Sobre diferença e igualdade

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

30 Outubro 2021

 

"As armadilhas da diferença estariam, como sugere Haider, no fato de não vermos a relação existente entre as pautas identitárias e a estrutura social que, como uma placa tectônica, vem por séculos engolindo a força de trabalho, a energia vital e a saúde de quem foi marcado por uma origem social distante dos centros dos quais emanam o poder numa sociedade capitalista. Relação essa que pode ser tanto de cooptação, quanto de oposição radical ao capitalismo, num trabalho de união de cada um dos grupos dominados. Caso dermos ênfase somente na luta pelo reconhecimento jurídico, produziremos a ilusão de vitória, mas nos quadros da linguagem liberal dos direitos individuais e, dessa forma, após uma longa comoção, voltaremos para a solidão de nossas casas e apartamentos. Mas, se percebermos que o que negros, mulheres, gays, mulçumanos, trans, trabalhadores não-assalariados, motoristas de uber, ifood, operários, têm em comum é o fato de serem dominados por uma ordem social que, independente de qual raça ou sexo, irá sempre necessitar de grupos dominados, talvez se possa lutar juntamente pelo fim da dominação de todos os outros futuros dominados que certamente se produzirão. Por isso, o foco na identidade pode ser uma armadilha. Porque, ao contrário da identidade, o capitalismo é flexível, como uma forma de plástico que apenas precise de manter o superior afastado do inferior", escreve Matheus Vital de Oliveira Mendes, para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

 

Matheus Vital de Oliveira Mendes é mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ) e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp.

 

Eis o artigo.

 

O mundo moderno nasce marcado pelo processo de democratização, segundo algumas leituras sociológicas e políticas, dentro das quais podemos citar autores como Charles Tilly (2017), John Dunn (2016) e o velho Alexis de Tocqueville (2009). Apesar de suas diferenças, essa chave de leitura parece ser um paradigma dentro das Ciências Sociais. O mundo moderno, de fato, com todas as suas iniquidades, é dominado pela democracia – ainda que seja apenas de um ponto de vista normativo.

Esse mundo, portanto, desse ponto de vista, caminharia para uma crescente realização da igualdade e redução da desigualdade, o que era a marca de sociedades hierárquicas como as do Antigo Regime na Europa. A modernidade seria a dissolução, o desmanche, de toda uma estrutura social baseada na naturalização da desigualdade. Isto é, as diferenças entre os homens estavam presentes na própria ordem do universo, numa estrutura de cadeias que remontavam, em última instância, passando pelos monarcas, a Deus. Havia uma estrutura hierárquica tanto no universo físico quanto na ordem divina. Esse tipo de sociedade hierárquica é o que está presente nas filosofias políticas clássicas de Aristóteles e Tomás de Aquino, ou em Platão. Tais autores compartilhavam de uma compreensão social de que haviam homens feitos de bronze e homens feitos de ouro e que uma boa Politeia, como em Platão, deveria se basear nas almas de ouro. De outro lado, defendiam também um equilíbrio social entre aristocracia e democracia, acreditando nas vantagens de uma classe média virtuosa como forma de manter essa ordem.

A temática da democracia, isto é, de um processo de aproximação entre o povo e o poder, foi por séculos tratada como um vício, um erro, tendo como contraponto virtuoso as visões baseadas em modelos hierárquicos de organização política como as monarquias ou repúblicas de tipo romano. Até o século XVI e XVII, a democracia era uma ideia perigosa e minoritária (Dunn, 2016, p. 88). Mas, a partir do século XVIII, a democracia começa a deixar o lugar de minoria para se tornar o paradigma, o valor universal de um mundo que começa a surgir. Esse mundo, o mundo moderno, possui por fundamento teórico, e ideal normativo, a ideia de igualdade. Qual a filosofia geral em que se baseia esse mundo?

De forma geral, o mundo moderno enfrenta uma enorme dificuldade de fundamentar juízos, filosofias políticas, éticas e morais, a partir de fundamentos transcendentais. É como se todo o gesto em direção ao divino se direcionasse para o imanente, para o mundo e, cumulativamente, para algo que começa a surgir: a sociedade enquanto esfera não mediada ou controlada pelo Estado. Ao mesmo tempo, na medida em que outros processos, como os de secularização e desencantamento do mundo, também marcam esse período, a ideia de que os homens possuem destinos sociais previamente determinados segundo a qualidade de suas almas, torna-se, no mínimo, contestável e, efetivamente, alheias à constituição do direito europeu. A ideia de que os homens são desiguais por natureza – e aqui ainda não estamos usando natureza de modo naturalista, mas teológico – entra em crise para dar lugar à percepção de que, sendo assim, todos os homens se equivalem. Nesse sentido, torna-se, no plano normativo, mais difícil sustentar um modelo de sociedade baseada na hierarquia com fundamento de tipo teológico. Um modelo de sociedade baseado em estamentos é, de um lado, injustificável a partir dessa nova forma de ver o mundo, e de outro, por não mais criar o bem comum. O mundo moderno, portanto, nasce dessa indignação normativa diante das desigualdades entre os homens de determinada origem social.

 

2.

 

Paralelamente às pretensões normativas da filosofia iluminista europeia, mas ao mesmo tempo marcando toda a vida cultural desse mesmo continente, o processo de constituição do capitalismo como um sistema econômico global se desenrola destruindo as formas de vida comunitárias que se baseavam na propriedade particular da terra cultivada pelos camponeses. O mercado monopoliza a economia a tal ponto que as mesmas formas de relações econômicas e sociais que, durante séculos, se basearam na lógica das contraprestações e da servidão não poderiam mais persistir (Polanyi, 2020). O capitalismo, segundo a análise de Marx (2009), retira o mundo camponês, já dissolvida as relações de tipo feudal, de suas propriedades particulares e terras comunais, ao mesmo tempo em que cria novas condições para a recepção dessa antiga força de trabalho, numa troca da antiga servidão para o reposicionamento do servo, visto agora como homem livre, em condições contratuais de igualdade para com o seu empregador, de forma que caberia à dois iguais a tarefe de negociar, sem intervenção do poder público, o valor do trabalho do primeiro.

Para determinadas leituras, o capitalismo seria conatural à modernidade. O mesmo espírito iluminista que gerara a Revolução Francesa, teria sido o que gerou esse modo de produção. Por exemplo, segundo uma leitura weberiana, o capitalismo seria uma derivação do que se entende como o processo de racionalização, dentro do qual uma de suas formas, a racionalidade instrumental, seria afim a esse modo de produção. Racionalidade, modernidade e capitalismo seriam constitutivos, partindo do embrião de uma ética religiosa desencantada, pragmática. Isto é, que tem nos efeitos de sua ação no mundo, mais especificamente no trabalho, o seu móvel. Entre capitalismo e modernidade, portanto, haveria uma relação de afinidade constitutiva.

Entretanto, se repararmos no grande arcabouço ideológico do que se chama de modernidade, encontramos princípios que entram em contradição com a forma de racionalidade instrumental capitalista e com os seus efeitos. De fato, como conciliar o princípio de universalidade e emancipação humana que foi a marca da Revolução Francesa com um modo de produção que tem por base a exploração do trabalho? Ainda que de um ponto de vista crítico se possa entender essa contradição como derivada de uma ideologia de classe, em si mesmas essas formulações teóricas modernas não criariam uma forma de produção capitalista, ou weberianamente, não seriam uma afinidade eletiva. Como sustenta Ellen Wood (2002), até mesmo a identidade reputada entre burguesia, Revolução Francesa e capitalismo não pode se sustentar quando se olha as verdadeiras posições de classe dessa burguesia, a qual nem mesmo ocupava uma grande posição no comércio e vivia mais como profissionais liberais. Os intelectuais orgânicos e propagadores da ideologia iluminista eram advogados, médicos, funcionários públicos de baixo escalão e intelectuais. A base de sua luta girava em torno do repúdio aos privilégios, da igualdade civil, e da noção de carreiras abertas ao talento e da igualdade de acesso aos postos mais altos do Estado, ou seja, uma luta contra as famílias particulares que monopolizavam tais privilégios. Nesse sentido, pôde se conciliar, na medida em que o próprio Estado Absolutista, como defende Tocqueville, se volta contra a aristocracia afim de anular sua influência de poder intermediário, os interesses da burguesia em postos altos e o interesse de um Estado cada vez mais forte e controlador da sociedade. Então, de um ponto de vista histórico, não se pode fundamentar nem a relação entre a classe que exprimia os ideais iluministas e o capitalismo, nem, também, esses ideais como causa indireta do capitalismo, tendo em vista que eles tiveram estrategicamente, para a burguesia francesa, um outro sentido.

Com efeito, a noção de universalidade, que ocupa uma posição central no iluminismo, funcionou estrategicamente como uma forma de combater, de outro lado, o particularismo que dominava a vida europeia durante a idade média, em suas formas de expressão que podem ser vistas nas instituições dos clãs familiares, da diferenciação, da linhagem pura, do sangue, etc. Ao afirmar valores através de uma chave de compreensão universal, o iluminismo atacava diretamente a filosofia do particularismo, pois queria dizer, por exemplo, que a igualdade defendida não se restringia a um estamento (o que, aliás, já era defendido), mas que ela pertencia a todos os estamentos entre eles mesmos, a todos os que a sociedade francesa da época considerava homens. Assim, a burguesia se alça à posição de possível ocupadora de altos postos públicos, porque não havia nenhuma razão filosófica que poderia justificar o seu impedimento. Mas essa universalidade, no que concerne aos seus efeitos e interesses políticos, não se direcionou, como parece ser a interpretação de Wood, ao encolhimento do Estado, nem a um tipo de sociedade radicalmente nova. Enquanto classe, ela almejava apenas os mesmos direitos a que a aristocracia estava destinada a ter por nascimento.

Contrariamente, quando essa mesma autora olha para a Inglaterra, sociedade já dominada pelo mercado e com um avançado processo de industrialização, onde as bases da sociedade já eram capitalistas, o que ela vê como expressão ideológica do capitalismo inglês “não é o racionalismo cartesiano e o planejamento racional, mas a ‘mão invisível’ da economia política clássica e a filosofia do empirismo britânico (idem, 2002, p.188). Isto é, o descompasso entre o que se considera como modernidade, mundo moderno, é grande e curiosíssimo. Em uma sociedade marcada pela tecnologia, industrialização, transformação física do mundo, urbanização acelerada, não é a racionalização em seu desejo de controle e apreensão do mundo que se torna uma característica do próprio Estado inglês, mas o espontaneísmo, a crença de que o progresso teria a capacidade de gerar a cura para os próprios males gerados pelo abandono “das verdades elementares da Ciência Política e da arte de bem governar” (Polanyi, 2020, p. 87). É também dessa mesma sociedade que vem uma das primeiras repostas críticas à Revolução Francesa, vinda de Edmund Burke. Com efeito, o pai do conservadorismo era completamente avesso à mistura do abstracionismo racionalista com a política, a qual, segundo ele, deveria se restringir ao mundo das percepções imediatas, do senso comum. Para ele, a Revolução Francesa era um grande erro, porque destruía, em prol de uma abstração, toda a estrutura política e social erigida durante milênios e que se baseava na percepção sensível da diferença entre os homens (2004). Porque acabar com isso em prol de uma fôrma que vem, de fora do mundo, uniformizar os homens?

Além dessas ideologias, Wood ressalta a não menos importante ideologia do improvement (p. 189). Mas não o aperfeiçoamento da humanidade como um todo e sim o da propriedade, o que dá muito mais ênfase à tecnologia e sua consequente intervenção produtiva/destrutiva na natureza. As formas ideológicas do capitalismo inglês, portanto, pareciam se direcionar não para o universal, o abstrato, mas para a diferença, para a desigualdade, características que estão presentes nas propriedades particulares dos homens. É nesse sentido que podemos enxergar algumas diferenças entre o projeto normativo da modernidade e o capitalismo, percebendo que não são mutuamente constitutivos, mas que apenas coexistem e muitas vezes entraram em conflito e deveriam ter, talvez, entrado mais.

 

4.

 

Na narrativa tradicional da história da filosofia moderna, ela nasceria com René Descartes e sua dúvida radical sobre a existência, sobre seu eu, em cima do qual teria procedido a investigações metódicas afim de descobrir uma base ontológica estável. O cogito, segundo ele, ao final de suas meditações engenhosas seria essa base. Isto é, a nossa faculdade de cogitar, duvidar, seria o fundamento seguro da existência do eu. Ao lado desse intelectual, outros como Hume, Berkeley e Espinosa, também contribuíram para a formação dessa tradição que era marcada pelo papel da subjetividade humana em temas como as nossas paixões, ou sobre as bases seguras do conhecimento. Com exceção de Espinosa, essa tradição é marcada por uma excessiva ênfase no eu, de forma a constituir a noção de indivíduo como o sujeito, por excelência, não só do conhecimento, mas também da política. Herdeira dessa tradição, o liberalismo partilha dela a noção de que é o indivíduo que cria a sociedade através de um artificial contrato social. O racionalismo clássico, como tendência a pensar apenas no lado literal e objetivo da palavra, rejeitando as contradições como falsidade, foi, portanto, a filosofia do liberalismo. Nesse sentido, era excessivamente difícil pensar uma anterioridade da sociedade ao contrato, tendo em vista que a sociedade, como veio a ser descoberta no século XIX, existiria enquanto algo objetivo e autônomo em relação aos “eus” individuais (numa definição durkheimiana) e, nesse sentido, não poderia ser comprovada racionalmente porque externa ao eu. O único racionalista que apontou a falha do raciocínio contratualista foi, novamente, Espinosa, e o fez usando-se da lógica. De fato, ele se perguntava, como é possível que um contrato social, que depende do acordo entre dois ou mais indivíduos, pode surgir sem que haja previamente esse acordo? Isto é, como é possível o acordo sem sociedade, ou comunidade? (Espinosa, 1973).

O fato é que a centralidade que esse modelo antropológico dá ao eu enquanto recipiente da razão exclui do discurso filosófico e da filosofia política liberal a nada menos importante existência do outro na constituição desse mesmo eu. Levou-se séculos para que o modernismo na literatura, a sociologia, a psicanálise e a filosofia pudessem pensar categorias que fugissem à subjetividade individual. Durante esse período, algumas formas de vida que não compartilhavam desse modelo antropológico foram, consequentemente, alijadas para fora da categoria antropos. Um universalismo racionalista sem a noção de contradição e outro dominou o pensamento euro-americano na figura da equação entre um modelo antropológico e o masculino, euro-americano, patriarcal e capitalista. O patriarca era, invertendo a máxima freudiana, o senhor em sua própria casa. Ou seja, era na casa intimista da família burguesa que repousava o logos na figura do pai.

Esse projeto filosófico, por outro lado, para além de suas investigações epistemológicas, detinha uma visão da liberdade humana, de sua emancipação, marcada pela crítica radical do arbítrio e do segredo de Estado. Como se pode ver na categorização habermasiana da esfera pública burguesa (Habermas, 2014), ela se volta contra o princípio do segredo de Estado, juntamente contra a razão de Estado, defendendo a publicidade. Mas esse projeto de emancipação tem suas incompletudes. Apesar de não poder ser imputado a ele os males do século XX, como querem algumas correntes filosóficas de nosso tempo, o seu encerramento em um circuito europeu delimita a extensão do seu universalismo. Isso fica evidente no caso de Locke que, em seus Dois tratados sobre o governo civil, repudia a escravidão como a instituição mais vil e a justifica com base no direito inalienável de propriedade. Ao erigir um valor universal (a escravidão como vileza suprema), ele a contrapõe à particularidade da propriedade (desde que seja uma propriedade, convertida através da mágica das moedas em propriedade de alguém, ela é legítima). E isso fazia muito sentido, ainda que o próprio Locke fosse acionista da Real Companhia Africana, pois esse discurso, enquanto se movia na esfera hiper-lógica e racional do contrato social, ele se deslocava da menos lógica, mas não menos perceptível, esfera da economia de produção doméstica, dentro da qual se realizava a produção da riqueza da nação. Nesse sentido, esse discurso emancipador pôde conviver muito bem com a propriedade de escravos da Inglaterra, pois se isolava do mundo social (Buck-Morss 2011, p. 135).

Isso também é exemplificado no caso de Hegel, como mostra Buck-Morss (2011). Em seu artigo, cujo objetivo central é mostrar a relação entre a teoria do reconhecimento em Hegel e a Revolução Haitiana, Morss mostra como esse filósofo foi caminhando de uma posição laudatória frente àquele evento, para uma posição final conservadora, orientada por uma visão evolucionista segundo a qual os negros não teriam ainda chegado à idade da liberdade e que, por isso, a escravidão não seria uma instituição de todo maléfica, se vista como uma tutela.


5.

 

Procedendo a um salto cronológico enorme, mas não tão desconexo em termos conceituais, chegamos à nossa época.

As atuais problemáticas em torno da questão da diferença e das políticas identitárias mobilizam o ânimo moral e político dos brasileiros, bem como mobilizaram os norte-americanos durante o século XX. As recentes experiências autoritárias ao norte e ao sul, umas já em vias de dissolução, outras ainda em curso, conseguiram mobilizar tais discursos em uma chave negativa promovendo um tour de force inesperado por aqueles defensores da democracia e do pluralismo. De repente, quando não mais esperávamos, nos vimos tendo que defender e justificar, como se pisássemos em ovos num mundo em que tais assuntos não mais fossem legítimos, temas como o direito de existir e de influenciar a nossa vida cultural de pessoas LGBTQ+, a legitimidade de políticas de ação afirmativa, e, por fim, a necessidade de se pensar a diferença entre os cidadãos de uma sociedade que se propõe, como ideal normativo, a igualdade, visto que tais cidadãos são herdeiros de processos históricos diferentes e entrelaçados numa trama de poder que teve como base o racismo, o patriarcalismo e o horror à perversão sexual . Estranhamente, as novas direitas conseguiram mobilizar, num movimento de arte marcial nipônica, as novas lutas por liberdade a seu favor, recolocando na esfera pública velhos temores, como os de perda de identidade comunitária, derrocada de um princípio patriarcal e, até mesmo, a dissolução de princípios cristãos que foram, segundo essa direita, as bases até mesmo de uma sociedade plurirreligiosa como a brasileira. De modo geral, o diagnóstico é de que a modernidade é um grande erro, de que a humanidade deveria retornar a um mundo bem ordenado e menos caótico.

Contudo, o espanto de um intelectual de esquerda não pode impedir que se perceba a necessidade de uma base social para tais discursos (Chaguri, Nicolau e Cavalcanti 2019). Isto é, não foi do nada e para o nada que tais discursos retornaram. O crescimento de uma força política, por sua vez, deve estar associado ao decrescimento de uma outra força política. Se é verdade que não há espaços vazios nessa atividade humana, podemos cogitar que o fortalecimento da nova direita na sociedade, em suas bases, está associado ao enfraquecimento do discurso da esquerda e ao afastamento desta de suas bases sociais. Nesse sentido, uma explicação que se tornou difundida é a de que, tendo em vista a correlação entre esses dois fenômenos e o teor das críticas da direita e de suas propostas, a causa do enfraquecimento da esquerda seria, logo, as novas políticas identitárias.

Um livro recente e que ficou famoso, escrito pelo cientista político norte-americano Mark Lilla (2018), defende expressamente essa tese. Segundo ele, as políticas identitárias se diferem significativamente dos movimentos por direitos civis ocorridos nos EUA em meados do século XX. Enquanto para aqueles o principal era a disputa em torna da inclusão dentro de um status de cidadania universal defendido pela constituição americana, para esses, a disputa é em torno do reconhecimento identitário. Em um modelo, o resultado pode ser convertido em garantias jurídicas universais. Em outro, o resultado é a mera performance, a política restrita a uma preocupação com a campanha eleitoral na qual se está presente todas as minorias, mas sem preocupação com a vitória. Uma política muito mais preocupada com a resistência do que com a ocupação de postos políticos que seria, segundo ele, a maneira mais eficaz de se proteger os direitos daquelas mesmas minorias presentes na campanha. Em determinado ponto, Lilla define a política identitária como um reaganismo de esquerda, por, no limite, estar fundamentada numa cultura individualista semelhante à do neoliberalismo.

Concorde-se ou não, Lilla tem uma tese forte, porque baseada numa contradição inegável entre o que sempre foi a tradição da esquerda e o que se tornou as políticas da diferença: a contradição entre a ênfase no comum da primeira, no que está para além do indivíduo, e a ênfase no forte viés dado à identidade de si para com uma parcela da sociedade, ou, no limite, de si para consigo mesmo da segunda. Por isso, a tese é forte e o livro se tronou amplamente veiculado, embora não se possa definir as políticas identitárias como reaganismo de esquerda. Dizer isso é estar cego aos fins que essas tais políticas se propõem, que são a realização da igualdade e liberdade, ainda que buscando a diferença. O neoliberalismo, por sua vez, nunca se propôs a realização da igualdade. Pelo contrário, o foco no indivíduo exclui ontologicamente a existência da própria sociedade, de forma que não lhe importa a existência da pobreza e miséria ao lado da extrema riqueza. Mas, para a compreensão do enfraquecimento político e eleitoral da esquerda, o seu livro é interessante. Em determinado ponto, ele reflete sobre a relação entre persuasão política e desidentificação. Isto é, fazer política seria ocupar o lugar de um outro, falar como um outro e, assim, falar (e fazer com que sua mensagem chegue) a um outro. A crescente incursão, segundo ele, das pautas identitárias no Partido Democrata teria levado a essa incapacidade de compreender os Estados Unidos mais profundo, distante de Nova York e São Francisco. Sem essa compreensão, esse território foi tomado pelo discurso obscurantista de direita de Donald Trump, o qual, mesmo sem estar preocupado com a melhoria da vida daquelas pessoas, conseguiu dar um sentido, uma esperança a elas, o que lhe garantiu a vitória em 2016.

De forma semelhante, no Brasil da década de noventa, Pierucci (1999) alertava para o que ele acreditava serem os perigos da adoção da diferença como um princípio normativo da esquerda, tendo em vista que essa era não só a base da tradição conservadora inglesa, mas da ideologia conservadora paulista da década de noventa, como ele acredita ter comprovado em suas pesquisas. Não só a forma como eles analisavam o mundo, mas, também, como gostariam que o mundo fosse, é marcada pela crença numa diferença incontornável entre as pessoas e uma diferença, como frisa Pierucci, que sempre significa também desigualdade. Isto é, ao estabelecer uma diferença, os conservadores sempre criam hierarquias entre essas diferenças. Para Pierucci, as políticas identitárias, nesse sentido, não teriam trazido nada de novo ao debate, pois apenas reafirmariam o que os conservadores sempre acreditaram: que preto é diferente de branco, que os gays são diferentes dos heterossexuais, etc. E, além de não trazer nada de novo, o foco na diferença criaria problemas organizativos práticos, porque, de diferença em diferença, no limite, chegaríamos ao indivíduo. Assim, como organizar movimentos coletivos para defender os direitos dos dominados?

Preso a uma compreensão hiper-lógica do debate sobre identidades e políticas identitárias, Pierucci comete a injustiça semelhante à cometida por Lilla de não compreender que estabelecer a diferença não significa, primeiramente, buscar a desigualdade, o que distinguiria o foco na diferença dado pela esquerda do foco dado pela direita. Certo que no âmbito prático, como ele aponta, ainda que se defenda que o que se busca é a igualdade na diferença, surjam hierarquias, a crença normativa não é essa. Pierucci também parece ignorar que o foco na diferença não diz respeito a criação infinitesimal das mesmas a partir de filigranas, mas em contestar estruturas de dominação sobre raça e gênero que foram, também, um dos polos exploratórios para as forças produtivas do capitalismo.

Nessa linha, críticas recentes às políticas da diferença parecem perceber a possibilidade de se unir em um polo amplo as questões do gênero e da raça, o que podemos ver na obra de Asad Haider (2020), Nancy Fraser e Rahel Jaeggi (2020). Se as políticas da diferença não devem ser suprimidas dos partidos de esquerda, dos movimentos sociais de esquerda e se essas mesmas políticas criam dificuldades para não só se organizar um sentido de comunidade dentro deles, mas para o diálogo com outros cidadãos que porventura não compartilhem dos mesmos valores e crenças progressistas e que são, todavia, parte, de um ponto de vista classista, de quem ocupa os piores lugares na produção e reprodução da sociedade, como sair desse impasse?

Primeiramente, o que Fraser chama de lutas de fronteira – que emerge “nos pontos em que a produção encontra a reprodução, a economia encontra a política e a sociedade humana encontra a natureza” (2020) – vai além da noção de luta de classes por considerar o capitalismo como uma ordem social institucionalizada. Isto é, o capitalismo necessita muito mais que o trabalhador assalariado, mas toda uma estrutura social capaz de responder à produção material de um mundo capitalista. Dessa forma, a autora logra ampliar a noção de luta de classes com a de lutas de fronteira, incluindo nela as questões de gênero, que analiticamente pode-se compreender dentro da esfera de reprodução do mundo, bem como as questões raciais, que podemos compreender analiticamente dentro da fronteira entre economia e política. Quer dizer, a luta das mulheres por igualdade não é uma luta essencialmente identitária, mas anticapitalista, porque denuncia a exploração do trabalho de reprodução de uma ordem social necessária à continuidade dessa mesma sociedade através do trabalho doméstico não pago. Por sua vez, as lutas marcadas pela questão racial são, igualmente, anticapitalistas se se pensar o lugar que a escravidão teve na constituição das bases da economia capitalista moderna e do sempre renovado benefício, no que tange a mão-de-obra barata, que a marginalização de etnias oferece ao capital. Esse processo passa pela identidade entre Estado e nação, o qual, ao constituir-se como um etnos, se homogeneíza excluindo outras etnias que não estariam protegidas pelo direito (em contradição com sua forma universalista). A relação entre raça e capitalismo, portanto, pode ser entendida dessa forma, como uma destituição à humanidade comum dada pelo pertencimento ao binômio etno/demos e pela consequente subjugação a uma sociedade de mercado e à força policial do Estado.

As armadilhas da diferença estariam, como sugere Haider, no fato de não vermos a relação existente entre as pautas identitárias e a estrutura social que, como uma placa tectônica, vem por séculos engolindo a força de trabalho, a energia vital e a saúde de quem foi marcado por uma origem social distante dos centros dos quais emanam o poder numa sociedade capitalista. Relação essa que pode ser tanto de cooptação, quanto de oposição radical ao capitalismo, num trabalho de união de cada um dos grupos dominados. Caso dermos ênfase somente na luta pelo reconhecimento jurídico, produziremos a ilusão de vitória, mas nos quadros da linguagem liberal dos direitos individuais e, dessa forma, após uma longa comoção, voltaremos para a solidão de nossas casas e apartamentos. Mas, se percebermos que o que negros, mulheres, gays, mulçumanos, trans, trabalhadores não-assalariados, motoristas de uber, ifood, operários, têm em comum é o fato de serem dominados por uma ordem social que, independente de qual raça ou sexo, irá sempre necessitar de grupos dominados, talvez se possa lutar juntamente pelo fim da dominação de todos os outros futuros dominados que certamente se produzirão. Por isso, o foco na identidade pode ser uma armadilha. Porque, ao contrário da identidade, o capitalismo é flexível, como uma forma de plástico que apenas precise de manter o superior afastado do inferior.

Não pensar na diferença, por sua vez, pode significar o alçar de uma categoria unicamente à condição de sujeito emancipatório, excluindo do processo os outros seres concretos que sempre estão presentes na multiplicidade física e cultural do mundo. É como Toussaint L'Overture respondeu a Napoleão diante de seu pedido de que aquele soubesse que a França fora a única a reconhecer a liberdade do Haiti. Parafraseando-o: nós não queremos apenas a nossa liberdade, mas a garantia de que nenhum ser humano, seja ele negro, amarelo, vermelho, possa vir a ser propriedade de outro homem. A enumeração de predicativos do sujeito poderia continuar longamente hoje em dia, mas entende-se.

 

Conclusão

 

Como Marshall Berman de forma ampla, mas razoável, propõe, o espírito da modernidade tem a ver com o sempre crescente desejo de homens e mulheres de serem livres, de segurarem as rédeas de seu próprio destino (2007). Apesar de incompleto, esse ideal não se invalida por uma suposta relação constitutiva com as forças opressivas do capitalismo e da razão em geral. Todavia, precisamos reformular outras formas analíticas de perceber o mundo, onde, como sugere Didier Eribon (2020), as várias intersecções que ocupamos no espaço social possam ser levadas em conta e onde não se sobreponha uma opressão à outra. Se esses homens e mulheres possuem identidades tão atravessadas por universos sociais distintos, por que cristalizá-las em uma única? O universalismo abstrato, de fato, já não dá conta de compreender nosso mundo. Alguns teóricos falam num universalismo insurgente, que carece da ação coletiva de cada grupo social (Haider, 2020), buscando na tradição da segunda Declaração de Direitos do Homem a sua fonte. Eu não sei qual a melhor teoria, mas seja qual for, precisamos apostar no comum entre todos os que não servem a esse gigante que vem destruindo o mundo.

 

Referências Bibliográficas

 

Berman, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Buck-Morss, Susan. “Hegel e o Haiti.” Novos Estudos: Cebrap 90, Julho 2011: 131-171.

Burke, Emund. Reflections on the Revolution in France. London: Penguin Books, 2004.

Chaguri, Mariana, Michel Nicolau, e Sávio Cavalcanti. “O conservadorismo liberal do homem médio.” O Globo, 10 de Janeiro de 2019.

Dunn, John. A História da Democracia: um ensaio sobre a liberação do povo . São Paulo: Unifesp, 2016.

Eribon, Didier. Retorno a Reims. Belo Horizonte: Âynié, 2020.

Espinosa, Bento de. Tratado Político. São Paulo: Abril, 1973.

Fraser, Nancy, e Rahel Jaeggi. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020.

Freud, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, Análise Fragmentária de uma histeria ("O caso Dora") e outros textos (1901-1905). São Paulo: Companhia das Letras , 2016.

Habermas, Jürgen. Mudança estrutural na esferal pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.

Heider, Asad. Armadilhas da diferença. São Paulo: Vêneta, 2020.

Lilla, Mark. O progressista de ontem e o de amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Marx, Karl. O Capital [Livro 1, Vol. 2]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

Pierucci, Antonio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: 34, 1999.

Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens políticas e econômicas de nossa época. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.

Tilly, Charles. Democracia. São Paulo: Vozes, 2017.

Tocqueville, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

Wood, Ellen. The Origins of capitalismo: A Longer View. New York: Verso , 2002.

 

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