“Se para os epidemiologistas as ações de contágio são condições estratificadas ao longo do território, a periferia metropolitana é o exemplo de como negligência e falta de infraestrutura transforma o espaço num propagador de extermínio, violência que justifica as intervenções ostensivas que policiam sem trazer condições de subsistência de pessoas periféricas ao sistema desigual contemporâneo. Contraditoriamente, a infraestrutura também dá oportunidade à manipulação, ao distanciar o controle e comunicação da intervenção material, as novas tecnologias se tornam justificativas de um urbanismo frio, distante, que esconde o trauma e pouco faz com que novos traumas sejam evitados. A infraestrutura é fundamental nessa prevenção pois, sem condições próprias, pessoas se tornam aos de um sistema de morte-sobrevida, tão comum à precarização advogada pelo estado e suficiente para prolongar os traumas que epidemias geram”, escreve Phillipe Cunha da Costa, em artigo para a Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.
Phillipe Cunha da Costa é doutorando em Urbanismo e Mestre em Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Integrante do Laboratório de Análise Urbana e Representação Digital (LAURD) com orientação da Dr.ª Maria Cristina Cabral. Tem pesquisa na área de Cibernética, Teoria do Urbanismo e Tecnologia.
“O urbanismo é parasita da crise. A crise é produtiva. Ameaças – reais e imaginárias – preenchem suas veias e dão corpo à sua forma. [...] Isso significa guilhotinar a maioria dos discursos sobre meio ambiente, ecologia, conflito e ajuda humanitária. Arquitetos não curam traumas; são cúmplices de sua produção. O que é necessário é uma investigação não sentimental sobre as condições que nos são apresentadas, uma investigação que não procure motivar a ação através da produção do medo” (LAHOUD, 2010 p. 14-15, tradução livre).
Em 2010 na edição do Architectural Design chamada Post Traumatic Urbanism Adrian Lahoud apresenta os traumas urbanos da edição, mas sequer faz referências às epidemias. Mesmo que no contexto já existisse H1N1, MERS ou Ebola, trauma de eventos exponenciais de longa duração se dilui ao longo do cotidiano e se têm uma ilusão de normalidade que embate o apelo representativo de tsunamis e terremotos que observamos em filmes de Hollywood. Lógico que tais desastres naturais trazem solidariedade, mas são escalas diferentes do que vimos na pandemia de COVID-19 que se iniciou em 2020. O evento mostrou uma escala operacional de trauma que planejadores e urbanistas estavam desconfortáveis em enfrentar e desestabilizou conceitos econômicos que, mais uma vez, mostraram o tal fracasso do capitalismo de lidar e gerenciar crises de maneira efetiva (BERARDI, 2020).
Como os garimpos na Amazônia que ameaçam populações indígenas, valas são desenhadas em espinha de peixe para assentar os milhares de mortos acometidos pela pandemia da COVID-19 durante a onda de janeiro de 2021 em cidades como Manaus. Isso denota a fragilidade da vida sobre a falta de infraestrutura das cidades hoje. Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real
Apesar dos desastres sanitários serem objetos de estudos epidemiológicos da academia, seu respaldo urbanístico ainda é incipiente (MITCHELL, 2003) e precisa ser explorado. Não é apenas compreender a esfera espacial dos traumas da saúde pública, mas amplificar o escopo da imunização (HAN 2016) para além das pautas biológicas, criando uma alternativa potente para modelos que lidem melhor com situações endêmicas. Frente à eminente simultaneidade da violência policial e das hospitalizações em massa televisionadas em plantões jornalísticos e lives de Youtube e Zoom, a precatória do urbanismo hoje é escassa, sendo executada como mero exercício de manutenção da segregação social e da vigilância de grupos desfavorecidos.
Relacionar epidemias com outros traumas colocam esses eventos em situações de igual intensidade que as guerras geram nas mudanças nos paradigmas das cidades (MITCHELL, 2004). Autores como William Mitcheel e Paul Virilio se debruçam justamente sobre essa condição contemporânea cuja velocidade da violência agencia o trauma expondo a sociedade a eventos intensos como guerras – e consequentemente a pandemia – declara também muito a própria condição estética da catástrofe (2008). Mesmo entendendo que a epidemia do SARS poderia ser um ensaio para algo maior, a evidência de uma performance militar com o procedimento “alvo- ataque-morte” das ações do estado capitalista mostra bem esse fracasso urbanístico. O que o Mitchell chama de ‘’corpo estranho’’, aquele que deve ser combatido e destruído, é a filosofia bélica pregada sumariamente todos os dias no abate aos dissidentes da cidade.
Os emblemáticos dissidentes que vemos em traumas são pessoas conhecidas como as descartáveis e os desumanizadas – como o negro, o pobre e o velho por exemplo (MBEMBE, 2018). Tidos organismos inferiores “à performance imunológica correta” da política de Estado, suas mortes são respostas do “nada podemos fazer” da negligência que a crise desigual e parcial faz surgir em momentos de traumáticos. Afinal, diante dessa mentira, quem poderá questionar o aumento de 40% da concentração de riqueza no mundo (RUSHE, 2021) e das mortes de países pobres na África e na América Latina? As epidemias e a saúde pública são problemas sistêmicos, sejam reverberando fake news que variavelmente influenciam na vacinação e na mortalidade seja no sistema político-econômico dificultando as próprias medidas de prevenção (MARTINS, 2020). Claro, tais medidas preventivas auxiliadas de órgãos auxiliares (WHO, 2020) ajudaram nas práticas de segurança de microcontrole transformando as práticas sociais para conter mortes, mas todas essas medidas são apenas mitigações de um fenômeno que matou mais rápido do que todos os acidentes aéreos, desastres naturais e urbanísticos que arquitetos viam.
Uma pandemia, ao contrário do que a Architectural Design mostra, pode transformar o urbano de maneira tão ou mais traumática do que qualquer outra condição urbanística. Não se trata de ser panfletário da inteligência espacial, mas sim de redefinir a infraestrutura das cidades para que as condições de prevenção não ameacem aqueles que devemos proteger (ALLEN, 2017). Isso é o que Achile Mbembe, influenciado pelo arquiteto Eyal Weizman, narra ao tratar da composição do controle de nossas cidades. A paisagem pós-traumática é uma paisagem gerada após o conflito desigual, pela assimetria da catástrofe entre favorecidos e aqueles desprovidos de mínimas condições de sobrevivência (STENGERS, 2015).
“Aliás, captura, predação, exploração e guerras assimétricas seguem lado a lado com a rebalcanização do mundo e intensificação de práticas de zoneamento – evidenciando uma cumplicidade inédita da economia com a biologia, que se traduz, em termos concretos, na militarização das fronteiras, na fragmentação e repartição de territórios, bem como na criação, no interior dos Estados existentes, de espaços mais ou menos autônomos, por vezes subtraídos de qualquer forma de soberania nacional, mas operando sob a lei informal de uma infinidade de autoridades fragmentadas e de poderes privados armados, ou sob a tutela de entidades internacionais, sob o pretexto de razões humanitárias, ou de simplesmente, de exércitos estrangeiros” (MBEMBE, 2018 p. 18).
A pergunta que fica diante de tal assimetria é: como as cidades podem reagir diante disso? Para isso trataremos de compreender um pouco como os espaços são estruturados, ou melhor, infraestruturados em tempos de pandemia. O pós-trauma ou, como descrito por Paul Virilio, a necessidade de desaparição da violência (2015) irá se mostrar naquilo que compõe o próprio campo do urbanismo: a superação das condições de existência em sociedade. Um urbanismo pós-traumático não tratará apenas do fenômeno urbano operado por tecnologias de controle e comunicação, mas de tecnologias de sobrevivência e ecologia para com um ambiente de integração informacional entre cidade e natureza.
Como ratifica a equipe liderada por Carlo Ratti em um artigo para a Scientific Report de dezembro de 2019, um mês antes da eclosão da pandemia em Wuhan, epidemias transmissivas por mosquitos evidenciam a relação entre deslocamento e desenvolvimento urbano (RATTI; MASSARO; KONDOR, 2019). Podemos estender isso à outras formas de contágio de doenças, claro, e o Brasil da febre amarela e da dengue é representativo sobre isso. Assolando cidades como Rio de Janeiro e Manaus, tais epidemias são bastante visíveis em locais de infraestrutura frágil, ainda mais quando avaliamos que as ações de mitigação pouco respondem na erradicação do problema em questão. Na realidade, as infraestruturas de saneamento básico e proteção de biomas são ações tão importantes quando investimentos em vacinação, que são construídas em epidemias já instaladas, estas mais facilmente mais emblemáticas na mortalidade em cidades latinas como as brasileiras e africanas.
Epidemias, como qualquer outro fenômeno de propagação biológica, fazem parte de um complexo ecossistema que dominam regiões frágeis sob o ponto de vista imunológico. Se uma cidade carece de infraestruturas de fluxo e saúde ela vai ser impactada ainda mais no trauma do que cidades que se constroem suportando eventos “adversos” justamente dando suporte infraestrutural aos eventos urbano como trabalho, lazer e outros serviços públicos (EASTERLING, 2014). Se nos debruçarmos nas regiões acamadas pela COVID-19 como a cidade de Guayaquil, a retórica justifica como a falência imunológica acelera o surto (ALTMANN; POLO; KING; MALDONADO, 2021): como metástase, a epidemia amplifica e catalisa o extermínio naturalizando a propagação das doenças. Enfermidades superadas como pólio, varíola, peste e ebola começam a ser tornar ameaças pela falta de infraestrutura e a propagação de múltiplos eventos de crise fragiliza ainda mais o nível de organização da região mesmo aqueles que, com capacidades de defesa, notoriamente foram desregularizados pelas políticas de austeridade liberais (PECK, 2015) junto aos interesses escusos da concentração de renda das elites.
Tal estratégia de terra arrasada constrói urbanismos mínimos ou inexistentes ligados à desigualdade e na indisponibilidade infraestrutural de periféricos, favelados ou corpos cujo acesso aos sistemas de saúde e saneamento impedem que se protejam de doenças. Essa visão é tão urgente quanto as próprias intervenções antrópicas que funcionam timidamente frente à mudança climática iminente e a crise sistêmica do capitalismo (que sabemos serem piores do que terremotos, tsunamis e furacões dos filmes e da teoria do pós-traumatismo de Lahoud). A sobrevivência é uma realidade porque não conseguimos dimensão da dificuldade de todos os sujeitos e para o sujeito, privado de toda e qualquer estrutura para comer ou se ter autocuidado. Isso, na prática, conclui o que Keller Easterling traz ao conceituar o espaço infraestrutural: o espaço que deve suportar a existência de algo – seja ele visível ou não (2014).
Aqueles que passam pelos traumas das epidemias sabem o suficiente para serem sensíveis às políticas de descasos com a morte (BEIGUELMAN, 2021). Falta saneamento, tanto quanto o zoneamento repressivo e desinformacional criminalizam corpos acamados não pela pandemia em si, mas pelo apagamento de suas importâncias na cidade – sendo relegados à terem uma expectativa de vida e mobilidade social exponencialmente inferior às áreas com maior infraestrutura. Essa forma política de controle pela pandemia é percebida como sintoma do qual Mbembe chama de “necropolítica” – sumariamente a instituição legal do extermínio (MBEMBE, 2018). É um tipo de urbanismo militar sobre a própria população (GRAHAM, 2013), algo que Grégoire Chamayou compreende ao perceber comportamentos acompanhados pelas mesmas movimentações de controle de “ordem pública” que vemos nos ambientes de livre extermínio.
“A guerra é uma dessas raras atividades em que se pode matar sem crime. Ela se apresenta, e é fundamentalmente isso que significa essa palavra no plano normativo: como um momento em que, sob certas condições, o homicídio é descriminalizado. A um combatente que mata respeitando as cláusulas do jus in bello é concedida imunidade legal. Mas há uma questão fundamental: em nome de que princípio ou de que metaprincípio o direito dos conflitos armados pode descriminalizar o homicídio? Sobre que base normativa pode se fundamentar essa suspensão da proibição de matar?” (CHAMAYOU, 2013)
Não se trata de alguma dronificação apenas, isto é, um distanciamento unilateral das estratégias de defesa e extermínio das nações, mas um distanciamento também dos problemas que acometem a cidade – deixando populações desamparadas e desprotegidas com a ausência de qualquer suporte infraestrutural possível para sobrevivência. Esse tipo de chacina legal é uma política construída do aparelhamento do estado mínimo sobre uma tecnologia remota, um extermínio remoto remasterizado, típico de um planejamento distante da cidade. Isso suprime o sujeito ao escárnio capitalista, sendo ele só notado quando é mapeado como ameaça (HAN, 2020; WEIZMAN, 2016). A materialidade das cidades é constituída num efeito expressivo de controle populacional, numa estratégica “vertical” que prioriza ainda mais as hierarquias de atenção e controle em situações endêmicas, como a preferência de bairros mais ricos e ações mais expressivas de fiscalização sanitária.
“Para Weizman, essas ações constituem ‘a política da verticalidade’. [...] Sob um regime de soberania vertical, a ocupação colonial opera por meio de pontes e tuneis, em uma separação entre espaço aéreo e terrestre. O próprio chão é dividido entre superfície e subsolo. [...] Do ponto de vista da infraestrutura, uma forma fragmentária de ocupação colonial se caracteriza por uma rede de estradas de rápida circulação, pontes e tuneis que se intercruzam na tentativa de manter o princípio da exclusividade recíproca de Fanon” (MBEMBE, 2018. p. 44-48).
As infraestruturas nos espaços mais abastados, dotados com mais água potável, esgoto tratado, luz e telecomunicação tanto em Dharavi em Mumbai ou o Complexo da Maré no Rio, não pode coadjuvar a saúde como uma via expressa, quadra ou parque público. Infelizmente o campo do urbanismo nos países que sofrem com as epidemias e pandemias, todos colonizados por países no séc. XX e XXI (com a sofisticação do capitalismo financeiro derivativo) são reféns da repetição das políticas públicas mínimas e parciais tornando as requalificações dos espaços públicos uma atitude distante – se não impossível. A não-infraestruturação das residências em favelas e assentamentos precários como acampamentos de refugiados é fruto disso, como se as ações de individuação e a subjetivação não existissem na medida em que o poder não precisa estar fisicamente ali (FOUCAULT, 1999).
Para o distanciamento físico de conflitos como a pandemia existe uma larga tecnologia que é a mesma das forças de monitoramento como satélites, georreferenciamento e ações de propagação quase climática como os índice e as probabilidades de contaminação à disposição de cidades como Nova York, Amsterdã e as cidades chinesas como Pequim, Wuhan e Shangai. Estas ações são centralizadas pelo estado e os serviços de saúde, tais como estratégias policiais das forças de segurança pública, e se tornam eficientes quando as ações dos agentes de saúde são dedicadas à integração entre frente de combate à pandemia junto a salvaguarda financeira de regiões afetadas pelos surtos (CASH, PATEL, 2020).
Vide as teorizações recentes sobre a pandemia de Badiou a Zizek (2020) a luta frontal contra o sistema liberal em tempos pandêmicos é mais um caso vencido se considerarmos esta força das estratégias de policiamento remoto. E o combate não se dá no monitoramento em sim, mas pelo que se faz – parcialmente – acerca dessa vigilância que é seletivo. O embate dessa estruturação é efetivo porque as tecnologias digitais são mais “precisas” e menos custosas de rastrear padrões de comportamento social do que as infraestruturas de saneamento e saúde, se evitando a focalização das manutenções ou construções e empreendimentos de longo prazo. Isso estimula a violência do descaso (GRAHAM, 2013) onde falibilidade explica o sucesso da do controle remoto: a substituição do urbanismo para uma política de ferramentas como smart cities (RATTI; HAWELKA; SITKO; BEINAT; SOBOLEVSKY; KAZAKOPOULOS; 2017) e de controle de danos, cujo rastreamento georreferenciado é uma párea perfeitos do planejamento urbano.
“Ao que parece a big data é mais eficaz para combater o vírus do que os absurdos fechamentos de fronteiras que estão sendo feitos nesses momentos na Europa. Graças à proteção de dados, entretanto, não é possível na Europa um combate digital do vírus comparável ao asiático. Os fornecedores chineses de telefonia celular e de Internet compartilham os dados sensíveis de seus clientes com os serviços de segurança e com os ministérios de saúde. O Estado sabe, portanto, onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que procuro, em que penso, o que como, o que compro, aonde me dirijo. É possível que no futuro o Estado controle também a temperatura corporal, o peso, o nível de açúcar no sangue etc. Uma biopolítica digital que acompanha a psicopolítica digital que controla ativamente as pessoas” (HAN, 2020).
De fato, a smart city ratifica a obsolescência do urbanismo ao substituir as tecnologias a construção civil sem subverter a cidade. A pandemia sensibiliza uma reflexão sobre esse direito infraestrutural como constituição de vida ante à normalização da morte. Intervenções precisam ser feitas não só por possibilitar a inexistência da intervenção material, mas também por denotar uma falta de espaço no urbanismo enquanto prática supraestrutural, masterplans ou abstratos Planos Diretores (PD). Observarmos isso na falta de coordenação da vacinação ou no lockdowns difuso e pouco assessorado em vários países mostra um Estado que não existe pela sociedade – e sim pela concentração de renda de grupos favorecidos.
Precisamos entender também que uma epidemia é provocada por um fluxo intenso de informação de vírus e outros patógenos que, face à imunidade de uma população, se perpetua e causa danos àquela sociedade. A questão colocada por essa condição informacional, feita hoje pela supressão material do urbanismo, foi que o controle da pandemia imprime representações, em maior grau, na precarização da cidade. As tecnologias podem potencializar essas condições na medida que elas aceleram as velocidades de transformação, mesmo que de forma a dissipar a materialidade para um escopo virtualizado das infraestruturas (e da falta delas).
“Na padronização das sepulturas, rigidamente organizadas, instaura-se mais que uma tradução visual da escala quantitativa das mortes. Essas sepulturas têm, é evidente, classe definida. O chão de terra, as covas rasas, os caixões sem verniz ou adorno reúnem índices básicos da inserção social das centenas de corpos que não aparecem nas fotos. E é justamente na sua invisibilidade que reside a força enunciativa dessas imagens. É o ocultamento que revela as dinâmicas de exclusão e violência a que esses mesmos corpos são submetidos diariamente” (BEIGUELMAN, 2021).
Para Han tais fenômenos de excesso de desempenho tecnológico podem ser tóxicos na medida que nessas relações reproduzem, espacial e politicamente, modos de vida de um século que não existe mais (HAN, 2015). Essas condições surgem no paradigma de cidade ainda em construção no combate à teoria hegemônica da austeridade que James Peck avalia (2015), onde a cidade já construída é vida como custo e relegada às empreiteiras e especulação imobiliária que reforçam a corrupção presente em seus empreendimentos. Assim, as cidades são reflexos disso pois são espaços onde se manifestam espacialmente traumas longos como pandemias e pobrezas extremas, principalmente porque nesses espaços acontecem as conexões sociais onde o escopo de arquitetos não chega a se tornar fatorial. A questão que permanece, contudo, é como transformamos o projeto como infraestruturação apriori, isto é, tornar a infraestrutura parte da representação e da estética diante da violência imagética das valas a céu aberto, dos cemitérios improvisados e dos sepultamentos em massa assistidos em tempo real.
Quando a pesquisadora Gisele Beiguelman diz sobre o choque de ditar as condições de reimaginar a infraestrutura da cidade ante à banalização da morte pelas políticas de estado, ela tangencia o que o epidemiologista Dirk Brockmann demonstra (2011) sobre controlar a velocidade (e a mobilidade) da metrópole pelo seu fator propagador que, simplesmente, corrobora com a necessidade do estado de atenção preventiva que uma cidade pode ter para com a saúde de seus habitantes. O maior exemplo dessa relação seja Hong Kong ter mais casos de COVID-19 do que a capital chinesa Pequim (JOHNS HOPKINS HOSPITAL, 2010) ou as regiões de rápido tráfego informacional como centros cosmopolitas aumentam também a velocidade de contágio, sendo tais espaços potencialmente mortais também.
Se para os epidemiologistas as ações de contágio são condições estratificadas ao longo do território, a periferia metropolitana é o exemplo de como negligência e falta de infraestrutura transforma o espaço num propagador de extermínio, violência que justifica as intervenções ostensivas – que pouco dão condições da cidade de evitar que epidemias – que policiam sem trazer condições de subsistência de pessoas periféricas ao sistema desigual contemporâneo. Contraditoriamente, a infraestrutura também dá oportunidade à manipulação, ao distanciar o controle e comunicação da intervenção material, as novas tecnologias se tornam justificativas de um urbanismo frio, distante, que esconde o trauma e pouco faz com que novos traumas sejam evitados. A infraestrutura é fundamental nessa prevenção pois, sem condições próprias, pessoas se tornam aos de um sistema de morte-sobrevida, tão comum à precarização advogada pelo estado e suficiente para prolongar os traumas que epidemias geram. Cidades na Índia, Brasil e África do Sul são apenas partes do trauma muito maior – a desigualdade das condições de subsistência e vida causadas por séculos de desigualdade, que ratifica a exposição violenta das ações do estado. Superar este desafio seria constituir o que Stan Allen e outros autores denotam ser o objeto da infraestruturação da cidade, uma plataforma de atualização capaz de subjetivar e dar qualidade e saúde à cidade.
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