Os Cadernos IHU Ideias 321 publicam a entrevista de Rodrigo Petronio. Neste texto Petronio retoma o pensamento de Peter Sloterdijk e sua compreensão em torno do que é o ser humano: “um animal enraizado em uma experiência predeterminada de excentricidade”.
Rodrigo Petronio é escritor e filósofo e atualmente é professor titular da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Desenvolve pós-doutorado no Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital - TIDD/PUC-SP sobre a obra de Alfred North Whitehead e as ontologias e cosmologias contemporâneas. Ainda é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ.
O humanismo, segue Petronio, “é resultado de tecnologias de domesticação, dentre as quais se destacam duas: a pedagogia e a escrita. O modelo psicagógico que a cultura letrada assumiu para educar a alma a partir do advento da escrita não foi vigente ao longo de toda a história do sapiens. Ele tem um ciclo temporal determinado, descrito com o surgimento da grande tecnologia de domesticação que é a escrita. O primado vitruviano da medida humana e do homem como medida de todas as coisas não é uma realidade eidética. É o resultado de uma sucessão de imagens do mundo organizada em torno do homem-centro. Essas imagens foram criadas pela possibilidade da relação a distância e pela translação das esferas-bolhas às esferas-globos, ou seja, pelo deslocamento da experiência das relações imediatas de convívio, intimidade e presença no mundo fático aos gigantescos envoltórios globais criados pelas narrativas metafísicas e pelas ontologias imperiais”.
“Por meio desse deslocamento, os impérios puderam capturar as diversas tribos e hordas, envolvendo-as na esfera global de seu poder mediante a ação domesticadora da escrita e da pedagogia. Enquanto a primeira uniformiza a percepção do mundo e reduz os espaços heterogêneos a dimensões homogêneas, a segunda planifica os valores e propaga a normatização da vida a partir de centros emissores de sentido. Dessa maneira, a escrita possibilitou o advento da noção mesma de universalidade, pois a escrita é um centro vazio de emissão de significados que torna homogêneo o espaço heterogêneo e desenraiza as tribos, os grupos, as hordas e os povos do mundo da vida [Lebenswelt]. Nesse sentido, a escrita também tornou possível a universalização dos valores e a criação de uma protoimagem universal do ser humano, de matizes arcanos. Por meio dela, desde as antigas mitologias mesopotâmicas, foi possível moldar um regime de perfectibilidade humana centrado na imago, seja a imagem de deuses teriomorfos ou de homens-deuses. A dignitas e a humanitas do ser humano como ente passível de universalização é uma das criações dos discursos sobre a cultura e o cultivo do ser humano mediante a escrita. Não por acaso a passagem do cosmológico ao antropológico, presente em Platão, guarda ainda uma agonística com relação ao papel positivo-negativo e de remédio-veneno [phármakon] da escrita. Estão radicalmente atreladas ao cultivo das letras e à alfabetização. Se história e escrita se recobrem, à medida que o século XX produziu em uma dimensão global a falência da tecnologia da escrita e também dos sistemas pedagógicos tradicionais, levada a cabo pelos mass media, pode-se dizer que nesse mesmo século ingressamos também em uma ordem pós-histórica”, aponta.
Imagem: Capa dos Cadernos IHU Ideias número 321, de Rodrigo Petronio.
Outra categoria importante levantada pelo professor Petronio é a antropotécnica, que é desenvolvida ao longo de toda de Peter Sloterdijk. “No sentido antropológico, o homem não é apenas aquele que nega o meio pela técnica. É aquele que por meio da técnica também se nega a si mesmo como natureza, tornando-se plástico e apto a assumir novas fisionomias e habitar novas antropofanias”, propõe.
Toda esta reflexão converge para um dos temas mais centrais das sociedades contemporâneas, a saber: o esgotamento da modernidade e a falência de suas formas de vida a partir da fratura entre o que se chama natureza e cultura. “A partir de Sloterdijk talvez consigamos compreender que a falência do projeto moderno, entendido em termos unilaterais como uma teleologia da emancipação, bem como a ruína do humanismo, não foram necessariamente perdas. Elas podem se transformar no exercício cotidiano e sereno daquela alegria trágica de que falava Nietzsche. E quem sabe sobre essa ruína possamos viver o futuro de uma promissora e poderosa liberdade”, ressalta Petronio.
A edição pode ser acessada aqui.
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