Quem seriam eles hoje? Naquela época, há mais de dois mil anos, segundo o relato de Lucas, eles eram pastores. “Eles vigiavam à noite, guardando seu rebanho. Um anjo do Senhor estava diante deles e a glória do Senhor os envolveu em luz. Eles foram tomados de grande pavor, mas o anjo lhes disse: 'Não tenham medo, estou anunciando a vocês uma grande alegria. Hoje nasceu um salvador na cidade de Davi, que é Cristo Senhor. Este é o sinal para vocês: encontrarão um menino envolto em panos e deitado em uma manjedoura'”.
Tremendo e maravilhados, aqueles "últimos" foram os primeiros a receber a boa nova, pessoas simples, mas com mente e coração abertos. "Marginalizados" prontos para acolher aquela mensagem revolucionária, figuras que ganham vida nos nossos presépios, na história da arte, na tradição; aqueles que oitocentos natais atrás acorreram a Greccio para admirar a representação – uma reproposição tridimensional do relato de Lucas – encenada por São Francisco. Humildes e maravilhados.
E agora? Quem seriam os pastores de hoje se o mesmo anúncio fosse feito em 2022? Os excluídos? Os entregadores que desafiam o trânsito e o frio das nossas cidades por alguns euros? Os migrantes nos barcos? Os precários? Os desempregados, os catadores de tomate, vítimas de contratações ilegais? Os moradores de rua que dormem em bancos forrados de papelão? Os idosos sozinhos? As cuidadoras do Leste? O povo ucraniano? "La Lettura" perguntou isso a biblistas, teólogos, sociólogos, antropólogos, mulheres e homens da igreja. Interpretações distintas, mas não diferentes: os humildes, claro (que não são necessariamente pobres).
Acima de tudo mulheres e homens “capazes de ouvir neste mundo de surdos”; os jovens, "que têm uma predisposição natural para a escuta"; os derrotados pelos processos de globalização, mas também refugiados, ciganos, povos em movimento em busca de melhores condições de trabalho e de vida. É uma sucessão de rostos que têm – teriam – todos cidadania no presépio. Mas vamos começar pelas origens.
A reportagem é de Annachiara Sacchi, publicada por La Lettura, 18-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A natividade é mencionada apenas em dois Evangelhos canônicos: no de Lucas, o único com a história dos pastores, e no de Mateus, com o episódio dos Magos. Lucas olha para Roma e para o Ocidente; Mateus para o Oriente e para a comunidade judaica. Lucas está atento aos pobres e marginalizados investidos de um anúncio de salvação universal e tem Maria como protagonista; Mateus centra-se na figura de José.
Não são distinções insignificantes, ressalta Marinella Perroni, estudiosa que fundou a Coordenação Teólogas Italianas. “Lucas e Mateus insistem na infância de Jesus para transmitir a mensagem de que aquela criança desde sempre foi Deus, não se tornou Deus com o passar dos anos. São processos complexos que devem ser pinçados nas diferentes culturas e nos seus instrumentos narrativos”.
Acrescenta Piero Stefani, teólogo e exegeta: “Moisés é o pastor, Davi é o pastor, Deus é o pastor do seu povo”. E, observa Rosanna Virgili, professora de exegese no Instituto Teológico das Marche, na Faculdade Teológica da Puglia e no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Rimini: “Lucas usa uma categoria social bem conhecida, a dos pastores, que, no entanto, tem simbologias distintas. Aquela religiosa: Deus não precisa mais de um templo para visitar seu povo, mas acampa entre os pastores; e aquela política: Belém é a cidade de Davi, um pastor como Moisés, gigantes da história de Israel, porém atacados e hostilizados, dois "marginalizados" como Jesus. Portanto Deus escolhe aqueles que o mundo descarta. Finalmente, Lucas contrapõe a figura de Jesus, que vem das periferias, ao imperador Augusto, o divus de Roma, mas também aos antigos reis de Israel, corruptos contra os quais se levanta a reclamação dos profetas: "Ai dos pastores de Israel, que se apascentam a si mesmos!".
A irmã Grazia Papola, que leciona na Faculdade Teológica de Milão e no Instituto San Pietro Martire de Ciências Religiosas de Verona, compartilha da mesma opinião: “Com os pastores, Lucas não está narrando uma anedota folclórica, mas já está anunciando a mensagem do Evangelho. O significado dessas figuras não é unívoco. Se levarmos em conta o contexto histórico da época, os pastores, que levavam uma vida nômade ou seminômade, eram vistos com desprezo e terror pelos sedentários, um pouco como entre nós hoje se consideram os ciganos. Num dos tratados mais famosos do Talmude (Sinédrio 25) afirma-se que os pastores não podiam ser eleitos juízes nem ser citados como testemunhas em julgamentos porque eram impuros devido à convivência com animais e desonestos devido às suas violações dos limites territoriais. Representavam uma classe marginalizada e desprezada”.
“No entanto, se alargarmos o olhar para a tradição bíblica como um todo, o significado se amplia em uma direção diferente. No antigo Testamento os grandes personagens, Moisés, Davi, antes de se tornarem líderes do povo, haviam sido realmente pastores, no Novo Testamento o termo pastor é sempre aplicado a Deus, a Jesus e aos responsáveis pelas comunidades”.
Tudo deve ser inserido em uma história mais ampla, observa Silvano Petrosino, professor de Antropologia Religiosa e da Mídia e Teoria da Comunicação na Universidade Católica de Milão: “Deus decide encarnar-se, onde? Num pequeno povo, numa zona periférica, no filho de um carpinteiro e de uma jovem. Ele desconstrói a ideia de Deus Rei, que no Antigo Testamento liberta os judeus do Egito, que era a América da época, ao mesmo tempo em que se encarna numa figura ‘decepcionante’. Da mesma forma, os pastores recordam a ideia dos últimos: a primeira epifania é para eles, os humildes que não fazem do seu conhecimento motivo de orgulho, os crentes e não os crédulos. Ao revelar-se a eles, Deus diz algo sobre si mesmo: a humildade é sinal de grandeza”.
Dom Flavio Dalla Vecchia é professor de Sagrada Escritura no Estudo Teológico Paulo VI do Seminário de Brescia e de Língua e Literatura Hebraica na Universidade Católica de Milão. “No contexto daquela época, os pastores não são tão diferentes daqueles de hoje, não têm uma vida muito social. Eles vivem à margem não tanto por causa de suas condições econômicas – era um trabalho digno, tanto que o Senhor é Deus pastor –, mas por causa de seu nomadismo. O Evangelho de Lucas com esse anúncio diz-nos imediatamente que Jesus veio para partilhar uma forma normal de ser. O anjo fala aos pastores porque eles são a futura imagem de Jesus”.
Debate aberto. Tentem imaginar um anjo que lhes diga que o filho de Deus nasceu. Desliguem-se do smartphone, concentrem-se por um instante. "Difícil! Somos todos surdos, como podemos receber um anúncio dessa magnitude?”, pergunta Piero Stefani. “A questão – continua – é esta, e por isso eu responderia assim: os pastores hoje são as mulheres e os homens capazes de escutar, de acolher aquela mensagem”.
Rosanna Virgili divide novamente os âmbitos. Naquele religioso, “eu diria que os pastores hoje são os bispos, o Papa, o clero, chamados a serem ponte entre o Deus transcendente e a vida das pessoas; naquele histórico, os trabalhadores sem plenos direitos, os estrangeiros empregados no trabalho agrícola, todos aqueles que se dedicam às tarefas mais humildes, o Papa diria os descartados; no âmbito cultural, os intelectuais que ‘vigiam à noite’ e tentam ler o presente; na esfera política, os governantes competentes, sábios e livres”.
Petrosino acrescenta: “São as pessoas que ainda conseguem maravilhar-se e que não fecharam a porta! Vamos sair do equívoco dos ‘pobres’: pobres são aqueles que não se deixam possuir pelas coisas. É difícil encontrá-los". Domenico Pompili é bispo de Verona e administrador apostólico de Rieti, diocese de Greccio (mais tarde chagaremos a São Francisco e às comemorações do oitavo centenário de seu presépio). "Os pastores de hoje", explica, "são os migrantes: políticos, climáticos, econômicos. São eles que têm que deixar suas terras para encontrar outro lugar onde viver. Aqueles que pagam o preço mais alto do sistema global". E todas as periferias da sociedade, os que não têm voz e não se sentem ouvidos, os que "não têm audiência" e precisariam de relações, como sugere Dalla Vecchia.
Num mundo onde imperam as desigualdades, só há o embaraço da escolha na hora de identificar os novos pastores, aponta Marinella Perroni. “Os entregadores? E, então, porque não os escravos da colheita dos tomates? Trabalhadores precários da Amazon? Então vamos colocar todos lá dentro, abençoados sejam os presépios com a banquinha dos embutidos, mas cuidado porque isso é folclore. Prefiro dizer quem está predisposto à escuta: o anúncio chega se estiver disposto a acolhê-lo, sem preconceitos”.
Os humildes, mas não derrotados. Esse conceito é introduzido por Flaminio Squazzoni, professor catedrático de Sociologia na Universidade Estatal de Milão: “Em primeiro lugar, vamos dizer quem não seriam: ou seja, as hierarquias eclesiásticas e políticas. Há uma nova trindade que governa hoje, Ciência-Tecnologia-Direito, que orienta as nossas vidas e está nos dizendo que o homem é o culpado de tudo. Mesmo que o anúncio chegasse, não o perceberíamos. A sociedade digital sofre de falta de verticalidade e Jesus nos diz para olhar para cima... Mas os derrotados pelos processos econômicos e pela globalização podem ser salvos: os pastores de hoje não entregam suas vidas a essa trilogia, não são escravos de novas ídolos, que aliás não trazem felicidade. Eles vão além, seu olhar vai além. Eles têm um poder que não vem da sociedade, mas deles mesmos. Eles são humilhados, mas não derrotados. Não são os processos econômicos que os determinam.
Eles não acreditam na vida rasa dos tiktokers. São pouco visíveis, mas são mais do que pensamos”. Elisabetta Moro, professora catedrática de Antropologia na Universidade dos Estudos Suor Orsola Benincasa de Nápoles, acaba com as dúvidas: “A história da Natividade é a história de Deus que se faz homem e os primeiros a perceber isso são os puros de coração. E estes são os últimos e vamos incluir a todos: trabalhadores do campo, operários sem garantias e sem segurança, os que recebem subsídios, as mulheres sub-remuneradas...”.
Aqui também são necessários alguns esclarecimentos, pelo menos uma revisão: os Magos aparecem apenas no Evangelho de Mateus onde são "alguns", seu número não é especificado, eles trazem três presentes – ouro, incenso e mirra. Não são três (tornar-se-ão três por volta do século VIII), não são reis e o nome – Gaspar, Melchior e Baltasar – é dado por Marco Polo no Milhão, quando conta que por volta de 1270 visitou seu túmulo na cidade de Saba, ao sul de Teerã.
Os Magos são os sábios "que transformam", observa Petrosino, "o seu poder em abertura, não em fechamento; eu sou o absolutamente sábio que tem a humildade do absolutamente ignorante; sabem interpretar os sinais como a estrela. Herodes pede-lhes que lhe prestem contas da visita a Jesus, mas eles retornam para o Oriente sem o informar. Existem alguns, mas não os vemos. Poderiam ser os poetas, os profetas".
A outra face, a culta, dos simples. "São aqueles", analisa Squazzoni", que cultivaram o espírito para além do mainstream. Os artistas que revelam os limites da palavra e da sociedade; párocos com os pés bem firmes na terra, que têm a sabedoria da vida; o homo faber que usa suas capacidades para resolver sua vida e a dos outros”. Sábios orientais que sabem olhar os sinais do céu.
"Eles representam", continua Dalla Vecchia", a sabedoria desconhecida pelo povo judeu. Entendem de onde vem a verdadeira luz e se deixam mover por ela. São os primeiros pagãos do presépio e hoje poderiam ser homens e mulheres capazes de ler os sinais dos tempos”. Os cosmoteístas que vão em busca do divino (Stefani). A voz dos que não têm voz (Virgili, que recorda: “O que é dito aos pastores é primeiro anunciado a Maria...”). Marinella Perroni insiste: "Colocar esses Magos no relato significa legitimar a essência divina da criança desde o berço".
Necessária e idealizada, o nascimento de Jesus e a sua representação mudam ao longo do tempo, tanto que foi Bento XIV em meados do século XVIII quem estabeleceu que os pastores também eram três, aponta a antropóloga Elisabetta Moro. "Irritado com o crescente número de supostas testemunhas do nascimento de Cristo, o Papa pôs um ponto final." Uma questão também política: os pastores da Natividade são santos para a Igreja. Mas existem muitas "invenções" que levam ao presépio atual. Uma delas é a gruta.
Inexistente no Evangelho de Lucas, a gruta parece ter sido uma invenção do século II-III. Até o boi e o jumento são tardios, "nascidos" do erro de transcrição de um texto profético em grego (o Salvador nascerá entre duas épocas, em grego aión, ou seja, antes e depois de Cristo, torna-se nascerá entre dois animais, em grego zo on). No entanto, são elementos que aparecem no presépio de Greccio – o primeiro "vivo" – montado em 1223, como uma encenação, pelo poverello de Assis para enviar uma mensagem de paz. "Não precisamos reconquistar Belém, mas reescrever Belém", explica Paolo Dalla Sega, que além de lecionar na Cattolica Valorização Urbana e Grandes Eventos, é o diretor cultural encarregado de coordenar, produzir e supervisionar as iniciativas do programa cultural de Greccio 2023 (greccio-2023.com; o Comitê Nacional foi criado pelo Ministério da Cultura): mais de um ano de eventos, concertos, representações, celebrações, exposições.
“A grandeza de Francisco", explica Dalla Sega", está em inventar um presépio novo e vivo: numa gruta manda armar uma manjedoura vazia, talvez envolva o jumento e o boi, Maria e São José não estão ali, como a criança. Aqui Francisco fala e o povo de Greccio se reúne”. Tomás de Celano, cronista da vida de São Francisco, assim descreve a cena: “Monta-se o cocho, leva-se o feno, conduzem-se o boi e o jumento. Greccio quase se transforma em uma nova Belém”.
E dado o forte vínculo entre Greccio e a cidade palestina, o primeiro ato das celebrações para o oitavo centenário será realizado em poucos dias em Belém com a exposição (de 22 de dezembro a 12 de janeiro) Italian Visions of Nativity Scene al Bethlehem Peace Center (entre a basílica da Natividade e a mesquita de Omar) em que serão reproduzidas em telões as imagens das mais belas Natividades – de Botticelli, Leonardo, Piero dela Francesca, Giotto, Rafel, Tiepolo...
Sempre na cidade natal de Jesus a Companhia de marionetes Carlo Colla e filhos colocará em cena (10-12 de janeiro; em italiano, árabe, inglês) o espetáculo histórico A cabana de Belém, ao qual foi adicionado um personagem, Francisco. E isso é só o começo: Ascanio Celestini está envolvendo a população de Greccio em uma representação; nos lugares franciscanos estão previstas oficinas, será dado espaço para arte, dança, cinema, teatro; será criada uma rede entre Greccio, Chiusi, Assis, centros dos aniversários de Francisco (1223 o presépio e a regra; 1224 os estigmas em La Verna; 1225 a provável datação do Cântico em Valle Santa; 1226 a morte em Assis). E além disso caminhadas, seminários sobre panificação (cum panis, companheiro, palavra cara a São Francisco). “Não celebramos apenas o presépio – conclui Dalla Sega – mas participamos da reflexão sobre como nascer e como fazer nascer cada dia”.
Na carta apostólica Admirabile signum de 2019, o Papa Francisco reafirmou a importância do presépio; as suas observações sobre os personagens físicos e simbólicos da Natividade serão reunidas em um livro publicado pela Lev e Piemme (Il presepe, será lançado em setembro). Monsenhor Domenico Pompili une-se às palavras do pontífice ("Na escola de São Francisco, abrimos o coração a essa graça simples") e acrescenta: "O frei de Assis é um homem transformado pelo encontro com Deus. Seu presépio é uma provocação em duas frentes, porque desvia a atenção de um Deus todo-poderoso e distante para um Deus impotente e próximo. Além disso, São Francisco abandona a violência do seu tempo (vamos pensar nas Cruzadas), e em Greccio, onde chega quase cego, no final da vida, revela que outro caminho é possível, o da mansidão. Todos acorrem ao "seu" presépio, mas ele não faz proselitismo. Francisco tem um olhar livre e quer que o alheio seja igual”.
Mas como se chegou do parco presépio de Greccio às majestosas representações da tradição, especialmente aquela napolitana? A resposta é ilustrada por Elisabetta Moro, autora, com Marino Niola, do livro Il presepe (il Mulino). “A máquina narrativa é complexa. Pensemos no negro Baltasar: ele foi introduzido na Idade Média, era preciso um mago etíope para representar aquela parte do mundo. A Igreja busca histórias inclusivas". E isso é apenas uma das muitas. Pouco a pouco são acrescentados personagens não necessariamente ligados aos Evangelhos, figuras não religiosas, numa estratificação contínua. “O presépio napolitano é a versão barroca da Natividade”, continua a antropóloga.
“A cidade entra no presépio com prepotência a partir do século XVII. Os Bourbon adoram”.
Luigi Vanvitelli, o projetista do Palácio Real de Caserta, em 1766 conta a seu irmão sobre um presépio que se mexe, no qual um certo frade Paulo se vê batizando o menino Jesus.
“Os anacronismos são muitos nos presépios napolitanos. E as esquisitices, as presenças ‘escandalosas’ como as dos ‘femminielli’, os transexuais. Não esqueçamos, porém, que a boa notícia é provocativa, caso contrário não funciona, e que o presépio é um palimpsesto: os erros fazem sentido porque a história se entrelaça com a vida. É uma narrativa aberta e esta é a sua potência”.
Em San Gregorio Armeno, a rua napolitana dos presépios, entre as estatuetas aparecem jogadores de futebol, virologistas, Giorgia Meloni, a rainha Elizabeth. "Bem, é correto", conclui a pesquisadora. “O presépio é a boa notícia que se torna presente. É a natividade que renasce, universal e local, cada país faz dele o espelho de si mesmo. É uma história incrível e eterna." Acima de tudo, viva.