Letra morta. Para vencer as agressões do bolsonarismo, é preciso retomar nosso projeto de educação

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

07 Fevereiro 2022

 

"Diante do modus operandi bolsonarista, mais do que reagir às agressões, precisaremos responder afirmando o nosso projeto de educação. Como ensinou Paulo Freire, é imprescindível fazer a denúncia. Contudo, isso não basta. É preciso também fazer o anúncio. Em outras palavras, afirmar a nossa existência como educadores e o nosso projeto de educação é tão essencial quanto resistir", escreve Daniel Cara, para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

 

O artigo que escolhemos para abrir este ano eleitoral de 2022 na Coluna “Rumo a Assis” já tem pouco mais de dois anos (foi publicado na revista Carta Capital em 25/dez/2019, pp. 20-21), mas segue totalmente atual e necessário.

 

Já sabemos que, por trás do bolsonarismo e de tudo o que representa, está a aposta contínua das elites econômicas brasileiras, sempre subservientes ao capital internacional (hoje, mormente o financeiro), no neo- (ou mesmo ultra-) liberalismo.

 

Em contrapartida, no último 21 de setembro (2021), celebramos o centenário de Paulo Freire. E, no último dia 22 de janeiro (2022), o de Leonal Brizola. Duas figuras brasileiras imprescindíveis na luta constante por uma educação emancipadora da pessoa e transformadora da sociedade.

 

Assim, nesse contexto, e pensando efetivamente uma economia que tenha a alma de que fala o Papa Francisco em sua carta de primeiro de maio de 2019, “afirmar a nossa existência como educadores e o nosso projeto de educação é tão essencial quanto resistir”, como afirma o autor.

 

Daniel Cara é cientista político e educador; mestre em Ciência Política - USP e doutor em Educação - USP; coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação; membro da Articulação Brasileira e pela Economia de Francisco e Clara.

 

Eis o artigo.

 

A maior parte dos exercícios de balanço do primeiro ano de Jair Messias Bolsonaro na Presidência da República recorre à análise das medidas de governo. É um esforço válido, mas acredito que, antes, é preciso desvendar a lógica do que, para muitos, parece devaneio e loucura. Sob o bolsonarismo, poucas áreas receberam tantos ataques quanto a educação. As políticas educacionais congruentes com a Constituição de 1988 transformaram-se em uma das principais vítimas do ultraliberalismo obscurantista que governa o País.

 

O ultraliberalismo obscurantista é a síntese programática da aliança entre ultraliberais e ultrarreacionários. É essa aliança que tem sustentado os dois ocupantes do Palácio do Planalto desde o golpe de 2016, que resultou na queda da presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff.

 

Se sob Michel Temer ocorreu a predominância simbólica do ultraliberalismo, no governo de Jair Messias Bolsonaro o domínio discursivo é ultrarreacionário. O resultado é, porém, o mesmo: a desconstrução de políticas públicas dedicadas à consagração dos direitos sociais, sendo essa a principal demanda do ultraliberalismo, além da obsessão ultrarreacionária de agredir violentamente os direitos civis e políticos de maiorias populacionais como mulheres, afrodescendentes e indígenas, bem como os ataques à comunidade LGBTQI+.

 

Grosso modo, o bolsonarismo ataca de modo mais violento a educação por dois motivos: primeiro, é uma área estratégica para estabelecer trincheiras na guerra cultural ultrarreacionária, cujo general mais destacado é o astrólogo Olavo de Carvalho. Segundo, enfraquecer as políticas educacionais facilita o desmonte orçamentário da área, atendendo aos interesses dos aliados ultraliberais. Em síntese, busca-se combater os professores e a pedagogia como estratégia de dominação simbólica e, consequentemente, política.

 

Se for capaz de dar conta do recado, Bolsonaro, além de ganhar terreno, aumentar seu número de seguidores e elevar o moral de sua tropa, ainda presta serviço aos seus aliados ultraliberais – todos eles dedicados a implementar a face mais desumana do neoliberalismo formulado por Friedrich August von Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman, no âmbito da Sociedade Mont Pèlerin.

 

Ocorre que, desgastados e abalados por toda ordem de ataques, professores e estudantes têm menos fôlego para lutar pelo financiamento adequado da educação, fator imprescindível para expandir matrículas e garantir melhores condições de ensino e de aprendizagem nas escolas. Como resultado desse esgotamento, a resistência fica prejudicada, facilitando o projeto de redução do parco (e descumprido) Estado de Bem-Estar Social estabelecido pela Constituição de 1988.

 

Portanto, quando Bolsonaro ou Abraham Weintraub ofendem Paulo Freire, atacam o símbolo maior de um projeto de educação democrático e emancipador, que exige mais recursos orçamentários e é estabelecido pelo protagonismo de educadores e educandos. A pedagogia freireana é, por definição, o melhor contraposto ao ultraliberalismo obscurantista – não surpreende que seja a mais atacada.

 

Diante disso, se for empreendida uma análise fria da visão bolsonarista da educação, é possível desvendar a esfinge. O “Escola sem Partido”, para estabelecer um espaço escolar de domínio do pensamento único e reacionário, opõe os alunos e seus familiares aos professores. A defesa da “educação domiciliar”, que jamais será uma política pública de escala (diante das necessidades econômicas, quase todas as famílias não podem abdicar do seu tempo de trabalho para educar suas crianças e adolescentes em casa), serve para desmoralizar as unidades escolares como espaços públicos e de sociabilidade. As “Escolas CívicoMilitares” têm a função rigorosamente impossível de tentar provar que o autoritarismo é o melhor método educacional do que as Ciências da Educação, especialmente a Pedagogia. As escolas militarizadas vão fracassar, apesar de beneficiadas por mais recursos e lançando mão do treino robotizado para provas. Assim, se todas as medidas bolsonaristas funcionarem, além de corresponder aos anseios ideológicos de seu séquito, enfraquecerão o direito à educação, facilitando o projeto de redução do Estado.

 

O caso dos ataques de Weintraub às universidades federais é emblemático: para justificar cortes de recursos e o estrangulamento orçamentário, o ministro da Educação afirma que os Institutos Federais de Educação Superior são um antro de libertinagem, tentando transformar os espaços da melhor produção científica brasileira em uma espécie de Sodoma e Gomorra. Reitores dos Institutos Federais têm dito que Weintraub é um “ministro da Educação que não gosta de educação”. É uma meia verdade: o que ele não tolera é o projeto educacional democrático, científico e iluminista.

 

A conclusão é que não se trata apenas de um ataque orquestrado à área. É mais correto dizer que estamos sob a emergência de uma tentativa de desconstrução coordenada da educação como direito humano, conforme formulação sistematizada no Brasil a partir do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, passando pelas contribuições de Florestan Fernandes e Paulo Freire, entre outros. Antes de se tornar realidade, querem demolir o projeto de escola pública, gratuita, laica, contemporânea e de qualidade para todas e todos. Não se trata, porém, apenas de um desmonte. Objetivamente, o governo Bolsonaro é o vetor de outro projeto educacional, que planeja uma escola privatizada, pautada no fundamentalismo cristão, autoritária, militarizada e excludente.

Diante do modus operandi bolsonarista, mais do que reagir às agressões, precisaremos responder afirmando o nosso projeto de educação. Como ensinou Paulo Freire, é imprescindível fazer a denúncia. Contudo, isso não basta. É preciso também fazer o anúncio. Em outras palavras, afirmar a nossa existência como educadores e o nosso projeto de educação é tão essencial quanto resistir.

 

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