04 Março 2024
"A terra prometida por Deus a Abraão no capítulo XII do Gênesis constitui um nó histórico, cultural e religioso para os três monoteísmos que se reportam à figura do patriarca", escreve Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, em artigo publicado por Domani, 03-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A terra prometida por Deus a Abraão no capítulo XII do Gênesis constitui um nó histórico, cultural e religioso para os três monoteísmos que se reportam à figura do patriarca: em primeiro lugar o Judaísmo e Cristianismo, desde as suas respectivas origens, depois o Islã; terra também por essa razão no centro de guerras durante quase trinta séculos. Mas os dois monoteísmos mais antigos são aqueles que por menos tempo – e com menor continuidade - tiveram poder sobre a região, muitas vezes submetida a invasores pagãos, desde os babilônios até as dinastias helenísticas, até os romanos.
Na verdade, foram breves os períodos de independência judaica e, meio milênio depois, do predomínio cristão após a virada constantiniana. A invasão árabe pôs fim a três séculos de presença bizantina em 638. Desde então tem prevalecido – embora interrompida entre 1099 e 1187 pelas Cruzadas e pelo reino latino de Jerusalém, depois marcada por conflitos internos – a dominação muçulmana, até à derrota do Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial.
No entanto, um cenário inesperado havia se aberto há mais de meio século. Em 1862 havia sido publicado o livro Roma e Jerusalém, no qual o filósofo Moses Hess delineava os primeiros traços de um movimento de renascimento político do judaísmo. Então, depois dos grandes pogroms de 1881, houve várias iniciativas judaicas na Rússia, Romênia, Palestina. Eram os primórdios do “sionismo”, um neologismo que em 1890 foi cunhado a partir de Sion, nome da colina de Jerusalém que na Bíblia indica a cidade inteira.
Em 1897, em Basileia, realizou-se o primeiro congresso sionista por iniciativa do jornalista Theodor Herzl que já havia lançado a ideia de um Estado judaico. Em seu diário ele escreve que o fundou naqueles dias, acrescentando que “talvez daqui a cinco anos, e certamente cinquenta, todos o conhecerão”.
Herzl morreu já em 1904, mas a sua previsão concretizou-se, e com apenas um ano de atraso: em 1948, quando - depois do Holocausto - no final do mandato britânico na Palestina foi proclamado o Estado de Israel.
Revelam-se decisivos para as estruturas de todo o Oriente Médio a derrota e a consequente dissolução do Império Otomano. Sobre seus restos mortais medem-se e enfrentam-se as ambições tanto da Rússia czarista como da França e do Reino Unido. Os árabes também são hostis ao domínio otomano que em 30 de agosto de 1915 obtêm o apoio do Alto Comissário Britânico no Egito, embora genérico, às suas reivindicações de independência, e mobilizam-se contra os turcos, que eram apoiados pelos alemães.
Os franceses e os britânicos chegam a desenhar com os acordos entre François Georges-Picot e Mark Sykes as respectivas zonas de influência na região. Mas os árabes recebem uma ducha fria em 1917.
Escrevendo em 2 de novembro a Lionel Rothschild – o primeiro judeu a entrar na Câmara dos Lordes – o Ministro do Exterior britânico, Arthur Balfour, declara que “o Governo de Sua Majestade vê com favor da criação de um lar (home) nacional para o povo judeu na Palestina". Onde o termo home é o mesmo usado pelo congresso de Basileia para descrever o objetivo principal do sionismo.
Um mês depois, em 9 de dezembro de 1917, o General Edmund Allenby entra em Jerusalém, abandonada às pressas pela guarnição turca e alemã. Com o alto oficial britânico estão o Major Thomas Lawrence – o arqueólogo à frente da revolta árabe interpretado por Peter O'Toole no filme Lawrence da Arábia – e Georges-Picot, o signatário dos acordos com o Reino Unido, aprovados também pela Rússia, mas depois ultrapassados pelos acontecimentos. E para acompanhar o representante francês como seu assistente o islamologista Louis Massignon, que Pio XI definirá como o “católico muçulmano” e que terá um papel importante na aproximação ao Islã.
A ocupação da cidade, onde desfilam três batalhões de uma “legião judaica” incorporada nas Forças anglo-egípcias, incomoda os muçulmanos na Palestina. As reações na Europa são ditadas pelos diferentes lados, e a reação do Vaticano é prudente: segundo o Secretário de Estado Pietro Gasparri, “a Santa Sé continua sendo uma autoridade supranacional, que não deve expressar exultação por um episódio da guerra” mundial: se, ao contrário das igrejas romanas, "tivéssemos feito badalar os sinos de São Pedro, isso teria sido notado em Constantinopla”, explica o cardeal.
Os acontecimentos convulsivos que se seguiram nos trinta anos que levaram à proclamação do Estado de Israel são "a história de ilusões perdidas", como já em 1937 observa com amargura William Ormsby-Gore, representante britânico na Liga das Nações. Ainda em 1921 o congresso sionista de Carlsbad afirma “a determinação do povo judeu em viver com o povo árabe em termos de unidade e respeito mútuo." No entanto, face à crescente imigração judaica desde 1922 a oposição torna-se cada vez mais violenta, com greves, guerrilha, atentados, terrorismo - primeiro árabe, depois judaica – e também tem como alvo os britânicos.
Embora a influência francesa diminua em toda a região e as estratégias britânicas falhem, regista-se “a destemida constância da política papal, para não dizer o seu imobilismo”, como resume num estudo inteligente de mais de oitocentas páginas (Le Saint-Siège face à la “Question de Palestine”, Honoré Champion) Agathe Mayeres-Rebernik. Que tem o mérito de ter baseado a sua análise nos documentos de vinte arquivos, mas sobretudo na análise de uma bibliografia muito vasta, principalmente teológica.
Desde 1887, a política do Vaticano para o Oriente Médio tem-se confrontado com duas questões: a proteção de lugares santos, confiados aos franciscanos desde a Idade Média, e a situação dos católicos, na sua maioria árabes. Uma minoria de comunidades muitas vezes antiquíssimas, mas cada vez mais restritas e que correm o risco de desaparecer.
Como mostrava há trinta anos o preocupante panorama de quase mil páginas (Vie et mort des chrétiens d'Orient, Fayard) escrito por um desconhecido diplomata francês sob o pseudônimo de Jean-Pierre Valognes, e como confirmado pela síntese de Ronald G. Roberson (The Eastern Christian Igrejas, cnewa.org).
Mas a questão da Palestina não leva a Santa Sé a tratar, como nos séculos passados, apenas da proteção dos lugares santos e do destino dos cristãos, que não são apenas católicos. O retorno dos judeus à terra de Israel leva de fato os teólogos cristãos, já entre as duas guerras mundiais, a reabrir a reflexão sobre as relações com a tradição judaica e com os judeus, tornada urgente pelo antissemitismo e pelo Holocausto, graças sobretudo ao trabalho pioneiro e fundamental do historiador judeu Jules Isaac.
No que diz respeito às relações dos católicos com o mundo muçulmano, desempenha um papel central Massignon: especialmente através de experiências místicas para renová-las segundo uma visão ousada, em parte irrealista, mas apoiada por vasto conhecimento. Com um percurso pessoal e espiritual que o leva a enfatizar a importância de Abraão e da Virgem Maria. E graças a ele também o Concílio Vaticano II expressará, na declaração Nostra aetate, “estima” pelo Islã.
Se o itinerário de Massignon parece quase isolado (ele passou do sionismo a um antissionismo radical em 1938), muito mais relevantes e ricas são as reações cristãs - especialmente as católicas – diante do movimento de renascimento judaico. Em última análise, trata-se, de fato, do papel do povo do qual nasceu Cristo e da própria Igreja na perspectiva do fim da história, segundo a visão do “mistério de Israel” traçado por São Paulo em três capítulos (9-11) da Carta aos Romanos: o Judaísmo é a “raiz santa” e “os dons e o chamado de Deus” são irrevogáveis.
No contexto da grande renovação bíblica e para superar o tradicional antijudaísmo cristão, amadurece entre as duas guerras mundiais - especialmente depois do Holocausto - um importante e variegado filo-semitismo, respondendo assim aos pedidos de Isaac.
Os protagonistas são intelectuais e teólogos como Jacques Maritain, Charles Journet, Erik Peterson, Karl Barth, Hans Urs von Balthasar, e a reflexão vai à raiz da primeira laceração: aquela entre a sinagoga e a igreja nascente. O que leva ao repúdio do antissemitismo pelo Concílio e, em 2017, à afirmação de Bento XVI segundo a qual o nascimento do Estado de Israel, embora secular, expressa em sentido lato “a fidelidade de Deus ao povo de Israel”.
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Do nascimento do sionismo a Israel: aqui está a política do Vaticano para o Oriente Médio. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU