O mundo está aí, com suas luzes e sombras, com seus desafios individuais e comunitários. O mundo está aí com sua beleza e fulgor, mas também com as suas contradições e obscuridades. Temos o mundo das diferentes e ricas manifestações religiosas e culturais, da solidariedade e da generosidade, mas também o mundo homogêneo de determinado modelo econômico e geopolítico que mata. Nele respiramos, mas também podemos nos asfixiar. A vida renasce a cada dia e enfrenta as forças da morte.
No mundo de cada um de nós e no mundo de todos nós, sem uma bússola, a vida perde a sua direção. E sem uma direção, nada faz sentido, tudo se torna banal, descartável, mutável, líquido.
Como, então, encontrar essa direção para a vida? Como descobrir o sentido mais profundo de nossa existência? Com tantas distrações, conexões rápidas e superficiais, como buscar o essencial? Como, apesar das tempestades da vida, alegrar-se com as palavras de Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10)? Na espiritualidade inaciana, há uma bússola: o exercício do discernimento.
Nessa direção, na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, o Papa Francisco nos diz: “Hoje em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas pelo mundo como se fossem todas válidas e boas” (n. 167).
Para o Papa, “o discernimento orante exige partir da predisposição para escutar: o Senhor, os outros, a própria realidade que não cessa de nos interpelar de novas maneiras. Somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus esquemas” (n. 172).
Assim, a celebração do Ano Inaciano, que se iniciou em 20 de maio, data em que se faz memória dos 500 anos do ferimento de Inácio de Loyola na batalha de Pamplona, em 1521, e que se encerrará em 31 de julho de 2022, com sua festa litúrgica, é um chamado ao discernimento e à conversão diária.
Um chamado a que não nos instalemos, não nos acomodemos em nossas certezas e vãs ilusões, mas, como Inácio, o Peregrino, sigamos nas estradas da vida, pedindo a Deus a graça do discernimento, vendo “novas todas as coisas em Cristo”.
Para aprofundarmos em que consiste essa dinâmica do discernimento, no último dia 03 de julho, o Cepat promoveu um momento de reflexão intitulado O discernimento em Inácio de Loyola, tendo como convidado especial Roberto Jaramillo, padre jesuíta colombiano, atual presidente da Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina – CPAL.
Roberto Jaramillo, SJ, da CPAL no momento de reflexão "O discernimento em Inácio de Loyola"
A atividade contou com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, as Comunidades de Vida Cristã – CVX, Regional Sul, o Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB, a Iniciativa das Religiões Unidas – URI e o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.
O padre Roberto Jaramillo começou destacando que o discernimento é uma graça concedida por Deus. Contudo, também “corresponde a uma atitude, a uma intencionalidade, a uma procura consciente e permanente” da pessoa. Inácio de Loyola é alguém inquieto, sedento, apaixonado, que não fica parado, “nem antes, nem depois de sua conversão”, destacou.
Nesse sentido, nas palavras de Jaramillo, ‘discernir se aprende discernindo’, ou seja, é um exercício. O crescimento em todas as dimensões da vida exige esse propósito, essa perseverança em buscar o bem maior. “Não há manuais ou textos que substituam o esforço (ensaio/erro) da prática do discernimento”, ou seja, não é tanto uma questão de se especializar sobre o que é o discernimento, mas de colocá-lo em prática, pois absolutamente nada substitui a tarefa de discernir.
Para Jaramillo, por ser uma graça, qualquer pessoa que abra a sua mente e coração a Deus pode receber o dom do discernimento. Não se trata de algo para especialistas, sábios, doutores, mas de uma dinâmica de comunicação de Deus com todos os que buscam o bem, o que faz lembrar as palavras de Jesus: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25).
A partir desse ponto, Jaramillo esclareceu que sua partilha se concentraria nas pistas deixadas por Inácio de Loyola para a prática do discernimento, deixando, propositadamente, as abordagens históricas para um outro momento. Para isso, sabiamente, utilizou histórias e metáforas para trazer aos dias de hoje o que é o discernimento.
“Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio são os instrumentos mais úteis para quem quer aprender a discernir”, ressaltou Jaramillo. Para ilustrar a importância de perseverar no exercício daquilo que se busca, contou a história de certo grupo de estudantes de literatura que convidou Sinclair Lewis, um grande escritor norte-americano, para uma palestra. Durante sua exposição, o escritor perguntou quem deles gostaria de se tornar um bom escritor e vendo que todos levantaram as mãos, sentenciou: “Então, não vale a pena que eu fique aqui falando! Vão todos para casa e escrevam, escrevam e escrevam”. Em seguida, finalizou a palestra.
Com esse exemplo, Jaramillo reforçou a ideia da prática do discernimento, passando a partilhar um pouco da experiência vivida por Inácio de Loyola. Para isso, apontou que, em Inácio, “a pérola de todo o seu processo de crescimento interior está em um pequeno parágrafo dos Exercícios Espirituais” (32): “Pressuponho haver em mim três pensamentos, a saber: um que é propriamente meu, que sai da minha pura liberdade e querer; e outros dois que vêm de fora: um que vem do bom espírito e o outro do mau”.
Em nosso contexto, os três pensamentos citados por Inácio podem ser traduzidos por sentimentos. São dinâmicas interiores compostas pelos sentimentos próprios e os sentimentos que vêm de fora: as moções, provenientes do bom espírito, e as tentações, provocadas pelo mau espírito.
Roberto Jaramillo, SJ, da CPAL, Jonas Jorge da Silva, do CEPAT e Silvia Maria Trevisan Picheth, da CVX, no momento de reflexão "O discernimento em Inácio de Loyola"
Na comparação utilizada por Jaramillo, é como se fôssemos um campo de futebol, onde se jogam as direções e decisões de nossa vida no mundo dos sentimentos. O árbitro do jogo é a crítica racional, fundamental nesse exercício de discernimento e que não deve ser confundida com a racionalização. Sendo assim, “discernir é um exercício de experimentar, perceber, conhecer, entender, avaliar, decidir e agir”, para seguir em caminhada, assim como o peregrino Inácio de Loyola.
No processo de conhecimento dessa dinâmica interior, Inácio de Loyola demonstrou que é possível lidar com os sentimentos, reconhecê-los, diferenciar os que favorecem um crescimento espiritual daqueles que paralisam ou impedem o compromisso com os propósitos de Deus para a vida humana, no cultivo do bem.
Buscando apresentar a forma como se dá essa dinâmica, Jaramillo abordou algumas características desses sentimentos:
1. Sentimentos próprios: dependem da própria vontade e liberdade. Podem ser engrandecidos, guardados, esquecidos, revividos, comunicados, etc. Também são efêmeros e fugazes. “Cabe ao sujeito, no processo de amadurecimento e crescimento pessoal, geri-los”, constatou. Também lembrou que no âmbito coletivo, esses sentimentos são muito mais difíceis de serem discernidos;
2. Moções: não dependem da pessoa, vêm de fora, provocadas pelo bem. “Os sentimentos que vêm do Espírito Santo são perseverantes, teimosos, insistem, surgem mais de uma vez como um chamado, como um alerta, uma advertência repetida em momentos, circunstâncias e lugares diferentes e, tantas vezes, inesperados”, destacou.
3. Tentações: também não dependem da pessoa, vêm de fora, provocadas pelo mau espírito, produzindo desânimo, desavenças, divisões, autossuficiência, etc.
Como, então, a pessoa pode distinguir os sentimentos presentes em seu interior? A resposta está em prestar atenção no senso interno, no ouvido interno.
Com a imagem de uma senha de um cofre de segurança, que precisa de diversas combinações para se abrir, Jaramillo disse que “no caminho interior é necessário proceder de forma similar: combinando sinais, elementos, estratégias, insights, pistas, questões, modos de pesquisa, vozes que, inicialmente, parecem não ter relação entre elas”.
Na caminhada espiritual, utilizando a imagem de uma escada, Jaramillo disse que Santo Inácio nos apresenta dois modelos de pessoas. É possível dizer que há aqueles que estão em um caminho de subida, “que vão de bem a melhor”, como também os que estão em descida, “que vão de mal a pior”.
Enquanto o primeiro “está em uma dinâmica de desenvolvimento de sua humanidade e, portanto, da sua divindade: em generosidade, atenção, cuidado, serviço, gratidão, relações, expressão, expansividade, alteridade, transcendência de si, etc.”, o segundo “vai se aprofundando na raiva, na desunião, no desassossego, na violência, na suspeita, na divisão interna, no egoísmo, na desonestidade, na amargura, na confusão”.
Isso não significa que não haja quedas e oscilações na vida de quem está em um processo de subida, assim como também não quer dizer que aqueles que estão em processo de descida estejam irremediavelmente perdidos. Tratam-se de tendências gerais.
Esses modelos de pessoas representam cada um de nós que experimentamos sentimentos provocados pelo bom e o mau espírito. Diante dessa constatação, é preciso encontrar pistas para saber quais são os espíritos que nos movem (o Espírito Santo ou o espírito do mal), estando atentos à sua recorrência, intencionalidade, aparência e consequências.
O bom espírito produz consolação nas pessoas que estão em uma tendência de subida, falando ao seu coração. Ao contrário, naquelas que estão em descida, atua ‘remordendo a consciência’, falando à razão.
Já o mau espírito procura distrair, perturbar e desanimar os que estão em subida, “geralmente, com razões falaciosas, mentiras enganadoras, duvidosas, ensaiando diferentes formas de quebrar a sua resistência interior, a constância, a fidelidade”. Busca os pontos fracos da pessoa. Ao mesmo tempo, no movimento de descida, confirmam a pessoa ou a coletividade no caminho erroneamente empreendido, naturalizando, normalizando, racionalizando e justificando o mal.
Os sentimentos do Espírito do Bem são marcados pela austeridade e a discrição, com doçura, “como uma gota de água que cai numa esponja, sugere Santo Inácio”. No que diz respeito aos sentimentos que vêm do mal, busca a confusão, o escândalo e o terror daquelas pessoas que estão crescendo na vida espiritual, ao mesmo tempo em que naturaliza os afetos desordenados daquelas em descida, causando divisão e devassidão.
Segundo Jaramillo, “em geral, é possível dizer que: na consolação nos guia o bom espírito, na desolação nos guia e aconselha o mau espírito”. Mas é preciso muita lucidez, pois também pode acontecer de haver sinais trocados, para fins opostos, ou seja, tanto o bom como o mau espírito podem consolar ou desolar. Portanto, o processo deve ser de vigília, lucidez, discernimento.
Para saber se uma consolação ou desolação são provenientes do bom Espírito, é preciso prestar atenção se leva a um aumento da Fé, da Esperança e da Caridade. Ao contrário, o mau espírito só pode levar ao apego à riqueza (espiritual, material, etc.), autossuficiência e soberba.
Por fim, Jaramillo apresentou algumas recomendações táticas no processo de discernimento:
Igor Sulaiman Said Felicio Borck, do CEPAT, Roberto Jaramillo, SJ, da CPAL, Silvia Maria Trevisan Picheth, da CVX, e Jonas Jorge da Silva, do CEPAT, no momento de reflexão "O discernimento em Inácio de Loyola"
- Em tempo de desolação, nunca realizar mudanças, mas permanecer firme e perseverante no propósito e determinação em que se estava no dia anterior a tal desolação. O mesmo se pode dizer, por prudência, no tempo de extrema consolação;
- Cultivar a paciência na desolação, pensando na consolação que virá, caso houver perseverança no propósito de vencer tal adversidade;
- Saber que mesmo na desolação, Deus nos dá a graça suficiente para seguirmos fiéis na caminhada correta;
- Quem está consolado deve se preparar para o tempo da desolação, renovando suas forças, cultivando a humildade;
- Durante a desolação, é preciso insistir na oração, na meditação, na penitência, na generosidade, sair de si, perdoar, etc.;
- Ter consciência de que a tentação mede suas forças com a pessoa que busca com ânimo enfrentar os seus enganos;
- Não prescindir de contar com o acompanhamento de alguém com quem possa confidenciar suas fraquezas e tropeços [o papel do confessor] para quebrar o ciclo do mal lançado pelo mau espírito.
Jesus, nosso mestre, pedagogo da humildade e da liberdade, é o nosso companheiro de caminhada nas periferias geográficas e existenciais do mundo. Que o medo nos momentos mais sombrios ou exigentes de nossa peregrinação não nos paralise e que a Boa Notícia de Jesus nos traga a audácia necessária para um discernimento profundo e profícuo, rumo ao seu reino de justiça, reconciliação e paz.
Logo do Ano Inaciano.