10 Agosto 2023
"O Ocidente, apesar de tudo, nos deixa um legado precioso e indispensável, tão fundamental, ao ponto de sustentar a hipótese que isto possa servir para todas as culturas, quase como um novo mandamento civilizatório. O como uma nova e revolucionária inspiração para a economia e para a política", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra - CPT, em artigo publicado em sua página do Facebook, 08-08-2023.
Francisco, chegando a Portugal, logo pergunta à Europa: “para onde navegas, se não ofereces caminhos de paz, caminhos criativos para acabar com a guerra na Ucrânia e os tantos conflitos que estão sangrando o mundo?”
“Para onde navegas, Europa e Ocidente, com o abandono dos velhos, os muros e o arame farpado, os massacres no mar e os berços vazios? Para onde vais se, diante do mal da vida, oferecer remédios apressados e errados, como o fácil acesso à morte, uma solução conveniente que parece doce, mas na realidade é mais amarga do que as águas do mar?”
“Devemos reconhecer a urgência dramática de cuidar da casa comum. No entanto, isso não pode ser feito sem uma conversão do coração e uma mudança da visão antropológica subjacente à economia e à política"... não podemos nos contentar com simples medidas paliativas ou com tímidos e ambíguos compromissos”.
Perguntas e apelos à conversão, que aparecem sintetizados na crítica radical da postura ocidental diante da crise civilizacional: “Qual rota tu segues, Ocidente?”
Somente um latino-americano, aliado dos povos indígenas e dos povos deportados da África, aliado dos empobrecidos, pode fazer esta pergunta com a radicalidade exigida.
É só a partir da inserção nos conflitos que atormentam os pobres destas terras que um europeu pode entender plenamente a matriz violenta e predadora da civilização ocidental. É somente aqui que é possível refletir sobre o conflito constitutivo do processo de colonização da Abya Ayala e de todas as colonizações que seguiram, na Ásia e na África. Só a partir daqui é que não é mais possível ocultar e maquiar o lado trágico e sombrio da dominação ocidental, que se deu como tragédia germinal no século XVI e repetiu-se com análoga intensidade na segunda colonização dos séculos XIX e XX, quando os pobres alemães, italianos e poloneses migraram da Europa e, uma vez que se estabilizaram economicamente, frequentemente à custa dos territórios e do sangue dos indígenas, criaram enclaves de brancos correntemente racistas e supremacistas, que hoje flertam e casam com neofascismo e neonazismo.
Em suma: a doença do Ocidente convence também os desafortunados, que introjetam em si a praxe e o pensamentos dos inimigos. Como no caso, que não é exceção brasileira, da maioria de pobres que compõem as dezenas de milhões de apoiadores do bolsonarismo.
Estas complicações, porém, não chegam a prejudicar o discernimento dos conflitos e sobre o lado que, sem dúvidas e hesitações, devemos sempre escolher. O lado dos pobres, dos fracos, dos vitimados.
Esta crise do Ocidente aparece, hoje, também na Europa e em suas extensões ocidentais, mas falta aos europeus a possibilidade de entender, processar e enfrentar politicamente a crise. Porque não enxergam nem entendem que a história, desde sempre, é o teatro da constitutiva centralidade do conflito entre o poder constituído e os injustiçados. Fixados como são nos seus horizontes identitários, foram - e ainda são – quase ontologicamente incapacitados a entender que a nossa história é conflitual e que exige de nós a determinação corajosa de tomar partido.
A radicalidade da crítica do mundo ocidental, porém, não nos consente de optar para uma demonização maniqueísta desta civilização, porque correríamos o perigo de descartar, junto com o universalismo imperialista, naturalizado, por séculos, pelos régimes de cristandade, algo que talvez seja valioso, algo de autenticamente universal, não manchado pela violência etnocida da colonização.
O Ocidente, apesar de tudo, nos deixa um legado precioso e indispensável, tão fundamental, ao ponto de sustentar a hipótese que isto possa servir para todas as culturas, quase como um novo mandamento civilizatório. O como uma nova e revolucionária inspiração para a economia e para a política.
Os defensores das sociedades hierárquicas, totalitárias, autoritárias nunca conseguiram ocultar e sepultar as vítimas do sistema. O capitalismo não é o crime perfeito, porque, apesar da sua imensa capacidade de manipular e adormecer consciências, deve lidar com a presença constante insistente de uma parcela da humanidade indignada, resistente, insurgente contra a violência e a desigualdade.
Desde Espártaco até Gerônimo, de Zumbi até Antônio Conselheiro, de Sepé Tiaraju ao Negro Cosme, de La Boétie até Bakunin, de Bartolomeu de las Casas a Frantz Fanon, dos tribunos da plebe até a revolução soviética, os impérios foram obrigados a encarar o conflito, o confronto com os injustiçados desobedientes. São gerações e gerações da humanidade martirizada e vencida, cujo sacrifício revive e é atualizado na memória subversiva e na luta,
Quando parecia que os desobedientes tinham alcançado vitórias significativas contra o sistema e a ideologia dominante, com a Revolução Francesa e, mais tarde, com a Revolução Russa, pelo contrário eles foram novamente derrotados e vencidos, porque estas revoluções, que revelaram em plenitude “a outra face da lua”, foram dirigidas por homens e critérios que pertenciam ao velho mundo. Aos seus inimigos.
Este embate dialético está presente – diria ‘também’ e ‘sobretudo’ na biblioteca fundamental do mundo ocidental: a Bíblia judaico-cristã, a inegável, apesar de traída, inspiração e companhia de toda história da Europa.
Até que o Templo e o Palacio Real, gestores dos textos canônicos, quase conseguiram ocultar o protagonismo dos vencidos. Com efeito, só uma exegese atenta à dialética, ao conflito, consegue resgatar o papel teológico alternativo dos pequenos, das mulheres, dos marginalizados. Pequenas luzes numa noite em que mandam os reis, os sacerdotes, os intelectuais da Lei, as elites, os tutores das instituições que garantem a ordem social.
É o Sandro Gallazzi, que, com uma hermenêutica convincente, ilumina a constitutiva conflitualidade dos livros da Bíblia: “Todo texto bíblico é uma resposta a uma situação concreta. Só conhecendo a ‘pergunta’, podemos ter condições de entender a resposta... é preciso procurar qual conflito produziu o texto...qual a dúvida, a crise, a dificuldade concreta a qual foi preciso responder...”
Em companhia da Palavra, é inevitável fazer memória de um processo de oposição e luta contra às ditaduras civis-militares e ao sistema capitalista, que aconteceu na Abya Ayala, animado por cristãos e por comunidades de base. Foram décadas, marcadas por Medellín e Puebla, em que surgiam o Cristo Libertador e as teologias da libertação. Oportunidade histórica que revelou plenamente, por via cristológica e popular, a centralidade do conflito na vida e na Bíblia. Época de profetas e de mártires. Profecia que, porém, não conseguiu reformar radicalmente as Igrejas, mostrando que o mesmo conflito que atravessa a história está presente, nos mesmos termos, nas instituições e nas práticas eclesiais.
Lembro de uma síntese profética do Pedro do Araguaia, que descreve este tempo de Graça: “Os proibidos da terra, as culturas indígenas ou africanas e suas religiões, as massas populares e seus direitos, emergem como protagonistas, inevitáveis para os protagonistas hegemônicos de sempre; e como protagonistas libertadores para a América Latina de amanhã. Os indígenas, os negros, as mulheres, os pobres, como uma espécie de profeta coletivo, sacodem a sociedade e a Igreja, o Próprio Terceiro Mundo dentro de casa, e o Primeiro Mundo fora e dentro.”
Décadas depois, em tempos mais avaros de lutas e profecias eclesiais, persistem as verdades do conflito, como código constitutivo da história, e da vocação a tomar partido pelos pobres. Exige-se, porém, cada vez mais, a reflexão sobre o ‘como’, o método, o estilo do discernimento e do enfrentamento dos inimigos da vida. E o único caminho necessário e imprescindível é a sequela de Jesus de Nazaré, o Messias. É acolhe-lo como quem encarou o conflito como terra inevitável da semeadura do Reino. É aceitar a sua presença e companhia, a sua palavra, a sua praxe, o seu estilo, o seu jeito de enfrentar os poderes mortíferos deste mundo, o seu destino de condenado a morte, Crucificado-Ressuscitado. Vitorioso, sobretudo quando diz: “Paizinho, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lc 23,34).
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“Qual rota tu segues, Ocidente?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU