração da Amazônia” e encorajou-os a repartir o pão num Brasil ainda “à margem do comum bem-estar, da solidariedade fraterna e do amor”. O contexto era marcado pelos “anos de chumbo” do governo Médici, em plena ditadura militar, traduzido no profundo adensamento do aparelho repressor em meio ao contraditório “milagre econômico” sustentado pelos militares, cujo cenário parecia despontar para o progresso técnico, mas não mirava no progresso social.
Logo, o Serviço Nacional de Informações (SNI) não tardou em monitorar o evento e seus participantes, uma verdadeira rede de espionagem foi reforçada a partir da cooperação entre a Agência Manaus (SNI) e do Centro de Operações de Defesa Interna do Comando Militar da Amazônia (CODI – CMA), além da vigilância da entrada de peregrinos no aeroporto e porto de Manaus. Os agentes justificaram suas ações visando o controle político dos participantes considerados “subversivos”, ressaltaram que não estavam preocupados com as atividades religiosas, mas com as “atividades paralelas” realizadas por supostos integrantes do que denominaram de “esquerda clerical”.
Algumas operações seguiram na intenção de intimidar alguns religiosos, como a que enviou livros, panfletos e cartas às residências onde os arcebispos e bispos ficaram hospedados e cujo conteúdo condenava a suposta “infiltração comunista” dentro da Igreja. Jornais noticiaram que enquanto os fiéis participavam das celebrações no estádio Vivaldo Lima, foram distribuídos envelopes com panfletos mimeografados de cunho reacionário nas residências da cidade. De imediato, Pe. Caetano Maiello (PIME), na ocasião secretário do Congresso, acusou os membros da Tradição Família e Propriedade (TFP) de organizarem tal iniciativa. Em consequência, na tentativa de desmoralizar o missionário, o SNI acusou-o de “manter estreitas e notórias ligações” com amantes e promover a “subversão” através de seus artigos no jornal A Voz Católica em Macapá.
Naquela circunstância, a realização do congresso em Manaus atendeu à determinação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para que fosse celebrada e refletida a contribuição da Igreja, com o intuito de que integração da Amazônia à comunidade nacional procedesse à luz de princípios humanos e cristãos, em contraposição ao projeto proposto pelos militares, cujo desenvolvimento e progresso estavam causando desequilíbrios profundos e irreparáveis não só na vida da região, como em todo o país.
Entre os documentos cooptados pela comunidade de informações, encontrava-se o levantamento elaborado pelo setor de Promoção Humana da Arquidiocese de Manaus sobre a realidade das regiões mais necessitadas da cidade. A sondagem da problemática foi apresentada e refletida durante o congresso. Entre as perguntas direcionadas aos populares dos bairros periféricos estava “a quem repartir o pão?”, em virtude do tema do congresso. O documento foi enfático ao afirmar que no centro da Amazônia faltava dinheiro nas casas, pois, os que trabalhavam ganhavam pouco para cobrir as despesas e, o mais cruel, afirmavam que passavam fome em suas casas e, somando a isto, o desejo em aprender a ler e escrever. Também desvelou a realidade “nua e crua” do contexto social do “milagre econômico”, evidenciando que não bastava repartir o pão nas igrejas, era necessário ir ao encontro dos famintos.
Posteriormente, a Arquidiocese de Manaus, governada por Dom Milton Côrrea Pereira, saiu de seus templos incentivada por seu pastor para encontrar a face dura de sua cidade. Distinto de seu antecessor, alinhado à ditadura, Dom Milton passou a encarar a dureza do cotidiano de seu rebanho em atitudes proféticas. As “caminhadas missionárias” por ele conduzidas incomodaram a comunidade de informações justamente por alertar o povo manauara sobre a importância da participação de se viver em uma comunhão verdadeira e de se buscar justiça social. Desde 1976, as caminhadas missionárias agregavam a presença intensa dos jovens e o aumento contínuo da participação dos fiéis, causando receio nos órgãos de segurança devido ao suposto “radicalismo” das escolhas do tema.
Durante a caminhada de 1979, ao lado dos padres jesuítas Albano Ternus e Renato Barth além de outros clérigos, Dom Milton manifestou-se contra as arbitrariedades da ditadura, criticou a realidade socioeconômica da América Latina, reivindicou por melhores salários para os professores e principalmente, contra o extermínio dos povos indígenas. Na presença de fiéis, em sua grande parte jovens, membros da Pastoral da Terra, Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e do Movimento de Defesa do Meio Ambiente, expressou que a Igreja estava atenta à realidade daquelas circunstâncias e que não poderia pactuar com o processo de extermínio dos indígenas, pois afirmou que a Amazônia vivia um momento histórico e que era preciso estar consciente da missão que os esperavam.
No mesmo ano, o CIMI denunciou a prisão arbitrária dos padres jesuítas Albano Ternus e Renato Barth, detidos por se engajarem na luta por moradia na ocupação do Capim-Santo em Manaus. Em nota, a entidade afirmou que as forças repressoras juntamente com a grilagem de terras e a desenfreada especulação imobiliária agiram para calar a Igreja do Amazonas, que seguindo a Conferência de Puebla, estava cada vez mais “optando preferencialmente pelos pobres”.
Para o SNI, o afastamento definitivo do então arcebispo, Dom João de Souza Lima e a consequente nomeação de Dom Milton para o mais alto posto da arquidiocese, teria radicalizado o movimento contestatório da Igreja local contra a ditadura. Sua postura em defesa dos pobres e oprimidos foi lida como “intransigente e radical”, motivo pelo qual o órgão justificou os atritos frequentes entre Igreja e o Estado.
As ações proféticas de Dom Milton remontam ao papel dos bispos nos séculos V e VII no ocidente cristão, quando era a principal autoridade urbana no medievo, concentrando poderes religiosos e políticos. Conforme afirma o historiador Jérôme Baschet, o bispo era juiz e conciliador, além de “pai” e protetor de sua cidade. Eram tempos conturbados, de profunda instabilidade política na Europa, marcada pelo declínio do Império Romano do Ocidente, onde a ausência de uma hierarquia civil tornou os bispos figuras centrais das cidades. Porém, ao contrário dos tempos medievais de outrora, quando seu poder era assegurado pelas famílias aristocratas, os bispos da contemporaneidade despontaram pela escolha preferencial pelos pobres em tempos também conturbados, mas sem perder a sua função de “pais” e protetores de suas cidades.
Quando a repressão da ditadura profanou a Igreja de São Sebastião em 1981, pediu punição aos policiais e seus dirigentes por invadirem o templo durante a investida contra os estudantes que procuraram refúgio da ação truculenta. Tiros foram disparados contra os manifestantes, danificando vasos e paramentos sacros, outros foram reprimidos a cassetetes que provocaram lesões nos braços e costas. Ao tentar apaziguar o conflito, um frei também foi agredido enquanto os policiais vasculhavam o templo. O Conselho Presbiteral da Arquidiocese de Manaus publicou nota em defesa dos estudantes nos jornais, denunciando os atos de violência das forças de repressão da ditadura e considerando suas ações truculentas como sacrilégio.
Durante o processo de “abertura” manietada pelos militares, a cidade de Manaus presenciou o recrudescimento do autoritarismo contra os opositores da ditadura. Em setembro de 1983, verdadeiros atos contínuos de arbitrariedade se espalharam pela cidade por dias. Trata-se do episódio conhecido como “Batalha da Matriz”, quando os estudantes contrários ao reajuste da tarifa de ônibus, confrontaram os agentes repressores do regime nas ruas. Na tentativa de procurar um consenso entre as partes, uma comissão foi formada por solicitação dos líderes estudantis, composta por Octávio Mourão (reitor da Universidade do Amazonas), Carlos Fausto (presidente da OAB-AM), deputado Mário Frota e finalmente, por Dom Milton Pereira. Novamente, lá estava o bispo na tentativa de promover o diálogo por justiça, exercendo sua missão como protetor da cidade. Na ocasião de seu falecimento em 1984, os estudantes ressaltaram sua postura democrática e religiosa frente aos episódios envolvendo os estudantes, interferindo nos momentos mais tumultuosos, demonstrando solidariedade e humanidade.
Esses episódios clareiam a importância da Igreja em Manaus, revisitando o quão sua trajetória profética nos fornece justos motivos para receber de bom grado o gesto de carinho e reconhecimento do Papa Francisco. Na verdade, não se trata de ressaltar o caráter nobiliárquico da nomeação cardinalícia, mas de ressignificar em direção ao sentido de pai e protetor de uma cidade que sempre foi posta à margem da história. Queremos crer também de que não se trata apenas de laurear os feitos de Dom Steiner, como se sua nomeação fosse conferida em razão de suas atuações na CNBB, e que por vir do centro, venha à margem, deslocando para si o sentido de uma intensa ação profética de seus predecessores que imprimiram no rosto de seu rebanho a igreja em saída. Afinal, esperamos que sua nomeação permaneça e faça sentido no coração da Amazônia, conferindo visibilidade às experiências históricas dos que não tiveram o mesmo reconhecimento, para que outros no futuro também venham da Amazônia para irradiar o coração da Igreja.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O cardeal de Manaus no coração da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU