06 Dezembro 2022
"O bipolarismo masculino-feminino, que inclusive ocupou obsessivamente a cena quando o pensamento teológico era totalmente androcêntrico e patriarcal, há mais de um século, ou seja, desde que as mulheres primeiro se tornaram uma "questão feminina" e depois, livrando-se dessa ofensiva expressão, decidiram sentir-se plenamente protagonistas da vida social, política e eclesial, já foi submetido a revisões decisivas e viradas importantes. Até na vida das igrejas. E o princípio mariano-petrino que garante a preservação de estereótipos doutrinários, arranjos institucionais, práticas devocionais, revela agora toda a sua fragilidade", escreve Marinella Perroni, biblista, fundadora da Coordenação de Teólogas Italianas, em artigo publicado por Donne Chiesa Mondo, dezembro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em um breve vídeo que viralizou recentemente estão reunidas reações carregadas de emoção e de entusiasmo de muitas meninas afro-americanas ao ver na TV uma versão do filme da Disney A Pequena Sereia em que Ariel tem pele escura. Um vídeo bem feito, que nos lembra que a inclusividade de uma cultura também se mede pelo imaginário.
E as meninas afro-americanas que se emocionam ao ver uma Ariel de pele escura nos dizem algo que continua válido para qualquer comunicação, inclusive aquela magistral dos Papas: escutar, ler, ver significa receber alguns sinais explícitos ou implícitos, que enraízam dentro de nós um conjunto de convicções, que contribuem para estruturar as nossas identidades, que favorecem a construção de um imaginário coletivo no qual todos somos espelhados. Aqui então reside o ponto: espelhados como?
Começar assim um discurso sobre algo que é muito sério, talvez até um pouco difícil, pode parecer estranho. E, no entanto, naquela publicidade da Disney está a chave de leitura para entender o que estou prestes a dizer sobre o que "em código" é chamado de "princípio Mariano-Petrino". Uma fórmula recorrente no Magistério dos últimos quatro Pontífices para falar da vida da Igreja e, sobretudo, da participação nela de mulheres e homens: logo se intui que Maria é o protótipo do feminino e Pedro do masculino e é claro que, quando os Papas usam a fórmula do "princípio mariano-petrino", querem afirmar que todos, mulheres e homens, devem se sentir em casa na Igreja porque é o lugar onde a relação entre masculino e feminino é estritamente recíproca. No início do terceiro milênio, porém, uma reciprocidade que atribui às mulheres o carisma do amor e aos homens o exercício da autoridade deveria, no mínimo, nos fazer refletir. Mas, talvez, seja bom prosseguir na ordem.
Devemos a invenção do "princípio mariano-petrino" a um dos maiores teólogos do século passado, Hans Urs von Balthasar, que esperava fazer com que todas as confissões cristãs aceitassem o primado da Igreja de Roma com base na integração do ministério petrino na mística mariana. Não por acaso, o texto no qual o teólogo suíço expõe este duplo princípio, mariano e petrino, intitula-se O complexo antirromano. Como integrar o papado na igreja universal. Claro, ele mesmo não esperava que o bipolarismo Mariano-Petrino tivesse tanto sucesso. Mas também é verdade que, pelo menos até algumas décadas atrás, o recurso aos arquétipos do masculino e feminino era facilmente aplicável em qualquer âmbito.
No entanto, von Balthasar nunca teria imaginado que a partir daquele momento todos os papas se refeririam a ele, porém não mais para integrar o papado na vida da Igreja universal, mas para integrar homens e mulheres dentro da Igreja. Paulo VI retomou-o na Marialis cultus, João Paulo II assumiu-o e relançou-o na Mulieris dignitatem, Bento XVI serviu-se dele para explicar o sentido e o valor da púrpura cardinalícia. Francisco, depois, já o citou desde o início de seu pontificado, deixando entender que o considera um paradigma eclesiológico útil, senão absolutamente necessário. Justamente por ter tido tanto crédito magistral, me parece importante propor uma reflexão e, quem sabe, até abrir uma discussão.
Paulo VI afirma que Deus "colocou na sua família - a Igreja - como em todo e qualquer lar doméstico, a figura de uma mulher, que, escondidamente e em espírito de serviço, vela pelo seu bem e ‘benignamente’ protege, na sua caminhada em direção à Pátria, até que chegue o dia glorioso do Senhor". Ou seja, retoma literalmente a afirmação de von Balthasar segundo a qual “o elemento mariano governa escondidamente na Igreja, como a mulher no lar doméstico”.
O princípio mariano prevê, portanto, uma caracterização "materna" e "doméstica" do papel das mulheres. No entanto, Von Balthasar insiste na precedência inclusiva da mística mariana em relação à ministerialidade petrina: a primeira é condicionante porque é abrangente e libertadora, enquanto a segunda é condicionada porque é ministerial e administradora. Por seu lado, João Paulo II afirma que na sua essência a Igreja é ao mesmo tempo "mariana" e "apostólica-petrina" porque a sua estrutura hierárquica está totalmente ordenada à santidade dos membros de Cristo, mas também porque na hierarquia da santidade é precisamente a "mulher”, Maria de Nazaré, uma “figura” da Igreja e por isso exalta a saudável funcionalidade do “gênio feminino” para com o homem-masculino.
Para Bento XVI, portanto, “tudo na Igreja, cada instituição e ministério, também o de Pedro e dos seus sucessores, está ‘incluído’ sob o manto da Virgem, no espaço cheio de graça do seu “sim” à vontade de Deus" . Por fim, Francisco também tem dificuldade em se libertar da visão patriarcal que obriga masculino e feminino a um esquematismo que não se torna menos perigoso quando Pedro e Maria se estabelecem como figuras simbólicas de referência e se reserva a Pedro, isto é, aos homens, o ministério da autoridade, e a Maria, isto é, às mulheres, o carisma do amor.
Os bipolarismos são sempre sedutores porque iludem. Fazem de conta que as diferenças possam ser resolvidas em uma fórmula e a complexidade possa ser trocada pela simplificação.
E, no entanto, as diferentes amplificações retóricas que têm na raiz a identificação entre mulher-lar, ou seja, entre feminino e doméstico, feminino e interior, feminino e acolhedor, feminino e espiritual, por um lado, e pelo outro entre masculino e ministerialidade, masculino e autoridade, masculino e poder, representam uma verdadeira e própria dificuldade, em sentido técnico um "escândalo", para mulheres e homens que não podem mais conceber a diferença sexual em termos hierárquicos. Também porque agora ficou completamente claro que formas de exaltação mística do feminino são diretamente proporcionais à recusa de reconhecimento público da autoridade das mulheres.
A questão, portanto, surge em toda a sua dureza: o princípio mariano-petrino não expressa uma ideologia e uma retórica da diferença sexual e da diferença de gênero que já foi desmascarada como uma das coberturas dos privilégios patriarcais? Além disso, o sistema dos conhecimentos em que se situa a avaliação atual da diferença sexual e de gênero já se distanciou definitivamente da psicofisiologia que devia seu fundamento à biologia aristotélica e não permite de forma alguma fazer corresponder a distribuição de papéis e poderes às morfologias biológicas ou, muito menos, a classificações psicofisiológicas.
O bipolarismo masculino-feminino, que inclusive ocupou obsessivamente a cena quando o pensamento teológico era totalmente androcêntrico e patriarcal, há mais de um século, ou seja, desde que as mulheres primeiro se tornaram uma "questão feminina" e depois, livrando-se dessa ofensiva expressão, decidiram sentir-se plenamente protagonistas da vida social, política e eclesial, já foi submetido a revisões decisivas e viradas importantes. Até na vida das igrejas. E o princípio mariano-petrino que garante a preservação de estereótipos doutrinários, arranjos institucionais, práticas devocionais, revela agora toda a sua fragilidade.
Até porque hoje nada pode escapar ao controle da relação entre ordem simbólica, premissas antropológicas e repercussões sociais. Nem mesmo o pensamento teológico. É por isso que as meninas afro-americanas que vibram porque Ariel tem sua mesma cor de pele nos lembram que nenhuma palavra, nenhum pensamento, nenhuma imagem é "neutra": todas veiculam uma visão da vida. Inclusiva ou discriminatória. Por isso o convite agora é premente: vamos falar sobre isso.
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O duplo princípio. Aquele mariano e petrino: vamos falar sobre isso, fala a teóloga biblista. Artigo de Marinella Perroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU