Em memória de Dom Ivo, nos 16 anos de sua partida

Dom José Ivo Lorscheiter. Foto: Arquidiocese de Santa Maria

07 Março 2023

Passada década e meia da partida do profeta da solidariedade, seu legado precisa ser defendido e compartilhado. 

A reportagem é de Marcos Corbari, do Instituto Cultural Padre Josimo, enviada pelo autor para o Instituo Humanitas Unisinos - IHU.

No dia 5 de março de 2007 o bispo católico Dom José Ivo Lorscheiter encerrou sua caminhada terrena. Estava na sua Santa Maria, território onde exerceu o ofício de pastoreio junto a uma comunidade repleta de contradições. Na Santa Maria exaltada pelos grandes era preciso que uma voz se erguesse em chamado aos pequenos, onde os poderosos imperavam era preciso que alguém empoderasse os humildes. Com maestria Dom Ivo cumpriu essa missão ao longo dos 30 anos em que esteve à frente da Diocese, deixando marcas indeléveis na região, nas pessoas e na história.

Nascido em São José do Hortêncio,RS, Dom Ivo Lorscheiter veio de uma família simples e religiosa, tendo vários familiares religiosos, dentre os quais seu primo Dom Aloísio Cardeal Lorscheider. Foi o último bispo brasileiro nomeado pelo papa Paulo VI no decorrer do Concílio Vaticano II, em 1965. Foi Secretário-Geral e depois Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) durante o período mais obscuro do Regime Militar Brasileiro, entre 1971 e meados da década de 1980. Defensor dos direitos humanos, abrigou os adeptos da Teologia da Libertação frente as ameaças da ditadura.

Fazendo memória de Dom Ivo Lorscheiter, o Brasil de Fato convidou três personalidades presentes em sua vida para comentar a importância de sua história e o legado que permanece como fator de construção para os mais simples e de incômodo para aqueles e aquelas que baseiam sua atuação na exploração dos menores:

Sérgio Görgen: o jovem frade que através de Dom Ivo denunciou a barbárie do estado autoritário e ajudou a evitar o derramamento de sangue de camponeses

Dom Ivo assumiu o Concílio Vaticano II em seu cerne e isso ajudou a fazer uma renovação muito profunda na igreja católica e no seu compromisso com o povo”, afirma Frei Sérgio. “Ele contribuiu para que a opção pelos pobres e a teologia da libertação fossem efetivas para ajudar o povo a mudar a política brasileira e as suas condições de vida, enfim foi um gigante na transformação que a Igreja passou no final do século XX”.

Frei Sérgio lembra de dias difíceis no ano de 1980, quando em seus primeiros tempos de frade acompanhou os camponeses e camponesas sem-terra estavam acampados no território que ficaria conhecido como “Encruzilhada Natalino” (Ronda Alta, RS), sitiados por um batalhão do exército. No comando das tropas Coronel Curió, oficial conhecido pela crueldade com que tratava os “inimigos”. Frei Sérgio acompanhou lideranças do setor agrário em visita humanitária aos acampados. Levado até o bispo para relatar o que viu, viu Dom Ivo postar-se diante dos microfones e câmeras da imprensa nacional e internacional e denunciar que o que Curió e seus comandados estavam implementando: “O nome do que está acontecendo na Encruzilhada Natalino é campo de concentração”, disse Dom Ivo à época. “Isso ajudou a implodir o Regime Militar, Dom Ivo enfrentou a ditadura na defesa dos agricultores sem-terra.”

Görgen relembra de Lorscheiter como um homem cauteloso na maior parte do tempo, mas que não receava tomar posição quando a realidade exigia profetismo: “Um homem severo, mas extremamente humano, de coração aberto e muito sensível aos sofrimentos do povo”. Questionado se o legado permanece, Frei Sérgio é afirmativo: “Para os católicos Dom Ivo representa ainda hoje uma palavra profética, que se levanta para não permitir que movimentos que desejam fazer a Igreja regredir ao conservadorismo anterior ao Vaticano II prosperem. Já para a sociedade em geral, seu protagonismo na luta pelos pobres, pela cidadania dos pequenos e pela ordem democrática representa algo muito atual, certamente se ainda estivesse vivo estaria caminhando conosco na linha de frente em defesa do protagonismo do povo e da democracia brasileira frente os ataques do golpismo que se ergueu nos últimos anos”.

Lourdes Dill: a pequena gigante, que aprendeu com Dom Ivo que a força da radicalidade do Evangelho sempre será maior que a força aparente das mãos dos poderosos

Ninguém foi tão próxima de Dom Ivo quanto Irmã Lourdes. Dividiram sonhos e utopias sob o abrigo da bandeira da economia solidária por duas décadas. O profetismo de Lorscheiter ao abraçar o desafio de um novo mundo possível e uma nova economia necessária (elementos que guiam ainda hoje o Fórum Social Mundial) teve continuidade através dos atos da religiosa que integra a congregação Filhas do Amor Divino e segue semeando os ensinamentos do bispo que ficou conhecido como Gigante da Esperança.

Dom Ivo cativava as pessoas pelo viés da Esperança, mas não a esperança pacífica, mas a esperança do verbo Esperançar, como ensinou Paulo Freire”, explica Irmã Lourdes, que sob a liderança do bispo caminhou de braços dados com os segmentos tradicionalmente excluídos da conservadora Santa Maria e arredores, mantendo acesa a chama do protagonismo dos mais simples. “Na sua evangelização, no seu jeito de ser pastor, no seu jeito de ser orientador nessas grandes causas sociais ele influenciou muito a minha maneira de ser e de assumir a vida religiosa e cristã, no ser, no fazer e no interagir com as pessoas de forma comprometida”, assinala a religiosa que mesmo tendo sida mandada para longe dos projetos que ajudou a gestar junto com Dom Ivo em Santa Maria, segue sendo uma voz atuante na preservação da sua memória e do seu legado.

“Trabalhamos juntos de modo especial na parte social da Diocese de Santa Maria, na Cáritas, no Projeto Esperança/Cooesperança, na Feicoop, no Feirão Colonial, junto com a agricultura familiar, os grupos da economia solidária, os movimentos da agroecologia, do cooperativismo”, relembra Dill, citando ainda as relações de proximidade que foram construídas com diferentes classes sociais, como agricultores familiares, sem-terra, artesãos, catadores, quilombolas, povos indígenas, entre outros.

“O legado profético que Dom Ivo deixou para a humanidade é construído por esperança, coragem e luta. É um legado que será sempre atual e não pode ser apagado por ninguém. Permanece vivo em nossa jornada, em nossas ações, em nossas lutas”, afirma a religiosa. “Passamos hoje por muitos desafios, precisamos de muitos profetas, que, como Dom Ivo tenham a coragem e a ousadia de construir junto com o povo projetos estruturantes para a cooperação, para o desenvolvimento e para a solidariedade”, completa.

Antônio Gringo: compartilhar os sonhos, compartilhar os ideais, compartilhar as lutas... compartilhar até o mesmo guarda-chuva!

Porque em meio a tantas palavras nobres, a citação a um guarda-chuvas? O item é inesquecível para Antonio Dellagerise, mais conhecido pelo nome artístico de Antonio Gringo. Ele e sua esposa e parceira de vida e canto, Regina Wirtti, conviveram de forma muito próxima com Dom Ivo, dividindo momentos de fé, luta e arte. Entre tantos momentos inesquecíveis, a abertura da Feicoop (Feira Internacional do Cooperativismo e Economia Solidária):

“Estávamos aqui, Dom Ivo, Irmã Lourdes, eu e a chuva forte que havia nos surpreendido”, relembra com ares de anedota que já ficou famosa entre os participantes da feira: “Apesar da chuva, era preciso cantar, e assim o fizemos, com o bispo segurando o guarda-chuva e eu pedindo a ele que cuidasse de proteger o violão, sem se importar tanto com o cantor”, relata como exemplo da humildade militante empreendida pelo religioso ao longo de sua jornada.

Dom Ivo nos deixou, mas ficou o seu legado do esperançar”, afirma emocionado o cantor. Dirigindo-se a memória do religioso, reafirma o compromisso firmado quando ele ainda se encontrava em vida: “Nós ficamos aqui na luta, junto com todos e todas que fizeram parte da sua preocupação com a vida e com o social, receba onde estiver o nosso aplauso, o nosso carinho e o nosso compromisso de lutar sempre”.

“Vai e envolva o mundo na esperança!” repete Antônio Gringo, relembrando o chamado que Lorscheiter deixou como uma espécie de testamento espiritual e chamamento permanente de luta. A frase, conforme relatado também por Lourdes Dill, teria sido uma das últimas pronunciadas pelo religioso antes da sua passagem.

Onde está Dom Ivo hoje?

Neste dia 5 de março de 2023, fazendo memória aos 16 anos da morte de Dom Ivo, porém muito mais que isso evocando a atualidade do seu legado, muita gente pequena, em lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, está transformando o mundo.*

Do município de Estrela (RS), no território do Cafundó, Antonio Gringo faz o chamado: “Dom Ivo! Presente!”.

Frei Sérgio, entre os assentados da reforma agrária, em Hulha Negra (RS) responde: “Presente!”.

Lá em Barra do Corda (MA), Irmã Lourdes responde: “Presente!”.

Nas ruas de Santa Maria, os amigos catadores com saudade do seu Bispo respondem: “Presente!”.

Nos roçados da Agroecologia os camponeses e camponesas respondem: “Presente!”.

Nos territórios quilombolas, homens e mulheres repletos de coragem e esperança, respondem “Presente!”.

Os povos indígenas - de dentro dos territórios demarcados e também nas margens das rodovias os excluídos – respondem: “Presente!”.

Nos espaços periféricos os jovens que insistem em lutar alegremente respondem: “Presente!”.

Os artistas, os artesãos, os cantadores do povo, os poetas, repentistas, trovadores, as crianças em sua santidade, os lutadores do povo em sua coragem, todos em voz forte e firme respondem: “Dom Ivo! Presente! Presente! Presente!”

Nota

*Paráfrase livremente inspirada no provérbio Africano que Dom Ivo apreciava e Irmã Lourdes segue repetindo por onde quer que passe.

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