10 Dezembro 2018
Confrontados pelo ativismo da década de 1970 e as exigências éticas dos consumidores, os pensadores liberais e líderes empresariais desenvolveram manuais de gestão e de teoria política para defender o capitalismo contestado. Ao dissecar esses discursos, o filósofo elabora uma brilhante trajetória do liberalismo autoritário.
A entrevista é de Sonya Faure, publicada por Libération, 09-11-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em Theorie du drone (A Teoria do Drone), publicado há cinco anos pela editora La Fabrique, o filósofo Grégoire Chamayou se debruçou sobre as questões éticas dessa nova arma de guerra. Com La Société ingouvernable, une généalogie du libéralisme autoritaire (A Sociedade ingovernável, uma genealogia do liberalismo autoritário, tradução livre), também publicado por La Fabrique, ele se debruça novamente sobre a construção da saga do neoliberalismo “pelo alto”, do ponto de vista daqueles que defenderam os interesses do mundo dos negócios, nos Estados Unidos, a partir dos anos 1970: dirigentes de empresas, lobistas, teóricos como Milton Friedman e Friedrich Hayek...
Chamayou analisa as entrevistas destes, os manuais de administração dos autores, as opiniões das assembleias gerais, os textos do Prêmio Nobel, como as histórias de como quebrar os sindicatos... “Uma literatura cinza”, diz ele, “que não está nas livrarias. As zonas cinzas, também, dos discursos dos economistas. Esses textos são diferentes ao considerá-los como elementos de um mesmo conjunto de práticas”.
Ao fim do brilhante panorama, a “Sociedade ingovernável” destaca uma constante: o neoliberalismo, no qual chegamos, não tem nada de natural ou de puro. É um sistema instável que é construído em várias direções, de maneira pragmática, em reação às múltiplas crises de uma sociedade jamais totalmente “governável”.
Politicamente autoritários e economicamente liberais, os governos de Trump ou de Orbán nos parecem essas aberrações. Você diz o contrário, que eles não têm nada de contraditórios. Por quê?
Frequentemente temos a falsa ideia do liberalismo como “fobia do Estado”, antiestatismo unilateral. A atualidade demonstra o inverso, mais uma vez que o liberalismo econômico e o autoritarismo político podem se unir: o conselheiro econômico de Bolsonaro, Paulo Guedes, é um “Chicago boy”, um ultraliberal formado na Escola de Chicago, a que ensinou o Chile de Pinochet. O conceito de “liberalismo autoritário” foi empregado em 1933 por um jurista antifascista, Hermann Heller, sobre um discurso de Carl Schmitt diante de uma assembleia de patrões alemães. Schmmit defendia um Estado extremamente forte ante as reivindicações sociais, mas renunciando a sua autoridade na matéria econômica. “Um Estado forte para uma economia sã”, resumia ele.
Cinquenta anos mais tarde, em plena ditadura de Pinochet, o teórico neoliberal Friedrich Hayek, que leu muito Carl Schmitt, confiou a um jornal chileno: “Pessoalmente, eu prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”. Mas o liberalismo autoritário tem múltiplas variantes. Thatcher também visava “um Estado forte para uma economia livre”. Na prática, ela supõe, em graus diversos, a marginalização da esfera parlamentar, restrição das liberdades sindicais, erodir as garantias judiciárias... Ao lado do fortalecimento do Estado, limitando, de maneira paradoxal, o campo de intervenção. Esse é o conceito de liberalismo autoritário: falível com os fortes e forte com os fracos.
Você faz remontar essa forma retorcida do liberalismo dos anos 1970, quando o mundo dos negócios deve reagir a uma série de crises que ameaçam o sistema...
Em meados dos anos 1970, pensamos assistir a uma crise de governabilidade. De um relatório da Comissão Trilateral [1], o neoconservador Samuel Huntington se preocupou com uma “escalada democrática”.
À esquerda, Michel Foucault escreveu que todos os processos que conduziram esses homens estão postos em questionamento. Não só estamos nos revoltando em todos os lugares, mas as técnicas do governo estão em crise. A providência do Estado, que deveria ser um efeito pacificador, é uma pólvora. Com o quase pleno emprego, os trabalhadores estão em um nível de força favorável.
Os ativistas colocam em causa as práticas das multinacionais de que o Estado não tem controle... os intelectuais conservadores resignam-se: “Ele vai falhar se intervir”. A “mão invisível” não arrumou os problemas sozinha...
Nesse livro, eu estudei como essas estratégias são elaboradas, isso o que não vemos dizer que fazem, alguma coisa como um “comitê central da classe capitalista” que puxaria as cordas. Ao contrário, o que se vê nos documentos – nos artigos dos economistas, mas também discursos de CEOs, guias de administração... – , são formulações contraditórias, de reações pragmáticas a cada conflito que surgiu. Um pensamento que procura preencher as lacunas.
Como o mundo empresarial reage com os questionamentos às companhias que emergem da sociedade civil?
A administração está habituada a gerir conflitos com salários. Eles devem aprender a responder aos ataques externos. Em 1970, o ativista da Nova Esquerda Staughton Lynd, mobilizador da oposição à guerra do Vietnã, colocou esta questão: por que continuamos manifestando em Washington como se estivesse ocorrendo lá a guerra do Vietnam? Aquele era um produto de um complexo militar-industrial, ele dizia, é necessário atacar as grandes empresas de armamento, invadir as assembleias gerais de acionistas. A gestão dessas empresas, a princípio, é fraca: guias práticos, escritos para os CEOs, aconselhando que eles fiquem frios em caso de excessos, montem sessões de treinamento onde os funcionários desempenhem o papel de ativistas e submetam os líderes a todos os tipos de ultraje. "Foi um dos testes mais difíceis para o CEO", disse um executivo sênior em um dos artigos que estudei. E provavelmente um momento agradável para os assalariados.
A Nestlé, confrontada, de 1977 a 1984, com um boicote internacional que a acusava de “matar bebês” com seu leite infantil vendido nos países do terceiro mundo, optou rapidamente por uma outra postura, qual?
A multinacional recrutou um conselheiro de relações públicas vindo da inteligência militar, Rafael Pagan. A diferença entre os ativistas e você, disse ele à Nestlé, é que os ativistas sabem o que estão fazendo na política. Com sua unidade para crises, Pagan contou com o pensamento de Clausewitz: privar o oponente de sua força moral. Ele classifica os militantes em vários perfis: devemos isolar os "radicais", com os quais não há nada a fazer, reeducar os "idealistas", sinceros, mas crédulos. A principal tática psicológica é colocá-los em desacordo, para mostrar que, mesmo que eles acreditem que estão defendendo uma causa justa, prejudicam outros grupos. Quanto aos "realistas", é fácil cooptá-los, oferecer um acordo de fama ou dinheiro.
Os anos 80 viram o surgimento de discursos sobre a "responsabilidade social" das empresas. O diálogo se torna uma arma no arsenal das empresas. Por quê?
Isso não faz parte da história oficial da "responsabilidade social corporativa", mas uma das primeiras publicações sobre o assunto foi patrocinada nos Estados Unidos por Edward Bernays, autor da famosa Propaganda. Seu modelo – fábrica de consentimento de maneira vertical para um público maleável, encontrou seus limites. É claro que continuou a anunciar, mas teve que recorrer a táticas mais refinadas. É o louvor de um novo ídolo: a comunicação dialógica, que se opõe à manipulação. Louvamos a "coprodução de sentido", a "comunicação ética", a "empatia entre as partes interessadas" ... Um discurso pseudofilosófico que mascara uma estratégia mais ofensiva. Quando Pagan fala com os ativistas críticos da Nestlé, não se trata de negociar, é um truque. O diálogo priva os ativistas de um dos seus recursos mais preciosos, a divulgação do conflito, uma vez que deve ser conduzido a portas fechadas. Esgota o adversário em conversas intermináveis e, ao estabelecer o consenso como uma norma absoluta, permite desqualificar aqueles que recusam o diálogo como irresponsáveis.
Paralelamente a essas táticas pragmáticas postas em prática pelas empresas, os grandes teóricos do neoliberalismo liderarão uma contraofensiva intelectual para "despolitizar" a empresa a fim de escapar das críticas dos ativistas.
Na década de 1960, o pensamento "gerencialista" admitia que a firma era um "governo privado", um lugar de poder, que precisa tentar se legitimar: é particularmente o papel dos discursos sobre a "responsabilidade social" das empresas ou o "gerencialismo ético". Mas a partir dos anos 70 e 80, os teóricos neoliberais considerarão que é muito perigoso reconhecer esse papel de poder e de tentar justificá-los. Este é o caso de Milton Friedman, que critica o nascimento do "greenwashing" [2]: "Poucas coisas levantam meu estômago mais do que assistir a esses comerciais de TV que nos fazem acreditar que sua única razão de ser é a preservação do meio ambiente”.
Para esses economistas, pelo contrário, deve se inventar uma doutrina da empresa que a despolitiza. Para fazer isso na década de 70, os pensadores das "novas teorias sobre a empresa" vão tentar desmanchar a empresa, negar as relações de poder que as constituem e apresentá-las como uma ficção legal, um nexo simples de contratos. Hoje, nos livros de economia, essas teses são apresentadas como doutrinas neutras. Seus autores, no entanto, explicitamente as projetaram como armas intelectuais para a defesa de um capitalismo contestado.
Depois dos trabalhadores, depois dos ativistas, os neoliberais atacam o próprio estado, e tornam-se "ingovernáveis". Como eles estão fazendo isso?
Diante da inflação de demandas, vimos o que Hayek chama de "crise de governança aguda" do Estado. Ele regula, ele intervém ... Como fazer para reduzir as demandas sociais, o excesso de democracia? Economistas da University of St. Andrews, na Escócia, propõem uma nova estratégia: a micropolítica da privatização. Vamos parar de nos concentrar na batalha das ideias, eles dizem: conquistar corações e mentes não é suficiente para mudar práticas. É o oposto: você tem que mudar os comportamentos passo a passo, e o resto seguirá gradualmente. Abrir progressivamente os serviços públicos à concorrência, ao invés de privatizar abruptamente, permite despolitizar a demanda: enquanto os usuários insatisfeitos se voltam contra o poder público, os clientes insatisfeitos trocam de loja. Uma vez que a liberalização tenha ocorrido, são os próprios indivíduos, através de suas microescolhas, de consumidores, que se tornam os motores da mudança. O líder dessa corrente, Madsen Pirie, cita o exemplo de desregulamentação, feita por uma Thatcher, recém-eleita em 1980, do transporte interurbano dos ônibus – primeiro privatizou as ferrovias britânicas.
Seu livro aborda as empresas a partir da Filosofia. Por que você diz que essa disciplina tenta muito raramente abordar esse objeto?
Na Filosofia temos teorias de soberania política que remontam ao século XVII, mas poucos tratados sobre a empresa. Quando a Filosofia integra a questão com seus ensinamentos, é muito frequente aceitar os discursos indigentes produzidos nas escolas de negócios. É tempo de ir ao contrário, de desenvolver filosofias críticas da empresa. Esse livro é um trabalho nesse sentido, um levantamento das categorias centrais do pensamento econômico e gerencial dominante. A crise de governabilidade respondeu a um contra movimento, uma grande reação onde foram inventadas as novas artes de governar, ainda ativas hoje. Embora esses processos de poder sejam constantemente aplicados contra nós, não conhecemos realmente sua origem e suas fontes fundamentais. No entanto, acredito que abrir o jogo, expondo suas estratégias, pode ajudar-nos a combatê-los melhor. O que foi feito, podemos desfazer. Mas é preciso conhecer a história.
[1] Comissão Trilateral foi criada em 1973, reuniu centenas de personalidade do mundo dos negócios e da política, favoráveis à globalização econômica.
[2] Greenwashing é a apropriação de medidas ambientalistas pelas empresas do ramo privado no campo do marketing.
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“Para se defender, o neoliberalismo faz a democracia se esgotar”. Entrevista com Grégoire Chamayou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU