Por: Jonas | 20 Mai 2015
“É preciso reconstruir uma alternativa a partir da batalha ideológica, criticar os termos que nos são impostos e propor outra linguagem, ao invés de combater no terreno do adversário”. Para Eric Fassin (foto), sociólogo e professar da Universidade de Paris 8, o adversário é o neoliberalismo hegemônico na Europa, entendido não apenas como um regime político e econômico, mas também como um modelo que produz sujeitos e obtura alternativas. Fassin esteve em Buenos Aires, convidado pelo Centro Franco-Argentino da Universidade de Buenos Aires. Seus últimos livros são “Esquerda: o futuro de uma desilusão” e, em coautoria, “Ciganos e residentes. Uma política municipal da raça”.
Fonte: http://goo.gl/YirLLu |
A entrevista é de Javier Lorca, publicada por Página/12, 18-05-2015. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Por que em seu último livro reflete sobre a esquerda como “o futuro de uma desilusão”?
Esse livro se inscreve, em primeiro lugar, na atualidade da França: a esquerda havia se mobilizado contra a direita encarnada em Nicolas Sarkozy, cuja presidência (2007-2012) conjugava políticas neoliberais e xenófobas. François Hollande foi eleito, em 2012, com o slogan “a mudança é agora”. Porém, as políticas não mudaram nem para a economia e nem para a imigração. Desde então, houve um processo de desmobilização da esquerda: é a vitória póstuma de Margaret Thatcher. O mote da direita “não há alternativa” se tornou um lema para os socialistas no governo. A desmobilização gera desmoralização: como acreditar na democracia se uma mudança de presidente não muda nada? Para alguns, isto funciona como um impulso para se retirar à vida privada; para outros, como a tentação antidemocrática com a extrema-direita; para outros, em particular para os militantes, a dificuldade para pensar politicamente na impotência chega, às vezes, na depressão. É para evitar isto que falo não apenas de desilusão, mas também de futuro: é preciso reconstruir uma alternativa a partir da batalha ideológica, criticar os termos que nos são impostos (como o “realismo”, tantas vezes desmentido pela realidade...) e propor outra linguagem, ao invés de combater no terreno do adversário.
É um diagnóstico restrito ao seu país ou se estende a Europa em seu conjunto?
Não se trata somente da França. Quando o primeiro-ministro Manuel Valls adverte que “a esquerda pode morrer”, sabemos que também é o caso da Itália. Toda a Europa está ameaçada por esta desilusão. É um efeito do neoliberalismo, independente do partido que esteja no poder. Se qualquer oposição se torna difícil, é porque o neoliberalismo ganha os corações e transforma nossa relação com o mundo. É um regime que não apenas impõe restrições internas contra a nossa vontade, como também contribui para nos definir como sujeitos, a partir de dentro.
A subjetivação neoliberal nos introduz, queiramos ou não, em sua lógica. Assim, procuramos aumentar nosso valor, não somente nosso capital econômico, como também todo esse “portfólio” – segundo o termo do filósofo Michel Feher – que nós valorizamos: nosso capital escolar, relacional, físico, etc. Aceitamos o jogo. Sob essas condições, como continuar pensando que “outro mundo é possível”?. Portanto, não é surpreendente que se desvaneça a fronteira entre direita e esquerda nos partidos de governo. Ainda assim, existe muita resignação nesse aparente consentimento que parece inevitável.
Como se considera nessa análise o avanço de forças de esquerda em países como Grécia e Espanha? Por que o surgimento de tais tipos de movimentos e agrupamentos não se replicou em outros países, como a França?
A Grécia oferece, hoje, uma esperança para qualquer pessoa que resista ao desespero. E talvez, amanhã, a Espanha... Resta saber se Podemos conseguirá reproduzir o êxito do Syriza, e se a batalha que a União Europeia trava contra o governo de Tsipras acabará como aquela fábula da panela de barro e da panela de ferro, ou como a história de Davi contra Golias. Por que na França a direitização da paisagem política, que leva a direita a correr para a extrema-direita e o governo socialista à direita, não abriu um espaço para a esquerda? Por que “a esquerda da esquerda” não se beneficia com esta deriva direitista? Minha hipótese é que se a hegemonia dos partidos no governo impôs seu discurso econômico, a Frente Nacional (Marine Le Pen) conseguiu impor o discurso da identidade nacional, um discurso xenófobo e islamófobo. A “esquerda da esquerda”, que rejeita o discurso econômico sem se unir ao discurso da identidade nacional, torna-se assim inaudível ou quase. Não obstante, a comparação com a Grécia e Espanha leva a me perguntar: não é a extrema dureza da crise e das medidas de austeridade adotadas nesses dois países o que força uma reação, ao passo que na França a degradação mais progressiva e menos brutal das condições de vida adormece as tentativas de protesto? Ao invés de dizer que não temos nada mais a perder, e que, portanto, é preciso lutar, procuramos salvar o que ainda subsiste. Assim, a solidariedade cede lugar ao egoísmo.
Que relação observa entre a hegemonia neoliberal na Europa, as políticas de austeridade e esse discurso da xenofobia e o racismo?
A Europa fechada como uma fortaleza é a Europa neoliberal. A livre circulação econômica tem como seu revés o fechamento das fronteiras e também, para além da xenofobia, o racismo. Com efeito, a imigração é apresentada como um problema, mas a suspeita se estende àqueles que parecem de origem imigrante, ainda que tenham nascido na Europa. Por que ocorre esta racialização da Europa? Os dirigentes europeus afirmam que a xenofobia de Estado apenas corresponderia a uma demanda popular, da qual a ascensão do populismo seria um sintoma.
Na realidade, é preciso inverter a perspectiva. A xenofobia, a partir de cima, não reflete a xenofobia de baixo, mas a promove e a legitima. E o mesmo acontece com o racismo. Vejamos dois exemplos. Em 2005, um referendo rejeita na França (e depois nos Países Baixos) o tratado constitucional europeu. Ao invés de reconhecê-lo como um repúdio às políticas neoliberais, Sarkozy culpa pelo resultado a imigração. Em 2012, recém-eleito, Hollande adota sem debate o tratado de estabilização europeia; Valls desvia a atenção midiática para a “questão cigana”, como se o “verdadeiro problema” fosse os 18.000 imigrantes pobres... Todo o discurso sobre “a inseguridade cultural” vem, desse modo, responder ao descontentamento popular, em termo populistas e identitários, para evitar colocar em questão as políticas de austeridade.
Ao que você se refere quando destaca que “a lógica de classe foi substituída por uma lógica racista”?
É claro, a questão da raça não substituiu a questão social. Contudo, o neoliberalismo propõe um jogo de oposição, onde a primeira serve para distrair a atenção da segunda. Opõe “classes populares” a “minorias raciais”, como se os integrantes das classes populares fossem uniformemente brancos, e como se os integrantes das minorias raciais não fizessem parte do povo! Esta racialização neoliberal permite a cada um se sentir valorizado. Negar aos outros qualquer valor e, por comparação, convencer-se de que se vale algo. Assim, o racismo também pode se dar entre minorias raciais; por exemplo, os negros contra os ciganos. A resposta a esta instrumentalização, por parte da esquerda e por parte das ciências sociais, não pode negar a discriminação racial e a racialização resultante. Um universalismo daltônico, cego à cor, aparece, com efeito, como uma negação desta realidade, desarmando assim as minorias raciais. Não é suficiente para voltar à classe social “em última instância”. Certamente, na França, o racismo aponta, sobretudo, para os negros e os árabes das classes populares; mas, aqueles de classe média são igualmente vítimas de discriminação. Há uma lógica propriamente racial e, ao mesmo tempo, de classe. Essa é a complexidade que precisamos analisar, medir como esta racialização naturaliza as hierarquias sociais, que finalmente achamos naturais...
Já passados quatro meses do atentado, quais foram, na sua avaliação, as consequências políticas do ataque a Charlie Hebdo?
Quando o terrorismo apontou contra a liberdade de imprensa e os judeus como tais, a reação democrática se expressou na marcha do dia 11 de janeiro. Porém, a participação de ditadores que reprimem a liberdade de expressão trouxe uma sensação de hipocrisia. Por outro lado, a ausência relativa de minorias raciais nas ruas trouxe o medo de que as divisões estivessem se ampliando novamente. De fato, os muçulmanos franceses não foram convidados a tomar distância dos terroristas, como se tivessem que se justificar? De qualquer modo, os atos islamofóbicos se multiplicaram, sem provocar surpresa.
O que acontece hoje? Em primeiro lugar, o Parlamento está a ponto de aprovar um Patriot Act à francesa. Com o pretexto de proteger as liberdades, nós as colocamos em perigo. Depois, quando o governo anuncia um plano de luta contra o racismo e o antissemitismo, temos a impressão de que os culpados seriam... os racializados. Contudo, as pesquisas mostram que isso é falso. Quem se beneficia, então, é a Frente Nacional.
Por fim, uma coisa é certa: a política de austeridade continua e as reformas neoliberais prosseguem. E isso também beneficia a extrema-direita. Marine Le Pen repete sem parar: direita e esquerda são a mesma coisa!. A responsabilidade dos governantes socialistas deveria ser a de demonstrar que ela está equivocada. Porém, hoje, infelizmente, dão-lhe razão.
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“É a vitória póstuma de Thatcher” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU