“O padre é como Dom Quixote, e a nova missão hoje é escutar.” Diálogo entre Elisabetta Moro, Marco Onnembo e Marinella Perroni

Ilustração reetrata o personagem Dom Quixote | Foto: Medium - Reprodução

09 Julho 2022

 

O desejo de mudança da Igreja pode passar também por um romance. Il metro del dolore, de Marco Onnembo, está escalando as listas dos mais vendidos – está nos primeiros lugares nas livrarias religiosas – e está chamando muita atenção também nos ambientes eclesiásticos. O livro tem como protagonista um padre, Pe. Carmine, personagem sui generis: “O padre que eu gostaria de ter encontrado”, define Onnembo. Ele não segue as regras (bebe uísque, fuma charuto, vai a bares onde conhece pessoas de todos os tipos e se confessa diante de uma cerveja). Como homem, vive o seu tempo sem perder a sua identidade; como padre, tem muitas incertezas. Ele é o primeiro a se considerar um padre estranho.

 

A reportagem é de Severino Colombo, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 03-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Por meio da sua história pessoal e “profissional”, o romance aborda questões que animam a discussão na Igreja de hoje e tocam de modo mais geral a sociedade contemporânea. O caderno La Lettura escutou o autor em diálogo com a antropóloga Elisabetta Moro e com a teóloga Marinella Perroni.

 (Foto: Divulgação)

 

Eis o diálogo.

 

Na epígrafe de “Il metro del dolore”, há uma citação de Dom Quixote. Em que medida a figura do padre hoje se assemelha ao personagem do romance de Cervantes? Ele tenta interceptar uma necessidade do ser humano, mas se vê lutando contra os moinhos de vento.

 

Marco Onnembo – É isso. Muitas vezes, defronto-me com sacerdotes: quanto mais a ciência e a tecnologia seguem em frente, mais o caminho do ser humano avança na consciência, e maior é a dificuldade em ser uma pessoa de fé. O sacerdote é como Dom Quixote, porque combate firmemente nos seus princípios, nos seus valores e na sua missão, acompanhado pelo Espírito Santo, como deve ser, mas ao mesmo tempo tem que lidar com uma plateia, a humanidade, que tem fraquezas intelectuais e culturais também, e que, em comparação com antes, custa a se aproximar da Igreja e daquilo que está ao seu redor.

 

 

Marinella Perroni – A figura do livro é a de um padre que não existe, é o padre como deve ser, até que ocorre uma reviravolta: então, a perspectiva muda, e no fim o embate é entre a Igreja, como ela pensa que deve ser, e a realidade que foi desnudada. Anos atrás, eu já havia lidado com o fato de que, entre os sacerdotes, há uma espécie de complexo do bom samaritano: ou seja, você fez de tudo para fazer o Bem, mas não serviu. Nem serviu a quem precisa, nem a você. E, sobretudo, ninguém lhe pede isso. A crise da figura do padre tem uma raiz que está na formação que a Igreja, como ela é hoje, continua dando sobre uma questão fundamental: o ponto nodal da confissão. Pela expectativa que engendra no ministro de dispensar a salvação – o que é pura loucura – a um povo que não a quer, porque nem sequer sabe o que significa salvação. Rachou-se profundamente aquela que foi uma arquitrave da doutrina católica, da teologia. O autor faz o personagem dizer isso com muita clareza: “A confissão, além de ser o mais delicado dos sacramentos, é também o mais em crise”.

 

Elisabetta Moro – O Pe. Carmine é um belo personagem e, eu diria também, uma boa pessoa. Parece-me que ele pertence aos “poetas do cotidiano”, como Cervantes os chama, aqueles que são “vencíveis”, mas sempre se levantam. No segredo do confessionário, esse sacerdote é atingido como um pugilista pelas confissões chocantes dos fiéis. Homicídios, incestos, pedofilia, violências de todos os tipos. Os pecadores aliviam a própria consciência, mas a sua alma fica pesada. Onnembo relata muito bem o sofrimento de quem tem que suportar o peso dos males do mundo.

 

 

Talvez o que nunca devemos esquecer é precisamente que o padre é um ser humano.

 

Marco Onnembo – Sim, parece uma tautologia, mas é isto: é um homem ao qual nos dirigimos independentemente da nossa fé. Até mesmo os não crentes fazem isso, conheço muitos deles: vão pedir um conselho, porque reconhecem no sacerdote uma autoridade moral, é uma figura imbuída de humanidade. Por um lado, aquele homem, em certo ponto, poderia não aguentar mais. Por outro lado, há o fiel cujo credo está em crise, característica da contemporaneidade, e que se aproxima desse sacramento como se estivesse indo para o divã do psicanalista. O que ele busca é um diálogo, não o perdão de Deus.

 

Marinella Perroni – A diferença não está mais no confessionário – porque as pessoas não vão mais pedir perdão a Deus –, mas no fato de que os horrores do mundo chegam até nós todas as noites no telejornal. Isso desestruturou a nossa interioridade. No livro, diz-se que o padre pensa inconscientemente que carrega na própria mão a soma das penas da humanidade, ele se vê como um mediador ao qual as pessoas vão ao encontro para se redimir. Tudo isso desmoronou, não existe mais. A verdade é que as pessoas precisam falar, não são apenas “carne de telejornal”.

 

Marco Onnembo – Estou convencido disso. O ser humano contemporâneo fiel ou não fiel carece de alguém que o escute. O mal do nosso tempo é a solidão. Uma solidão existencial que também diz respeito ao sacerdote: é um homem com os mesmos problemas da contemporaneidade e, além disso, escuta os pecados dos outros, recolhe seus detritos psicológicos.

 

 

Marinella Perroni – Mas atenção: uma coisa é a solidão existencial com fraquezas e fragilidades, outra coisa é a patologia. Existem situações limítrofes, principalmente em relação à sexualidade e às novas mídias, em que se faz necessário um psicólogo. Como a Igreja pode responder nesses casos? A confissão funcionava porque era a expressão de um certo sistema, mas hoje o sistema não se sustenta mais.

 

Em uma Igreja que tenta se adaptar aos tempos, sem padres não é possível ficar, mas – aproveitando a sugestão do romance – sem ritualidades e sem lugares designados é possível sobreviver, como faz o Pe. Carmine, que recebe as confissões no bar! O seu próprio percurso formativo, a aproximação ao sacerdócio ocorre em idade adulta: pode ser um modelo a se levar em conta para os padres de amanhã.

 

Marco Onnembo – Sou crente como São Tomé e como São Paulo. Cultivo a dúvida, parece um oxímoro, mas não é. As mudanças são necessárias, porque a sociedade mudou. A doutrina do Papa Francisco não é a dos que o precederam. Os três últimos papas são figuras muito diferentes, para simplificar: o terceiro-mundista Wojtyla, o intelectual Ratzinger, o comunicador Bergoglio. O mundo mudou, mas o core business da Igreja continua sendo os últimos: é preciso mantê-lo em primeiro plano. No centro, deveria estar Cristo e a eucaristia, mas nem sempre é assim. É por isso que o meu sacerdote é pouco ortodoxo em relação aos ritos e a um certo tipo de Igreja.

 

E em relação à questão da fé madura?

 

Marco Onnembo – A idade é um fator que ajuda. A fé sem a razão não pode existir, ou pelo menos uma não é suficiente para a outra. Diante do percurso de um jovem, com os nós próprios da própria idade – todos nós os conhecemos –, você não pode pensar em não se confrontar com o mundo real. Sobre isso, se eu pudesse humildemente dar um conselho, eu estenderia esse tempo de escavação, de estudos e de escuta até depois do Ensino Médio. Depois, nos anos universitários, se alguém tem a vocação, inscreve-se em Teologia ou Filosofia, e inicia o seu caminho.

 

Marinella Perroni – Pela experiência direta que eu tive ensinando em uma pequena pontifícia universidade teológica, os padres muitas vezes não querem estudar, não leem, não se aprofundam. O próprio padre Carmine, do romance, é refinado, tem pretensões culturais, mas não estudou teologia, muito menos a Bíblia. Antes, o pároco da localidade encontrava as crianças pobres que eram boas promessas e as colocava no seminário: eram um recurso. Hoje, em vez disso, quem faz esse caminho muitas vezes quer pegar rapidamente um pedaço de papel para poder ser ordenado sacerdote.

 

Pequena provocação sobre o tema da vocação, mesmo fora do âmbito eclesiástico. É uma questão que toca de perto um tema como o dos jovens e do trabalho: a ideia de fazer sacrifícios por algo a que a pessoa se sente inclinada não é mais considerada um valor...

 

Elisabetta Moro – As vocações laborais impactam em um sistema produtivo que oferece poucos espaços. Portanto, é preciso uma boa dose de idealismo e de sorte para que fazer com que os próprios talentos deem frutos.

 

Marco Onnembo – Uma Igreja pluralista, aberta, terceiro-mundista também deve sê-lo em relação às identidades individuais. Se o tema é a vocação, esta não se declina: o senso religioso está na base da fé e da espiritualidade.

 

 

Segunda provocação: é hora de a Igreja pensar em uma religião com o “schwa”, que não parta de uma diferença de gênero masculino e feminino.

 

Elisabetta Moro – A religião hoje é on demand. A pessoa escolhe aquela que fascina, que é conveniente e que gratifica mais. Como leiga e como antropóloga, eu acredito que a Igreja Católica deveria encontrar palavras altas e fortes para dar esperança e coragem aos fiéis. Ela deve estar evangelicamente no presente, mas não buscar a atualidade. E, como mostra a história do Pe. Carmine, já é hora de eliminar o celibato e o voto de castidade dos sacerdotes. Para depois permitir o sacerdócio às mulheres. Somente encarnando-se nas grandes questões do presente é que a Igreja voltará a falar ao coração das pessoas.

 

Marco Onnembo – Se não queremos ser hipócritas, devemos dizer que temos uma Igreja orientada e conjugada no masculino. É um fato. Não é certo nem errado: é um fato, por mais que o Papa Francisco tenha dado passos notáveis nesse sentido. A sexofobia não é boa, é preciso uma verdadeira laicização de certos costumes. O sexo não pode ser um tema discriminatório: vamos tirá-lo do campo de discussão.

 

 

Marinella Perroni – As duas provocações se reduzem a uma única questão, porque o tema da vocação está ligado à sexofobia. Durante décadas, havendo carência de vocações, o problema era resolvido quantitativamente: ao invés de entender que era um sinal dos tempos, tentava-se forçar os tempos para ficar dentro do paradigma de base. A alavanca da vocação está na motivação, tem a ver com as necessidades do ser humano, o pertencimento a um certo tipo de comunidade. Há um vínculo entre identidade e escolhas que é preciso saber explicar e gerenciar. Nas Igrejas protestantes, existe uma relação ligada às necessidades e aos dons. Se você sabe fazer alguma coisa, e eu lhe peço que a faça, você é um bom cristão e a faz. Quanto ao segundo ponto: sim, é preciso conjugar a Igreja dos tempos atuais no masculino e no feminino. Infelizmente, sinto falta de uma exigência de que as pessoas se tornem cristãs adultas, críticas, pensantes, não acadêmicas. Também não se ouve o Papa Francisco sobre esse ponto... Para ele existe apenas o social, enquanto ele absolutamente não vê o aspecto intelectual.

 

Marco Onnembo – Pela minha sensibilidade, sou mais próximo do Papa Ratzinger. Para mim, o católico adulto é o católico intelectualmente comprometido. As Igrejas se esvaziam quando há coincidência entre a participação no rito da missa e os mecanismos de natureza devocional. Em poucas palavras, parece quase uma reproposição da teologia da libertação 2.0 com Cristo posto um pouco em segundo plano.

 

Um exemplo de como as coisas podem mudar ou já estão mudando?

 

Marinella Perroni – Como associação de teólogas, propusemos no ano passado um pequeno curso online de teologia das mulheres. Teríamos ficado contentes com 50 inscritos, mas tivemos 800, com pedido de cursos subsequentes. Ou seja, no período atual as mulheres representam um recurso áureo. Existe a vontade no nível leigo de ser adulto: com marido, filhos, vizinhos, no trabalho e, porque não?, também com Deus. À minha volta, vejo jovens determinadas que não desistem.

 

No romance, o personagem de Charlotte deve fazer uma escolha difícil e dramática. Essas páginas chamam a atenção à luz da recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre o aborto. Questiona-se um direito que parecia adquirido: quais são os tempos e os processos de mudança de uma sociedade?

 

Elisabetta Moro – Infelizmente, nenhum direito é adquirido para sempre. A decisão da Suprema Corte pode ser correta do ponto de vista do direito, mas não reflete o sentimento da sociedade, que em apenas 19% dos casos é antiabortista radical. Especificamente, parece mais um golpe dos juízes nomeados por Donald Trump do que o efeito de uma mudança de sensibilidade coletiva.

 

 

Marco Onnembo – Acredito que, nesse tipo de questões, como o aborto, quanto menos se regulamenta, melhor, exceto as questões de natureza médico-sanitárias. Deve haver regras claras sobre até quando você pode fazer ou não fazer, como mais ou menos na nossa lei na Itália. Mas são coisas tão íntimas, pessoais... Não é à toa que, no romance, eu escolhi o caso de Charlotte que é limite: ela engravidou devido a uma violência carnal. Essa menina tem o direito de escolher? O sacerdote do livro se pergunta qual mentira deve inventar e depois lhe diz: decida, siga o seu coração. Se todas as pessoas fossem tão boas quanto Charlotte, o inferno estaria vazio, e Lúcifer morreria de frio. Nesses casos limítrofes, que infelizmente não são apenas literários, sou duro e direto: uma qualquer religião ou um tribunal qualquer não podem regular de forma tão violenta as ações de um indivíduo frágil, indefeso, vítima de violência. O aborto não é um esporte. A situação da mulher nesse contexto é muito delicada: ela deve decidir sozinha, e qualquer escolha que ela faça, para mim, não é pecado.

 

 

Marinella Perroni – Se aquela mulher tivesse decidido não dar à luz o filho [no romance, ela opta por dar], talvez houvesse menos infelicidade, tanto dela quanto dos que a cercam. Quem sabe, não sabemos, mas é provável. E isso serve para lembrar aos padres que a realidade é muito, muito mais complexa. Jesus disse: vocês colocam sobre os ombros dos outros pesos que vocês não carregam sequer com um dedo.

 

 

Vale também para outras situações...

 

Marco Onnembo – Sim, somos todos contra a pena de morte ideológica, social e culturalmente, mas é claro que, se tocarem no nosso filho, veremos isso de uma forma diferente. Chocamo-nos abstratamente com os horrores do mundo, mas, depois, quando tocam a sua carne, então as coisas mudam. Emerge a nossa humanidade ou a nossa pouca humanidade. Sou um defensor do ser humano “sem humanidade”, como diz o Pe. Carmine... O cristianismo teve pouco efeito sobre o ser humano, ele só existe há 2.000 anos. Se você encontrar uma pedra na água e a cortar ao meio, ela estará seca por dentro. Assim também, mesmo que estejamos embebidos de cristianismo, tanto crentes quanto não crentes, a verdade é que não fomos penetrados por ele. Diante de certas questões como as mencionadas, o bom senso pode ser uma justa mediação entre o fato de ser completamente leigo e completamente crente.

 

Marinella Perroni – Sou mais otimista. A tradição judaico-cristã deixou legados milenares na realidade humana: penso na educação, na atenção aos pobres... A Igreja deve se perguntar hoje qual legado é chamado a deixar. Se sairmos da lógica do perdão e da redenção já superada, o legado é o da escuta, do respeito, da compreensão.

 

 

Marco Onnembo – Concordo. Se tivéssemos que reduzir 2.000 anos de cristianismo a um mandamento, este seria: ame o seu próximo como a si mesmo. Existe a fé, mas não necessariamente a ideia do “eu-lhe-salvarei”. Não há um Dom Quixote na batalha contra os moinhos de vento. Essa atitude anda de mãos dadas com a maturidade do fiel e com um compromisso intelectual que hoje não pode ser uma fórmula elitista, mas deve pertencer a todos. Um intelectualismo de massa.

 

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