10 Dezembro 2019
"A luta dos explorados e oprimidos em todo o mundo, principalmente nos países periféricos, sempre foi a luta dos fracos contra gigantes poderosos e bem armados. A história registra vitórias e derrotas, mas, no geral, enfrentamos poderes que muitos julgam invencíveis e cuja dominação é planetária. Com que força eles dominam? Qual o seu contexto de batalha em que nós estamos sendo derrotados? Conseguiríamos derrotá-los em uma luta 'corpo a corpo' no contexto em que eles têm vantagem?", questiona Maurício Abdalla.
Maurício Abdalla é filósofo e doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde também atua como professor do departamento de filosofia. Também é membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB) e do Projeto Novos Paradigmas de Desenvolvimento (ABONG/ISER Assessoria).
“Saul vestiu Davi com sua própria armadura, colocou-lhe na cabeça um capacete de bronze, revestiu-o com a sua couraça, e pôs a espada na cintura dele, sobre a armadura. Em vão Davi tentou andar, pois nunca tinha usado nada disso. Então falou a Saul: «Não consigo nem andar com essas coisas. Não estou acostumado». Tirou tudo, pegou o cajado, escolheu cinco pedras bem lisas no riacho e as colocou no seu bornal. Depois pegou a funda e foi ao encontro do filisteu.[...] Enquanto o filisteu se aprumava e se aproximava de Davi pouco a pouco, Davi correu depressa para se posicionar e enfrentar o filisteu. Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a com a funda e acertou na testa do filisteu. A pedra afundou na testa do filisteu, que caiu de bruços no chão. Assim Davi foi mais forte que o filisteu, apenas com uma funda e uma pedra: sem espada na mão, feriu e matou o filisteu” (1Sm 17, 38-40.48-50).
Todos conhecem a história do jovem pastor de ovelhas israelita que derrotou um guerreiro gigante, experiente e fortemente armado usando apenas uma funda. A luta de Davi contra Golias é sempre evocada como metáfora para a possibilidade de alguém ou um grupo mais fraco vencer adversários grandes e poderosos. Contudo, na maioria das vezes, ela só é usada como narrativa motivacional ou, no contexto religioso, apenas para dizer que Deus ajuda e dá a vitória aos que creem. Mas há, também, uma lição estratégica fundamental embutida na história que pode ser bastante útil para ajudar a pensar nossa ação na atual conjuntura mundial.
Sob um olhar não teológico, o grande ensinamento da vitória do jovem pastor sobre o guerreiro gigante está na maneira como ele conseguiu derrotá-lo. Quando Davi decidiu enfrentar Golias, o rei Saul o equipou com armadura e armas de guerra tradicionais, equivalentes às que usavam o filisteu e todos os soldados nas batalhas. Porém, sob o peso daquele equipamento, Davi, que era pastor e não soldado, não conseguiu sequer andar. Sabiamente, o jovem preferiu abdicar das armas e armaduras tradicionais para usar o instrumento de ataque que ele manejava com mais destreza: a funda e as pedras que, em seu ofício de pastoreio, usava para proteger o rebanho de predadores como leões e ursos.
Golias era considerado invencível tanto pelos israelitas, quanto pelos filisteus, pois eles só concebiam a luta contra o gigante com o uso das armas convencionais. Portanto, só o venceria quem se igualasse a ele em força, qualidade da armadura e destreza no manuseio das armas ofensivas e defensivas tradicionais: lança, espada, couraça, elmo, armadura e escudo. Na ausência de alguém assim, ninguém o derrotava.
Davi, porém, teve outra concepção de luta. O caminho não seria disputar força com o inimigo no seu contexto de batalha, onde a derrota seria certa. No seu contexto, o gigante venceria tanto o mais destemido israelita que quisesse vingar sua nação dos insultos dos filisteus, quanto o mais piedoso crente em Javé, o que mostra que a lição maior da história não repousa apenas sobre um ato de coragem ou fé. Embora ambas não tenham faltado a Davi, não foi por elas que ele saiu vencedor. De maneira perspicaz, Davi deslocou a luta para um contexto de ação que neutralizou a superioridade da força e das armas do gigante e que lhe permitiu usar suas habilidades de pastor de forma eficaz.
Em um combate convencional, Davi seria derrotado por dois motivos. Primeiro porque o peso dos equipamentos de guerra, com os quais não estava acostumado, eliminaria toda sua mobilidade e capacidade de luta. Ao invés de ser um meio que facilitaria a vitória, a armadura e as armas tradicionais e equivalentes às que Golias usava anularia suas habilidades. Segundo, porque a destreza e força do inimigo no uso dessas armas eram superiores e jamais seriam igualadas por Davi, mesmo que ele se esforçasse o máximo e conseguisse suportar seu peso. Ou seja, além do inimigo ter a vantagem inicial, o combate convencional imobilizaria o jovem israelita e impediria seu progresso. Era, portanto, um contexto duplamente desvantajoso.
Assim, a única chance de vitória baseava-se em três ideias gerais: impedir a aproximação do inimigo para evitar o combate corpo a corpo, não permitir o prolongamento da luta e derrotar o inimigo à distância. Isso eliminaria a possibilidade de que o gigante usasse suas armas e sua força. Essas ideias gerais constituíram a estratégia de Davi. Para colocá-las em prática, a tática utilizada foi recusar as armas tradicionais, pois elas o colocavam em uma insuperável condição de inferioridade, e usar a funda, uma arma que ele conhecia e manejava muito bem.
Portanto, o que deu a vitória ao jovem pastor sobre aquele que consideravam invencível não foi apenas seu ímpeto, coragem e fé, mas a estratégia e a tática utilizadas. Davi foi ao encontro de Golias com sua roupa de pastor, um cajado, uma funda e as pedras no bornal. Sua arma era simples, mas além de ter peso suportável, tratava-se de um instrumento que ele sabia usar com destreza e que já demonstrara eficácia contra animais ferozes que ameaçavam os rebanhos que estavam sob seu cuidado. E o seu uso era fundamental para concretizar sua estratégia.
Por ser um texto bíblico, a vitória é, obviamente, interpretada como um sinal da predileção de Deus pelos israelitas. Mas, apesar disso, a vitória do jovem pastor sobre o gigante é narrada sem adicionar qualquer interferência divina ou sobrenatural na ação. Davi venceu Golias por ter sido capaz de neutralizar as forças e a ação do adversário e de potencializar a sua própria força com uma decisão sábia e fora do padrão tradicional das batalhas militares.
A luta dos explorados e oprimidos em todo o mundo, principalmente nos países periféricos, sempre foi a luta dos fracos contra gigantes poderosos e bem armados. A história registra vitórias e derrotas, mas, no geral, enfrentamos poderes que muitos julgam invencíveis e cuja dominação é planetária. Com que força eles dominam? Qual o seu contexto de batalha em que nós estamos sendo derrotados? Conseguiríamos derrotá-los em uma luta “corpo a corpo” no contexto em que eles têm vantagem? Como poderíamos refletir sobre estratégias e táticas de lutas fundadas não apenas na coragem e vontade de lutar, mas na eficácia de nossa ação em relação às forças do gigante e nas armas que, mesmo não tendo o mesmo poder que as do inimigo, sabemos manejar com destreza?
O primeiro passo nessa reflexão é saber quem é o “Golias” que enfrentamos, quais são suas armas e seu contexto de luta e onde está fundada a vantagem que tem sobre nós.
A conjuntura brasileira atual nos apresenta um quadro desesperador. Sob o aspecto visível imediato temos o seguinte cenário. Um parlamentar insignificante, que passou 27 anos na Câmara dos Deputados falando asneiras, destilando ódio e preconceito e representando ideias radicalmente contrárias a todos os avanços conquistados pela sociedade brasileira desde o fim da ditadura militar, tornou-se presidente da República em uma eleição que sucedeu um golpe de Estado – no estilo dos “golpes suaves”, que têm caracterizado a nova estratégia de derrubada de governos utilizada pelas potências ocidentais.
Seu governo tem representado o que há de pior na sociedade e, embora caótico nos aspectos intelectual, ético, cultural, administrativo e político, tem sido bastante competente e eficaz (mais do que qualquer outro anterior) para tornar o país absolutamente submisso aos interesses do setor financeiro e da indústria de petróleo, à geopolítica estadunidense, à ganância de ruralistas, garimpeiros, madeireiros e outros destruidores da natureza, ao empresariado nacional de mentalidade escravocrata e à indústria de armamentos. Isso se dá porque enquanto o presidente, seus filhos e ministros protagonizam um teatro tragicômico na mídia e redes sociais, o governo real, mais discreto e pragmático, é exercido pelo ministro da economia Paulo Guedes, fiel servidor dos interesses dos setores capitalistas mais gananciosos e inescrupulosos.
Adicionalmente, revelou-se que as milícias que agem criminosamente no Rio de Janeiro – tendo recentemente se aliado ao narcotráfico – possuem íntimas relações com a família do presidente e têm sido beneficiadas há anos com a presença dos Bolsonaro na política. O lado mais violento, assassino e equipado do crime organizado conquistou agora presença no Poder Executivo Nacional. Suspeita-se, inclusive, da participação do clã Bolsonaro na morte da vereadora Marielle Franco.
O presidente e todo seu ministério, naquilo que falam e fazem, representam uma afronta constante aos valores republicanos, à ética da coisa pública, aos direitos humanos e das minorias, à ciência, à educação, aos princípios civilizatórios básicos e à própria racionalidade que, às duras penas e sem pleno sucesso, tentou-se imprimir na política desde o iluminismo europeu.
Surpreendentemente, o Parlamento e o Judiciário parecem ignorar que um presidente incapacitado, com relações íntimas com as milícias, com sintomas explícitos de sociopatia e inclinação ditatorial está no cargo destruindo a República e a democracia e dando a seus filhos um status de “família real”. Embora com alguns recentes conflitos e rachas em sua base de sustentação no Congresso e em seu próprio partido, as coisas fluem como se estivéssemos em um período normal da política, abalado apenas por algumas diferenças de ideias, interesses, disputas partidárias, conflito de egos e coisas menores.
A mídia comporta-se de maneira ambígua. Enquanto a Rede Globo e o Grupo Folha (proprietário da Folha de São Paulo, portal UOL, dentre outros veículos) partem para um ataque pessoal contra o presidente, outras empresas de comunicação lhe dão a sustentação necessária para impedir que a população perceba o fosso em que nos metemos. Mesmo a oposição da Globo e da Folha é derivada de conflitos momentâneos de interesses. As críticas só atingem o lado superficial do governo, permanecem no plano de uma guerra privada ocasional contra a pessoa do presidente e não ultrapassam algumas denúncias e chacotas. Já as medidas que entregam o Brasil à rapina dos rentistas, petrolíferas, ruralistas, garimpeiros e proprietários do capital, enquanto destroem o sistema público de previdência, aniquilam a capacidade de gestão do Estado sobre a sociedade e a economia, retiram todos os direitos dos trabalhadores e sacrificam a soberania nacional, são aplaudidas e defendidas pelos veículos das empresas dos Marinho e dos Frias. Apesar de muitos se sentirem satisfeitos com a oposição parcial desses veículos, não será por essa mídia que a população irá às ruas contra o atual governo, como foi no tempo dos governos petistas.
Esse, porém, é o aspecto visível imediato – e, mesmo assim, só o é para aqueles que têm um mínimo de consciência crítica com relação à conjuntura política. Mas o visível pode nos enganar. Se o problema for reduzido ao evento extraordinário de uma eleição de resultado ruim, que levou, por acidente, um protoditador desequilibrado ao poder, pode parecer que a solução está em uma próxima eleição presidencial em que o erro seja “corrigido” com a eleição de alguém melhor. O fenômeno do lulismo, ampliado com a libertação do ex-presidente Lula de seu cárcere injusto, pode contribuir com essa visão reducionista do problema e adiar as ações para 2022.
Ao pensarmos assim, não dimensionamos a força do gigante que temos de enfrentar e acabamos optando por lutar no contexto de batalha que o favorece e no qual estaremos sempre em desvantagem: o campo eleitoral e da ocupação do Estado. E seguiremos derrotados, pois esses campos nos sufocam e impedem nosso progresso em outro contexto de luta que nos seria mais favorável, onde poderíamos lutar com armas que realmente sabemos manejar. Precisamos, portanto, saber o que se encontra por trás do visível imediato e em que se fundamenta, realmente, a vantagem do inimigo. Analisar a conjuntura não é apenas descrever o visível, mas compreender, de forma sintética, quais fatores determinam o plano conjuntural. Esses fatores nem sempre estão conectados diretamente às notícias da conjuntura e, por isso, precisam ser resgatados nas análises.
O processo que culminou no golpe que precedeu as eleições presidenciais de 2018 é um dos fatores determinantes da conjuntura atual. Não se pode simplesmente ignorá-lo como algo passado e superado. Na verdade, o bolsonarismo foi um efeito colateral de todo o processo que culminou com a destituição da presidente Dilma e a total submissão do Brasil aos interesses do capital internacional e local.
Mas o golpe de 2016 também foi resultado particular de uma guerra de maior duração. Nessa guerra, novos armamentos e formas de batalha entraram em cena e novos terrenos se tornaram estratégicos para serem conquistados. O golpe só foi possível porque sua consecução envolveu o controle das instituições republicanas, da mídia e, principalmente, da subjetividade social. A ausência do uso da violência e a reação quase nula da sociedade comprovam o sucesso da investida do inimigo e a eficácia das estratégias atuais de dominação – que se revela também na passividade com que assistimos à destruição do país pelo governo Bolsonaro.
Os eventos de 2016 não podem ser analisados como lances isolados da política local passíveis de serem revertidos pelo investimento pesado nas próximas eleições, por meio de alianças amplas, candidaturas, campanhas bem estruturadas etc. As forças envolvidas na preparação e execução do golpe não são ingênuas e tampouco estão inclinadas a aceitarem decisões democráticas ou resultados eleitorais. Quando colocamos a realidade brasileira no contexto da conjuntura latino-americana e mundial, vemos que há aspectos comuns mesmo dentro de particularidades, e um desses aspectos é a rejeição pesada, organizada e violenta a qualquer resultado da democracia formal que embargue os interesses do capital. Honduras, Paraguai, Venezuela, Bolívia e o próprio Brasil, apenas para citar os casos latino-americanos, nos mostram exatamente isso.
Portanto, o inimigo está além e é maior do que se pode enfrentar no terreno político institucional. Tampouco se trata de uma simples luta de classes entre patrões e empregados, que se trava nas relações de trabalho diretas e locais ou na disputa pelo Estado como território estratégico para a tomada de poder. Trata-se de uma guerra, iniciada há mais de três décadas, entre uma minoria da sociedade mundial, que conseguiu concentrar o maior volume de capital da história, e o restante da população do planeta – mesmo que a maioria desse restante não perceba que está, quer queira ou não, em um dos lados nessa guerra.
A hegemonia no campo do capital está nas mãos dos rentistas, bancos, empresas e pessoas que vivem apenas de fazer seu dinheiro gerar mais dinheiro, sem necessidade de investimentos em produção e emprego. Os mecanismos que criaram para fazer seu capital render o máximo e com riscos mínimos tornaram a economia complexa, caótica e dependente do endividamento e submissão dos Estados nacionais, mas são eles que permitem a maior acumulação e concentração de renda da história do capitalismo. Ladislau Dowbor chamou a atual fase do capitalismo de “era do capital improdutivo”[1] e Thomas Piketty revelou os meandros da acumulação irracional de renda, viabilizada pelo capitalismo mundial desregulamentado [2].
O dinheiro que se multiplica nas operações com títulos das dívidas públicas nacionais e que se beneficia da evasão fiscal e lavagem de dinheiro por meio de empresas off-shore em paraísos fiscais tem origem mista em ações legais (operações financeiras, comércio, produção e serviços) e ilegais (principalmente o tráfico de armas e drogas, falsificações, tráfico de pessoas, tráfico de vida selvagem, exploração da prostituição etc.) [3].
As legais exploram sem piedade seus trabalhadores e trabalhadoras, destroem o ecossistema para gerar produtos comercializáveis e massacram populações locais. Adicionalmente, não pagam os impostos que deveriam pagar por usarem a infraestrutura do país e pela responsabilidade social que lhes cabe, pois, além de se beneficiarem dos paraísos fiscais [4], pressionam os governos nacionais a limitarem a cobrança de impostos ao mínimo [5]. Os montantes estratosféricos advindos das atividades produtivas e de serviços não são reinvestidos em produção e salários, não retornam à sociedade por meio de impostos e nem contribuem com ações que possam preservar o ecossistema: vão direto para as contas de uma parcela irrisória da população para reproduzir-se de maneira improdutiva por meio de operações financeiras que endividam os cidadãos e os Estados.
As atividades lucrativas ilegais produzem centenas de milhares de mortes anuais relacionadas ao uso e tráfico de drogas, guerras civis e criminalidade alimentadas pelo tráfico de armas, entre outras coisas decorrentes de atividades clandestinas de alto risco. Mas seus lucros são “lavados” e se misturam aos legais no sistema de autorreprodução das fortunas pela via financeira [6].
Trata-se, portanto, de um dinheiro que, como disse Marx, “nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”[7]. Nas mãos dos agentes financeiros, esse dinheiro se mescla e se multiplica de forma assustadora, sem um correlato na produção de riqueza real[8]. Para sua reprodução, investem em títulos da dívida pública e controlam os Estados (pela intervenção na política) para que ofereçam juros vantajosos, aplicações livres de riscos e impostos, legislação favorável, fiscalização mínima e retorno garantido. Assim, criam um dreno que suga os recursos dos estados-nacionais (por meio do endividamento interno e pagamento de juros) e acabam com as possibilidades de atendimento público às necessidades dos setores mais pobres e vulneráveis da sociedade. Os proprietários desse capital formam uma classe poderosíssima que têm em comum o interesse na manutenção do sistema econômico mundial que os alimenta. Para isso, precisam controlar a política de cada um dos países, definir as leis e interferir na gestão do orçamento público de acordo com suas metas.
Outro setor poderosíssimo, que também depende da submissão e da perda de soberania dos estados-nação, são os que enriquecem com a exploração e comércio de petróleo e gás. O setor movimenta centenas de bilhões de dólares por ano e as empresas petrolíferas lideram, abaixo dos bancos, seguradoras e setor automotivo, o ranking da revista Forbes das maiores e mais lucrativas empresas do mundo[9]. Seus lucros dependem fundamentalmente da disponibilidade das reservas a serem exploradas, da sua influência sobre a legislação fiscal e ambiental nos países que possuem esses recursos e da perda de soberania e controle dos estados-nacionais sobre suas riquezas minerais. Por isso, a intervenção na política local dos países produtores de petróleo e gás é absolutamente estratégica para esse setor, o que explica seu apoio a guerras, golpes de estado e a grupos de oposição a governos de esquerda ou nacionalistas em qualquer país onde haja reservas de petróleo e gás natural [10].
A necessidade que os setores hegemônicos do capitalismo mundial têm de controlar os estados-nacionais fez tomar força uma ideologia e um projeto mais radical do que o neoliberalismo que conhecemos desde a década de 80. Trata-se do “anarcocapitalismo”, uma ideologia elaborada por Murray Rothbard a partir das ideias ultraliberais de Ludwig Von Mises, que demoniza o Estado e propõe a sua total destruição em nome do vale-tudo do mercado e da privatização de todas as esferas da vida social [11].
A pequena parcela que corresponde a 1% da população planetária e que concentra mais riqueza do que os 99% restantes é o Golias do capital que sai das fileiras do exército filisteu para amedrontar e desafiar qualquer um que queira questionar seu domínio. O capitalismo não se resume a ele (assim como Golias não era o único filisteu), mas, por ser mais forte e mais bem armado que todos os outros, é ele que desafia, amedronta e intimida os que ousam lutar contra o sistema, mesmo aqueles que defendem um capitalismo “mais moderado” ou com maior presença do Estado. Sem enfrentar esse gigante jamais ganharemos a guerra.
Portanto, temos aí o nosso principal inimigo. Toda a conjuntura local, respeitando todas as particularidades e desafios próprios de cada país e de cada momento político, tem seu sentido vinculado ao domínio desse gigante e à sua necessidade de controlar e destruir os estados-nacionais, a fim de continuarem alimentando suas fortunas à custa do empobrecimento e morte dos seres humanos e da destruição da Mãe Terra. Precisamos, então, conhecer suas armas e estratégias para compreendermos as nossas derrotas e os caminhos possíveis para a vitória.
No caso brasileiro, a incapacidade de articulação, coerência e entendimento da realidade demonstrada pelo presidente eleito em 2018, ao mesmo tempo em que seu governo supera todos os outros na competência para a destruição do Estado e para fazer as reformas ultraliberais, mostra que não é ele o responsável pela conjuntura que estamos vivendo. Ele é consequência, refugo, efeito colateral de uma dominação que foge até à sua própria capacidade de entendimento e que pode perfeitamente descartá-lo sem que isso comprometa a hegemonia do capitalismo rentista e da indústria de petróleo e seu controle sobre o Estado.
As ações que sustentam a dominação atual vêm de longa data, conforme veremos adiante, mas receberam novas e potentes tecnologias auxiliares e foram intensificadas nas últimas décadas como parte da estratégia dos “golpes suaves” nos países latino-americanos. Elas foram fundamentais para que o golpe de 2016 fosse bem-sucedido no Brasil. Porém, como consequência, deixou-nos em um pântano político, ético e social.
Em resumo, a estratégia do golpe suave pressupõe a manipulação e o controle das consciências para criar um clima de oposição contra os governos que pretende derrubar [12]. No caso do Brasil, as políticas sociais dos governos petistas, sua ampla aprovação pela maioria da sociedade e o carisma pessoal do ex-presidente Lula impediam que a manipulação das notícias e a criminalização do PT se revertessem em prejuízos eleitorais para o partido e favorecessem um candidato da direita mais palatável aos setores hegemônicos do capital. Tiveram, então, que reforçar a dose do veneno aplicado às consciências, investindo contra tudo que pudesse se relacionar aos governos petistas. Nesse pacote entraram os direitos humanos e das minorias, as políticas sociais compensatórias e todas as bandeiras sociais, inclusive as que compunham o ideal liberal clássico. Alimentaram, assim, as ideias fascistas e o ódio social a tudo que pudesse ser relacionado à esquerda, mesmo às ideias e valores que pertencem à própria modernidade e que foram defendidas por pensadores e líderes liberais [13].
A dose excessiva do veneno, potencializada com o uso inteligente e planejado das mídias digitais para a formação do inconsciente coletivo, embora tenha possibilitado a destituição da presidente Dilma sem reações da sociedade, não se reverteu em intenção de votos favoráveis à direita tradicional, mas resultou no crescimento do fundamentalismo, intolerância, obscurantismo e fascismo na criação de uma nova extrema-direita nacional. Tratava-se, no entanto, de um espírito difuso, não conectado a uma liderança política carismática (como Hitler ou Mussolini na Europa) ou a um movimento organizado (como o Partido Nacional-Socialista alemão ou o Partido Nacional Fascista italiano). Na falta de uma liderança política ou partido que canalizassem esse espírito em um movimento coeso, apareceu a figura de Bolsonaro, como uma espécie de boneco de Judas às avessas (pois, ao invés de malhado foi exaltado) para fazer esse papel. O PSL e sua legião de políticos esdrúxulos surfaram na mesma onda e fizeram a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados Federais.
Sem opções melhores na política, visto que nenhum outro candidato conseguia fazer frente à popularidade de Lula (que, mesmo preso, era o maior cabo eleitoral das eleições de 2018), os setores hegemônicos do capitalismo decidiram apostar no que tinham à disposição e sustentaram a eleição de Bolsonaro, conseguindo emplacar Paulo Guedes no controle da economia.
Hoje, enquanto o atual presidente faz o papel de um bufão com humor de mau gosto e ensaia a organização de um movimento protofascista com seu novo partido (Aliança Pelo Brasil), o Golias do capital abocanha o país por meio do ministro da economia e de um Parlamento cuja maioria ou é submissa aos mesmos interesses ou não tem competência para debater os problemas nacionais e suas soluções. O resultado disso é a aprovação de todas as medidas de ajuste fiscal, destruição do Estado, aniquilação da previdência pública, supressão de direitos dos trabalhadores, entrega das reservas do pré-sal, privatizações, ataque ao serviço público, perdão de dívidas bilionárias, isenções fiscais vultosas, segurança de não se taxar as grandes fortunas, taxação da pobreza, afrouxamento das leis e fiscalização ambientais, restrição do orçamento e desvinculação de receitas para manter o sistema de transferência de recursos públicos para o sistema financeiro.
Para os donos do capital, o resultado das eleições foi positivo. Para o restante da população, além dos prejuízos econômicos, a investida resultou no crime organizado no poder, na possibilidade de formação de uma ditadura com ares fascistas e no aumento dos casos de violência por intolerância e preconceito cometidos pela polícia e os autointitulados “cidadãos de bem”.
Nesse quadro, precisamos entender que, mesmo diante de um aparente caos, há fatores estruturais que determinam a realidade presente e que permanecem independentemente da conjuntura político-eleitoral. Esse é o principal inimigo que temos que identificar e cujas armas precisamos conhecer para pensarmos nossa estratégia. A figura tosca do atual presidente da República, seus filhos sociopatas, seus ministros caricatos e obscurantistas e a bizarrice dos parlamentares (principalmente os do PSL) são fenômenos graves e dolorosos, mas passageiros. Isso não significa que não devam ser enfrentados, pois sua presença no poder traz consequências terríveis para a sociedade, tanto no plano das medidas concretas adotadas, quanto no plano dos valores e ações sociais. Preconceito, ódio, violência, intolerância, racismo e fundamentalismo religioso se fortalecem e se convertem em ações quando seus expoentes ocupam os poderes estatais. Por isso, a luta contra o atual governo e os parlamentares que o sustentam é fundamental. Mas não são eles o “Golias” a ser derrotado.
Uma pergunta recorrente que tem sido feita pelas organizações populares, partidos de esquerda, movimentos identitários e setores progressistas das igrejas é “como chegamos a esse ponto no Brasil?”. Parece-me, porém, que na maioria das vezes a indagação está dirigida especificamente ao fenômeno do bolsonarismo. Mas, analisando o quadro latino-americano, a pergunta deve ser formulada de forma ligeiramente diferente: “o que está por trás do bolsonarismo e do avanço da extrema direita que hoje se mescla com o fundamentalismo religioso cristão, não só no Brasil, mas em outros países da América Latina?”
O setor hegemônico do capitalismo do século XXI, embora já em crescimento na década de 1970, começou a ganhar suas configurações atuais a partir de meados década de 1980. Seu domínio foi pensado no contexto de um mundo em processo de globalização econômica que exigia uma geopolítica diferente da que marcou o período da Guerra Fria. No final daquela década, a destruição do bloco socialista já era uma realidade irreversível e o mundo experimentava o triunfo da economia de mercado [14].
As novas tecnologias de produção, informatização e comunicação possibilitaram um sistema integrado de economia que tendia à financeirização, seguindo o movimento cíclico do capitalismo descrito por Arrighi, no qual o capitalismo especulativo supera o produtivo após um período em que a acumulação e expansão materiais da economia chegam a seu limite [15]. As grandes corporações econômicas transnacionais, que determinavam a política dos países que compunham a tríade dominante no mundo em fase avançada de globalização (EUA, União Europeia e Japão), apressavam-se para reconfigurar as relações geopolíticas e constituir um novo sistema de dominação sobre as economias dos países do Sul. Foi o período do Consenso de Washington, que, em 1989, escreveu e impôs a cartilha econômica a ser seguida pelas economias dependentes.
A ideologia predominante nesse período foi o neoliberalismo, que propagava a perfeição do mercado e a redução do Estado ao mínimo de intervenção na sociedade, reduzida à definição da política econômica que atendesse às demandas do mercado e à ação para minimizar os conflitos sociais decorrentes da crescente desigualdade que podia ameaçar a fluidez da engrenagem econômica [16].
Na América Latina, a liderança dos EUA precisava ser remodelada e as ameaças à sua supremacia deveriam ser debeladas de forma eficaz. O Governo de Ronald Reagan (1981-1989) consolidou a nova política, iniciada na década anterior, na qual o poder mundial foi transferido, de forma definitiva, da arena política para o campo das corporações e suas entidades representativas. Isso não significa que a esfera econômica transnacional tenha parado de depender do poder político dos estados-nação para impor seus interesses sobre o mundo, mas sim que o lócus das decisões que direcionariam a ação dos Estados havia sido transferido totalmente da esfera interestatal para a esfera das corporações privadas transnacionais [17].
Foi nesse contexto que a CIA realizou, nos anos 1980, as reuniões na cidade de Santa Fé, Novo México, nas quais se elaboravam as estratégias de ação dos governos estadunidenses para a manutenção de seu domínio sobre a América Latina. As conclusões dessas reuniões foram publicadas com o nome de “Documentos de Santa Fé”. As análises estratégicas contidas nesses documentos são extremamente esclarecedoras para a compreensão de como a dominação foi pensada em uma perspectiva de longo prazo e de um império permanente. O texto apresenta a proposta de deslocamento do foco de atuação da intervenção estadunidense nos países latino-americanos da esfera eleitoral para a conquista da sociedade civil, por meio da formação de uma subjetividade social adequada aos seus propósitos.
O Documento de Santa Fé II, de 1988,[18] oferece-nos uma lição de pensamento estratégico e revela as ações de médio e longo prazos pensadas pelos estrategistas políticos estadunidenses para garantir e perpetuar o domínio sobre a América Latina. Sem conhecer esses movimentos do inimigo, as armas que decidiu utilizar e o contexto de batalha no qual que ele optou por se mover, dificilmente poderemos pensar, também estrategicamente, as contra-ações necessárias e os passos para se derrotá-lo [19].
Os autores do Documento de Santa Fé II foram o cientista político L. Francis Bouchey, à época presidente do Conselho de Segurança Interamericana (CSI), uma extinta entidade da direita estadunidense surgida da Liga Mundial Anticomunista e que se tornou a principal conselheira e influenciadora dos governos Reagan e George Bush pai [20]; Roger W. Fontaine, escritor e jornalista de direita, especialista em relações internacionais e em estudos sobre América Latina, ex-consultor da CSI e da missão dos EUA na OEA; David C. Jordan, diplomata, professor universitário especialista em estudos sobre América Latina e ex-embaixador dos EUA no Peru; e o tenente-general Gordon Summer Jr., graduado em ciências políticas, ex-embaixador dos EUA para a América Latina e ex-secretário de estado de Reagan. Ou seja, eram todos figuras chaves da diplomacia estadunidense.
As ideias contidas no documento definiram as relações internacionais dos EUA para a América Latina nas décadas posteriores. A intenção declarada dos autores pode ser encontrada na conclusão:
Os EUA e o sistema interamericano se deparam com tremendos problemas na América Latina. [...] Santa Fé II é uma estratégia para o ataque a esses problemas e para a promoção de democracia, liberdade e oportunidade econômica através da região numa tomada de posição, ao invés de uma mera postura de resposta (p. 29; grifos meus).
Ou seja, os EUA deveriam assumir uma postura proativa para assegurar seu controle sobre o continente, por meio de uma estratégia mais eficaz e, ao mesmo tempo, mais sutil e de longo prazo, como veremos adiante. Sua orientação ideológica neoliberal não foi escondida, conforme o documento deixa explícito:
O Documento de Santa Fé II dá atenção particular à economia [...] Estatização, gigantismo do aparato burocrático e nacionalizações são desaprovados, enquanto a formação de um mercado de capital nacional, a remoção do controle governamental na economia e a privatização das companhias estatais são encorajadas (p. 29-30).
Os autores ainda falam na “da defesa dos méritos da empresa privada, em oposição ao capitalismo estatal” como algo a ser promovido pelo governo dos EUA em nossos países. Nota-se aí que não se trata mais de uma guerra entre países e sim de uma guerra movida pelos interesses das corporações econômicas que controlavam a política estadunidense contra a soberania de nossas nações.
Porém, ao invés de investir apenas na eleição de políticos afinados com seus interesses, os estrategistas de Santa Fé percebiam a necessidade de ir além da interferência no processo eleitoral. De forma perspicaz, como convém ao pensamento estratégico, eles entenderam que havia outro campo de batalha em que precisavam lutar para seguirem vitoriosos: o campo subjetivo. Perceberam que seus inimigos – as forças emancipatórias latino-americanas que cresciam nas organizações de base dos movimentos sociais, na formação de um campo intelectual crítico, no trabalho de conscientização política da população e dos formadores de opinião e na ação das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica – estavam avançando nesse terreno estratégico e os EUA precisavam dar uma resposta:
[...] O problema subjacente é um problema cultural: a luta sobre qual é a natureza do melhor regime. A questão, portanto, não são só as formas e processos eleitorais. A atenção dada aos processos eleitorais desvia a atenção de outros requisitos essenciais para a democracia [21]. Há uma tendência dos defensores da democracia, nos EUA, a defender eleições, esquecendo outras questões fundamentais (p. 7; grifos meus).
Por isso, o documento pretendia:
Oferecer uma estratégia que vá além de apenas garantir um sistema eleitoral, e, se isso for seguido pela próxima administração [22], poderá trazer estabilidade para as hoje estremecidas e instáveis situações políticas dos países da América Latina. Especificamente, isso significa dar apoio às organizações independentes dentro das sociedades latino-americanas, educar o povo, e lutar contra o marxismo e outras forças políticas e culturais estatizantes (pg. 29; grifos meus).
Havia, portanto, uma ação na América Latina que ameaçava seriamente o domínio do capitalismo e da hegemonia estadunidense. Tratava-se de uma ação tão eficaz que foi reconhecida pelos melhores estrategistas dos EUA e mereceu uma reação organizada e pesada para anular sua força. E que ação era essa? Aqui se situa a parte central do documento que nos oferece um duplo esclarecimento: primeiro, sobre que tipo de ação se constituía em ameaça real para os propósitos do capital (e não era o avanço das esquerdas nas eleições...); segundo, nos faz entender os rumos que nossa sociedade tomou nas décadas que sucederam à elaboração do documento. Note-se que eles se referem a “educar o povo” e lutar contra “o marxismo e outras forças políticas e culturais” que viam como ameaça.
Após uma breve exposição sobre o que interpretam do pensamento gramsciano, os autores do documento afirmam:
Os métodos marxistas e os intelectuais marxistas poderiam realizar [a mudança do regime] dominando a cultura da nação, processo que requeria uma forte influência na religião, nas escolas, nos meios de comunicação de massa, e nas universidades. Para os teóricos marxistas, o método mais eficaz para criar um regime estatista num ambiente democrático era através da conquista da cultura da nação [...].
É nesse sentido que a Teologia da Libertação deve ser entendida: ela é uma doutrina política disfarçada de crença religiosa, tendo a característica de ser contra o papa e a livre-empresa, com objetivo de enfraquecer a independência da sociedade frente ao controle do Estado. [...] Assim, vemos que a inovação da doutrina marxista se insere em um fenômeno cultural e religioso de longa duração.
O ataque não é dirigido apenas a um ou dois componentes da cultura. Ele é eficaz porque dirigido a uma frente ampla que procura redefinir o todo da cultura numa nova terminologia; assim como o catolicismo é redefinido pelos teólogos da libertação, a arte é transformada, os livros são reinterpretados, os currículos são retificados. A investida da penetração cultural na América Latina é seguida pelos teóricos marxistas que são educadores em escolas e universidades.
A ascendência da esquerda sobre grande parte dos meios de comunicação de massa na América Latina também deve ser entendida nesse contexto. Nenhuma eleição democrática pode mudar a caminhada contínua na direção do regime estatista se a “indústria de criar consciência” está nas mãos de intelectuais estatistas. Os meios de comunicação de massa, as igrejas e as escolas continuarão a transformar as formas democráticas em estatismo, se os EUA e os recém estabelecidos governos democráticos não encararem isto como uma luta de regime. A cultura social e o regime têm de ser moldados para proteger a sociedade democrática (p. 10; grifos meus).
Essa parte é extremamente esclarecedora. Os autores do documento identificaram no crescente trabalho de formação e organização das bases populares, na religião libertadora e no crescimento da consciência crítica no meio acadêmico uma ameaça real e definiram o seu contexto de batalha como “conflito de baixa intensidade”:
Muitos dos regimes latino-americanos estão se deparando com o que foi identificado por Washington como conflito de baixa intensidade (LIC). O termo é usado para descrever uma forma de combate que inclui operações psicológicas, desinformação, contrainformação, terrorismo e subversão cultural e religiosa (p. 18).
Consequentemente, deveriam deslocar sua ação para esse novo contexto, no qual, a julgar pela sua análise, as forças emancipatórias estavam em vantagem. Ao contrário do Golias filisteu, o gigante do capital havia antecipado o poder da “funda de Davi” e tomou providências para não ser atingido mortalmente na testa por uma pedrada certeira.
Diferentemente das análises academicistas, cujo interesse é apenas a narrativa e interpretação da situação, a análise estratégica procura conhecer a realidade para guiar a ação futura. O que é dito na teoria é uma chave para se compreender a prática que a sucedeu. Consequentemente, a identificação do problema pelos estrategistas de Santa Fé foi seguida de um pacote de propostas táticas que foram implementadas pelos governos estadunidenses posteriores. Dentre as muitas propostas apresentadas no documento, duas merecem destaque:
O desenvolvimento da política cultural é básico para a sustentação, pelos EUA, do esforço latino-americano para desenvolver a cultura democrática. O esforço gramsciano para minar e destruir a tradição democrática através de subversão ou corrupção das instituições que dão corpo e mantêm aquela tradição deve ser combatido. Fortalecer o orçamento da USIA, tendo esse problema em vista, deve ser a principal prioridade. A USIA é a nossa agência para a guerra cultural (p. 12; grifos meus). [23]
As instituições públicas e privadas americanas devem envolver-se na educação dos meios de comunicação e dos líderes comunitários sobre a natureza da estratégia de conflito do marxismo-leninismo, adaptado pelos nacionalistas aos desafios do subdesenvolvimento. O casamento entre comunismo e nacionalismo na América Latina acarreta o maior perigo tanto para a região quanto para os interesses americanos (p. 19; grifos meus).
A partir da década de 90, iniciada dois anos após a redação do Documento de Santa Fé II, vimos crescer no Brasil o neopentecostalismo de origem estadunidense, tanto por meio da multiplicação e fortalecimento de igrejas evangélicas, quanto pelo crescimento de movimentos espiritualistas da Igreja Católica. Todos receberam aportes financeiros e midiáticos para seu crescimento e divulgação. Nessa época, tomaram força, além das igrejas evangélicas neopentecostais, a Renovação Carismática Católica, a Canção Nova e outros movimentos espiritualistas católicos, com amplo apoio da mídia corporativa – que fez, inclusive, os “padres cantores” adquirirem status de celebridades pop. Hoje, lidamos com o crescimento vertiginoso do fundamentalismo cristão evangélico nas periferias e com movimentos cismáticos de oposição ao papa Francisco dentro da Igreja Católica por seu pontificado mais aberto a um cristianismo libertador. O crescimento do fundamentalismo religioso e o apoio dos neopentecostais (evangélicos e católicos) à extrema direita e às ideias ultraliberais não podem ser interpretados apenas sob a luz de fatores sociopsicológicos: foram também resultados de uma ação planejada.
Em outro campo, nas universidades, o marxismo e o pensamento vinculado à tradição crítico-emancipatória foi perdendo espaço rapidamente para as teorias pós-modernas [24]. O pensamento crítico, com inspiração marxista e ampliado pelas reflexões das teorias emancipatórias latino-americanas (teologia da libertação, pedagogia do oprimido, pedagogia histórico-crítica, filosofia da libertação, etc.) viu seu espaço ocupado pelo relativismo pós-moderno e os autodenominados “estudos pós-críticos”, que reivindicam a superação das teorias emancipatórias “contaminadas” pelo “paradigma da modernidade”, em nome de um relativismo acrítico, da descrença em qualquer transformação estrutural e global da sociedade e da redução da emancipação a questões de ordem subjetiva e cultural [25]. Também essa “mudança de paradigma” não pode ser compreendida apenas como fruto da desilusão de intelectuais com o paradigma crítico-emancipatório.
Essas teorias viriam, mais tarde, a embasar alguns novos movimentos identitaristas, para os quais as causas relacionadas às minorias (mulheres, negros, etnias oprimidas, LGBTs) – que passaram a fazer parte das pautas de movimentos emancipatórios críticos por força da luta dos movimentos feministas e negros de esquerda – poderiam (e para alguns até deveriam) desvincular-se da luta pela transformação das bases econômicas da sociedade e abrir mão da solidariedade de classe entre as vítimas de opressão – o que gerou divisões e conflitos dentro dos próprios movimentos sociais e grupos emancipatórios [26].
No interior do que muitos hoje chamam de “as novas formas de luta”, há grupos e formas de abordagem das temáticas que devem ser vistos com precaução e boa dose de suspeita, principalmente quando são apoiadas e financiadas com recursos de bancos internacionais e entidades como a Open Society (pertencente ao megainvestidor George Soros) e fundações como a Ford, Rockefeller, Bill & Melina Gates e outras. Com o avanço das pautas identitárias e a sua vinculação com as propostas de transformação social e grupos de esquerda, a iniciativa privada, atendendo ao chamado do Documento de Santa Fé II [27], percebeu que não poderia contar apenas com o dinheiro estatal para ganhar a guerra cultural nesse campo e decidiu aportar também parte de seus bilhões para ONG’s, sites e grupos identitaristas, desde que não tivessem relações com a esquerda tradicional (de preferência que a criticassem), com ideias marxistas ou com a crítica radical à economia capitalista [28].
Essa ação do inimigo provocou uma grande confusão no campo da esquerda, principalmente entre os mais jovens, pois lidou com questões caras à ação emancipatória que começaram a ganhar força na década de 90. Os movimentos feministas, negros e, mais recentemente, LGBTs, expuseram o fato de que o patriarcado, o racismo e questões relacionadas a gênero são elementos culturais que precisam ser transformados e que não tiveram a prioridade e atenção que mereciam nas lutas políticas até os anos 1980. As elaborações teóricas críticas nesses campos propõem que patriarcado e racismo são conceitos gerais que se encarnam historicamente em uma realidade determinada por um sistema econômico e ganham concreticidade na configuração de classes que esse sistema determina. Não se pode compreender o capitalismo nos países periféricos sem a escravização do negro nas Américas, o racismo, o etnocentrismo, a questão indígena e o papel destinado à mulher na dinâmica da exploração. E vice-versa: a situação dos que são vítimas desse tipo de opressão, embora envolva elementos culturais e subjetivos que ultrapassem a questão econômica, recebeu uma determinada configuração em consequência da maneira como o sistema a utilizou em benefício da exploração econômica.
Os movimentos negros e feministas existem há décadas e há uma ampla elaboração teórica em várias áreas das ciências humano-sociais fundada na perspectiva de raça, gênero e etnia. A maioria desses movimentos, na história, tem suas origens entrelaçadas com a luta socialista e anticapitalista e são resultados da percepção de que há opressões específicas no interior da classe trabalhadora, que diferenciam a exploração entre os próprios dominados e que precisam ser tratadas por lutas específicas, sem renunciar à compreensão da necessidade de superação do sistema.
Dentro da heterogeneidade que hoje caracteriza os diversos movimentos, situam-se certos grupos identitaristas, muitos apoiados por fundações estrangeiras e com ampla visibilidade midiática e editorial, que abandonaram a reflexão sobre o patriarcado e o racismo conectada ao sistema. Tornaram-nos temas genéricos e conceitos que existem por si sós, independentes das configurações materiais da sociedade, conforme convém às teorias pós-marxistas. Como resultado, para essa visão, o machismo e o racismo passam a ser problemas apenas dos “homens” e dos “brancos” individualizados e compreendidos indistintamente. Estes passam a ser os inimigos e não a cultura que os reproduzem e o sistema que os envolvem em sua lógica. Visto dessa forma, não se percebe, inclusive, que o próprio sistema se tem apropriado desses temas a seu favor, pois é capaz de, estrategicamente, adaptar-se às novas necessidades da dominação. Os donos do capital perceberam que podem também influenciar a formação da subjetividade social nesse campo e ganhar mulheres, negros, indígenas e população LGBT para seu ideal ultraliberal e apresentá-lo como solução também para seus problemas.
O problema surge quando a concepção liberal dos temas identitários, talvez pela sua ampla difusão pela mídia, sites, livros etc. (possibilitada pelo aporte financeiro das fundações citadas) se confunde, muitas vezes, com as próprias pautas. Daí decorre, por um lado, que muitos acabem pensando que a adesão à luta pelas causas identitárias significa necessariamente a defesa incondicional de qualquer ideia relacionada a elas e, por outro, que quaisquer críticas a certas ideias (e não às pautas) sejam rebatidas como se fossem dirigidas às causas identitárias em si mesmas [29]. Com isso, criam-se fissuras e divisões dentro dos movimentos emancipatórios, que são multigenéricos e multirraciais.
A dificuldade de se lidar com essa questão nasce da incapacidade de se fazer distinção entre, de um lado, a pertinência das causas e o valor histórico dos movimentos identitários (tanto os mais antigos quanto os que se organizam sob novas formas e expressões) e, de outro, a penetração invisível do ideário liberal e pós-moderno que tem dominado alguns grupos. A crítica a uma forma de se conceber a luta (principalmente quando feita por homens brancos) pode ser facilmente confundida com a postura branca e masculina dominadora. Porém, de maneira alguma se trata de fazer qualquer questionamento à importância dos temas identitários ou dos grupos que os têm como eixo, mas de questionar uma maneira específica de se tratar a questão – questionamento, ademais, feito no interior dos próprios movimentos [30]. Enquanto essas questões permanecerem um “tabu” e motivos de divisões na esquerda, os estrategistas do sistema comemorarão a eficácia de sua ação.
Em síntese, a estratégia definida pelo “quartel-general” dos filisteus no limiar da década de 1990 previa duas frentes: avançar no território estratégico que, segundo eles, estava dominado pelo inimigo e, ao mesmo tempo, aniquilar as defesas do adversário destruindo suas armas e gerando divisões entre seu exército (na linha do “dividir para conquistar”, um dos mais antigos e eficazes princípios estratégicos).
As recentes tecnologias de informação digital e o uso das redes sociais de forma cientificamente planejada em vista de fins bem definidos potencializaram ao máximo essa estratégia do Golias do capital. Sua força tornou-se assustadora na tomada do território estratégico da consciência social, gerando irracionalismo, fundamentalismo, visões distorcidas e invertidas da realidade, crescimento da intolerância e do espírito fascista. Mas não podemos pensar essas tecnologias sem entender os objetivos para os quais são utilizadas. Caso contrário, tenderemos a interpretá-las como se elas, por si mesmas, fossem a nova forma de dominação e, consequentemente, não entenderemos seu verdadeiro papel nessa guerra.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que o sistema colocava em marcha suas ações planejadas de conquista da subjetividade social, a esquerda, os movimentos sociais e mesmo os setores progressistas das igrejas, descuidadamente e carente de percepção estratégica, abandonaram gradativamente o território estratégico que ocupavam, não construíram defesas e deixaram o campo aberto para a penetração do inimigo. Coincidiu que, na mesma década de 1990, a priorização da disputa eleitoral e da gestão dos espaços de poder conquistados passou a absorver todas as energias dos partidos e movimentos emancipatórios.
O resultado não poderia ser outro. Quando abandonamos um território estratégico sem deixar defesas sólidas construídas, é quase um convite para a invasão do inimigo. A maioria dos que lutavam pela transformação do sistema passaram a preencher todo seu tempo e canalizar todas as energias nas eleições e ocupação do poder institucional e deixaram de lado o trabalho de educação popular, organização das bases, estudo e produção teórica crítica sobre a realidade. A consciência social, deixada ao sabor da mídia corporativa e das redes sociais, foi conquistada pelos que queriam a manutenção da ordem e o estabelecimento do mercado como único princípio definidor das relações entre os seres humanos e destes com a natureza. O campo que os estrategistas de Santa Fé viam como obstáculo para seus objetivos se converteu em ameaça para nossos propósitos.
Hoje, como consequência, vemos esse território subjetivo dominado por ideias ultraconservadoras, protofascistas e pelo fundamentalismo religioso e totalmente suscetível aos ataques psicológicos e informacionais da mídia corporativa e dos meios digitais. A ameaça que movimentos sociais e governos de esquerda, centro-esquerda e nacionalistas podem representar para os interesses do Golias do capital pode ser facilmente debelada com a manipulação da sociedade civil. O controle desse campo pode se converter em votos ou mobilizações que favoreçam os políticos e movimentos de direita, facilitando golpes (suaves ou militares) ou eleições que mudem os rumos da política e da economia dos países para submetê-los às exigências do mercado.
Depois de várias décadas de influência planejada na sociedade civil, para a qual se destinou vultosos recursos, não é de se admirar que parte significativa da população venha a apoiar alternativas de direita ou extrema-direita, que atualmente se mesclam com o fundamentalismo religioso neopentecostal. Os casos brasileiro e boliviano recentes mostram apenas a que ponto pode chegar a intensificação dessa estratégia. Bolsonaro e Jeanine Áñez são apenas resultados visíveis (talvez não previsíveis para o sistema, mas, de qualquer forma, aceitáveis) de uma estratégia de longo prazo que a esquerda não percebeu.
Na ânsia de respostas sobre as causas da tragédia política do Brasil, tem sido comum a busca pela autocrítica e correção de erros passados cometidos pelos partidos de esquerda, movimentos sociais, igrejas progressistas e intelectuais críticos. É certo que conhecer os erros e procurar corrigi-los é atitude fundamental para todos que querem avançar de forma mais eficaz. Porém, pode haver exageros e equívocos quando se faz a autocrítica isolada da análise estratégica. Nunca podemos esquecer que estamos em luta contra um inimigo e que nem tudo o que acontece tem apenas causas endógenas. Ou seja, nem tudo é produto de erros internos ou de ações equivocadas, pois, ao mesmo tempo em que nos movimentamos e agimos, há um inimigo muito competente e poderoso atuando no sentido contrário e buscando anular a efetividade de nossas ações. Nem tudo o que fizemos, mesmo que tenhamos sido derrotados, pode ser descartado como erro.
Pensar estrategicamente exige a análise dos movimentos do adversário, a fim de se pensar as contra-ações que visem proteger nossa tática das tentativas de anulação perpetradas pelo inimigo, suprimir seus efeitos, corrigir equívocos e reforçar acertos. Não se trata de buscar, sempre, um recomeço do zero diante de cada batalha perdida.
Uma pequena metáfora nos ajuda a entender isso melhor. Imaginemos que nossa missão seja montar um castelo com cartas de baralho. Planejamos empilhá-las cuidadosamente, de maneira que se equilibrem e se sustentem. Na metade do trabalho, um inimigo, para evitar que atinjamos o objetivo, liga um ventilador a uma certa distância, fazendo com que o vento impossibilite o equilíbrio das cartas. O que devemos fazer?
Primeiro, precisamos avaliar a situação que provocou o fracasso de nossa empreitada. Se a avaliação for guiada pela ideia de que tudo o que ocorre é fruto apenas de decisões e ações equivocadas de nossa parte, sem considerar a ação contrária do inimigo, pode-se chegar à conclusão de que o problema está apenas na maneira que escolhemos para construir o castelo. Pode resultar daí o abandono da ação de empilhar e equilibrar as cartas, seguida da tentativa de se pensar maneiras totalmente diferentes de se atingir o objetivo. As críticas e a rejeição à maneira “tradicional” de se montar o castelo, nesse caso, poderão dar o tom de nossos discursos e reflexões teóricas e, a seguir, surgirão centenas de ideias sobre a necessidade de “novas formas” de ação – a maior parte delas, senão todas, carentes de apontamentos práticos para o que seriam essas novas formas.
Se é um erro obtuso continuar na tentativa de montar o castelo de cartas da mesma forma sem considerar o ventilador colocado pelo inimigo, é igualmente errado acreditar que apenas uma nova forma de se montá-lo poderá solucionar o problema do vento nas cartas.
O correto, nesse exemplo, seria: a) tentar desligar o ventilador do inimigo ou, caso não seja possível ou não tenhamos forças suficientes para tanto, b) criar uma barreira de proteção para que o vento não atinja as cartas. Caso a montagem tradicional do castelo tenha dado resultados favoráveis em outras ocasiões (sem o ventilador) e nada indique que ela seja ineficaz, o esforço deve se concentrar na anulação da tática do inimigo e não necessariamente no abandono da forma de se fazer o que já foi feito. Claro que se pode pensar em alternativas que aprimorem o modo de montagem, mas abandonar uma ação que se mostrou correta em diversas ocasiões, sem considerar as ações do inimigo em sentido contrário, é um erro profundo.
Portanto, qualquer autocrítica deve evitar converter-se em lamentação catártica, rejeição em bloco do passado disfarçada de “abertura para o novo” ou exercício livre, muitas vezes inconsequente, de teorização sobre “novidades redentoras” e “novos paradigmas”. A necessidade de uma contra-ação do inimigo a uma ação estratégica nossa revela, na verdade, o acerto e a eficácia da ação executada. Pois, caso ela fosse ineficaz, bastaria a ele deixá-la ocorrer, sem necessidade de envidar tantos esforços para anulá-la. Para usar uma terminologia do pugilismo, se foi aí que ele sentiu o golpe, é aí que devemos golpear com mais intensidade.
Essa é uma importante chave de leitura da realidade quando se considera que estamos em uma disputa contra um inimigo inteligente, poderoso e que age constantemente. Ela nos ajuda, inclusive, a nos conhecer melhor, renovar as ações, abrirmo-nos para novidades, incorporar conhecimentos e recursos que não existiam no passado, mas também a evitar “modismos discursivos”. Como nos movemos no terreno dos projetos, é muito fácil cairmos na tentação do “melhor discurso” no lugar da “melhor estratégia” – e o anúncio do “novo” sempre contribui para a estética discursiva. Porém, para citar uma frase de Pedro Ribeiro de Oliveira: “nem tudo que é bom é novo e nem tudo que é novo é bom”.
O que, para nós, poderia ser comparado à “funda de Davi” foi aquilo que provocou o medo e a reação do Golias: a conquista gradual e permanente do território estratégico da subjetividade social. A pedra ia na direção certa rumo à testa do gigante, até que ele a interceptasse. Portanto, a questão estratégica central é: como retomar o território perdido? Se aceitamos a centralidade desse objetivo estratégico, todas demais ideias e propostas devem ser pensadas nessa direção.
Antes de apresentar algumas proposições para debate e crítica – o que será feito em 5 pontos a seguir –, precisamos ser realistas e ter consciência de que não são possíveis ações de curto prazo que se contraponham aos efeitos de uma estratégia de longo prazo bem executada. Estamos em um momento que exige o abandono do imediatismo (sem largar o esforço de ações que minimizem os efeitos do problema) e a retomada da paciência histórica. Por mais dura e triste que seja a realidade, o desespero e a ação imediatista não contribuem para a busca de soluções adequadas. A história teve momentos piores.
A mística e o cultivo da utopia são elementos imprescindíveis para a formação da consciência histórica e de ação de longo prazo, como nos mostram os movimentos emancipatórios surgidos na América Latina inspirados na Teologia da Libertação e a formação de um campo evangélico crítico pela Teologia da Missão Integral. A versão secular da mística transformadora tem sido sempre trabalhada por movimentos como o MST. Seja pela mística religiosa e a utopia de um Reino de Deus, seja pela mística secular e a utopia do socialismo, o reforço desse plano é pré-condição para a elaboração e aceitação de estratégias não imediatistas.
Mas, como vimos, não foram apenas o ímpeto e a fé de Davi que o fizeram vencedor, embora sem eles Davi não se teria lançado ao desafio. Por isso, precisamos pensar objetivos estratégicos que se transformem em ações. Consciente da complexidade da tarefa, deixo algumas modestas sugestões, para críticas, aperfeiçoamentos ou contestações. É preciso, ao menos, começar por algum lugar.
Já foi demonstrado pela história recente do Ocidente que a disputa eleitoral na limitada democracia capitalista favorece a quem tem dinheiro e o controle da mídia. Consequentemente, o poder dos parlamentos, que deliberam por maioria, é sempre dos que possuem o poder econômico. Parlamentares de esquerda fazem a diferença, pelas denúncias, projetos apresentados, interlocução com a sociedade civil etc., mas, por serem minoria, não conseguem ter, de fato, poder de definir a ação legislativa. Sem desconhecer os avanços possíveis e a necessidade de ampliar a representação das classes populares nesse poder, não podemos esconder o fato de que sempre perdemos nas batalhas maiores nesse campo.
Por outro lado, o deslocamento do poder da esfera política para a econômica deixa pouca margem de ação transformadora para quem ocupa o Poder Executivo. A força dos ataques na esfera econômica globalizada limita a capacidade de ação do Executivo e o impele a inúmeras capitulações e concessões ao mercado. No modelo de presidencialismo de coalizão, como o do Brasil, a necessidade de maioria no parlamento força o Executivo a jogar com as regras da política viciada e corrupta. Adicionalmente, o poder da mídia sobre a avaliação popular dos governos também limita a continuidade e permanência no poder das forças mais progressistas ou contrárias ao reino absoluto do mercado.
Muitos optaram por lutar com as armas do gigante no contexto de batalha político-eleitoral e do exercício do poder institucional, o que significou aliar-se aos inimigos, aceitar seus recursos e permitir que as regras viciadas do jogo, que conduzem à corrupção, fossem usadas sob o pretexto da justificação dos meios pelos fins [31].
Resulta daí que o contexto de batalha das eleições e gestão das parcelas de poder conquistadas, sem a contrapartida da luta em outros contextos, é sempre favorável ao gigante. É uma luta com as armas do inimigo, cujo peso não suportamos, e, por isso, sucumbimos e acumulamos derrotas [32].
Continuar reduzindo nossa estratégia de luta ao contexto de batalha que favorece o adversário é desperdiçar nossas forças, sem contar o já mencionado problema do abandono do território estratégico sem construção de defesas. Isso não significa deixar de dar importância ao processo eleitoral ou à gestão de parcelas do poder em benefício da população mais vulnerável. Significa apenas que o foco das ações deve deslocar-se desse campo para outro contexto de luta. Da mesma forma que a vitória de Davi não veio do uso das armas que Saul lhe queira emprestar, nossa salvação não virá das “próximas eleições”.
O contexto de batalha que já se mostrou favorável às classes populares é o da formação crítica da subjetividade social que se converteu em movimentos e ações concretos. A formação e organização das bases da sociedade civil, a influência na academia e no campo da educação e produção teórica e a vivência libertadora das religiões alertaram os estrategistas de Santa Fé para o risco que a conquista desse território representava. Se foi aí que o adversário “sentiu o golpe”, é aí que devemos bater mais.
No passado recente, mesmo no contexto de uma ditadura militar explícita, a conquista da consciência social se fez pela educação popular, produção teórica-crítica nas universidades, comunicação popular, Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), pastorais populares, trabalhos formativos dos movimentos sociais etc. Foi uma ação que deu resultados concretos e grande parte dos movimentos organizados e militantes políticos que ainda hoje estão em ação são seus produtos diretos. Basta fazer uma análise da nossa história pessoal ou das pessoas mais antigas que ainda hoje compõem esses movimentos.
Algumas análises, baseadas apenas em uma avaliação endógena da situação atual, anunciam o “esgotamento” dessa estratégia ou atribuem o presente quadro de derrotas à sua suposta inadequação. Penso que isso seria o mesmo que ignorar o ventilador da metáfora que usei anteriormente. As práticas e as teorias a elas relacionadas, que muitos julgam esgotadas em sua realização, foram, na verdade, abortadas antes de mostrarem seu pleno resultado. Além da contra-ação do inimigo, como já foi assinalado, houve um abandono dessa estratégia ainda em seu momento de crescimento prático e de acúmulo teórico. Poucos militantes que iniciaram sua vida política após a década de 90 conhecem a riqueza das experiências e dos materiais teóricos produzidos no campo da educação popular, seja no campo religioso popular ou dos movimentos sociais. Resgatar essa práxis é possível e necessário.
Obviamente, não se pode repetir as estratégias com as mesmas táticas, sem levar em consideração as mudanças objetivas e subjetivas da realidade atual. Porém, suas orientações, metodologias, objetivos e experiências bem-sucedidas, desde que passem por um processo de adequação à realidade, são ainda concretizáveis.
Ao se propor uma reconquista da base subjetiva da sociedade, deve-se também compreender criticamente seu contexto subjetivo atual e as novas formas de sociabilidade que desenvolvem. Aqui entram discussões que, pela amplitude e profundidade, fogem aos limites do presente (e já longo) texto. Mas é possível, ao menos, enunciá-las.
As classes populares latino-americanas são profundamente religiosas. Qualquer ação que vise conquistar a subjetividade popular que desconheça ou despreze o fenômeno religioso tem poucas condições de êxito. As populações mais vulneráveis não recorrem ao neopentecostalismo por imposição dos estrategistas do capital, mas pela necessidade de vivenciar uma dimensão de suas vidas. O sistema apenas oferece o atendimento à demanda de acordo com seus objetivos e o usa para atingi-los. Torna-se fundamental compreender e saber trabalhar de maneira adequada e crítica esse elemento essencial da subjetividade popular que tem sido apropriado pelo neopentecostalismo católico e evangélico dentro da estratégia do sistema.
O combate ao fundamentalismo e à captura dos sentimentos religiosos da população por formas alienantes de vivência da fé não pode ser feito pela negação da religiosidade, pelo sarcasmo e ridicularização dos seguidores de seitas, pelas atitudes que escandalizam (que, em gíria militante, têm sido chamadas de “lacração”) etc. Trata-se de um desafio para a Teologia da Libertação e para a Teologia da Missão Integral oferecer uma vivência religiosa que atenda, ao mesmo tempo, a procura do espiritual e a formação da consciência crítica.
O campo da cultura também é estratégico. Para avançar nesse plano, é preciso um conhecimento crítico da cultura popular, que saiba diferenciá-la da cultura de massas e dos produtos da indústria cultural e identificar seus pontos de interseção. Nem tudo que vem “da periferia” é cultura produzida e massificada “pela periferia”. Apenas incorporar ou valorizar quaisquer produtos culturais apropriados, processados e massificados pela indústria cultural – que costumam vir carregados, inclusive, de diversos valores que combatemos – só porque se reproduzem “na periferia” não contribui para a conquista dessa importante parte do território subjetivo. Tampouco podemos desprezá-los ou rejeitá-los de forma elitista – não é disso que se trata. Importa saber como trabalhar e promover a cultura popular, em diálogo principalmente com a juventude e suas formas de manifestação cultural, sem, contudo, perder a dimensão crítica da análise desses fenômenos e da produção de valores e concepções de mundo que se opera por meio deles.
As maneiras de organização das bases sociais também nos apresentam novidades. Além de mudanças na estrutura organizativa tradicional mostrada pelos “coletivos” temáticos (mudança na forma), há também os grupos que se unem em torno da prática econômica alternativa (mudança de conteúdo). As experiências da economia solidária, produção associativa, autogestão e outras práticas de produção coletiva da vida e de cuidado com o ambiente são realidades crescentes. Porém, nem sempre criam, espontaneamente, a consciência crítico-social ou fazem correlação de sua prática com a estrutura socioeconômica. Por isso, são ainda espaços em disputa. Conhecê-las, integrá-las, reforçá-las, criá-las e teorizar sobre elas também são importantes ações estratégicas dentro do objetivo geral de retomar o território subjetivo pelas bases.
Conforme foi visto, o documento de Santa Fé II trata a produção intelectual crítica e sua influência no meio acadêmico como ameaças. O plano teórico também é um campo de disputa na sociedade, pois, visto que ação humana é sempre consciente, não existe prática sem uma compreensão teórica (mesmo que difusa) da realidade sobre a qual se age. A ação humana é, como disse Marx, práxis, uma unidade entre consciência e ação. Tanto os autores do Santa Fé II como as estratégias descritas por Rothbard para o predomínio da concepção anarcocapitalista preveem o domínio do ambiente acadêmico e da produção teórica [33].
Por outro lado, a inconsistência das elaborações teóricas pós-modernas – que se tornaram modas no ambiente acadêmico e se apresentam como as novas e únicas abordagens capazes de lidar com as transformações do mundo – tem gerado práticas militantes que rejeitam ou não conseguem compreender os nexos entre as micro-opressões e a estrutura sistêmica do capitalismo. A deficiência do instrumental teórico analítico-interpretativo tem consequências na nossa capacidade de interpretação coerente do mundo e cria também dificuldades na ação transformadora.
Não podemos negar, no entanto, que as mudanças no mundo trouxeram algumas realidades e desafios que não podem simplesmente ser compreendidas à luz do que já se tem elaborado no campo da tradição teórica crítica de inspiração marxista ou nas teorias emancipatórias elaboradas nos países periféricos. As teorias devem responder às questões que surgem em cada época. Por exemplo, é ainda um problema teórico importante a vinculação das teorias críticas de transformação social centradas na economia com os problemas específicos das opressões de raça, gênero e etnia. Mas, como ainda vivemos, no plano do tempo estrutural (o tempo da longa duração dos sistemas econômicos), sob o império do capitalismo, não podemos descartar as teorias que desvendaram a lógica e os mecanismos desse sistema, possibilitaram a compreensão de sua relação com os planos objetivo e subjetivo de nossa existência e especularam sobre os caminhos possíveis para sua superação.
Por isso, a tarefa de elaboração teórica e de pensar a emancipação de maneira adequada ao nosso tempo é também um imperativo da militância no plano intelectual. E isso não pode reduzir-se à publicação de inúmeros artigos acadêmicos em revistas especializadas, cujo número de leitores é assustadoramente pequeno, para aumentar os quantitativos que medem a produtividade dos professores universitários. Trata-se de uma ação de conquista de mentes. As universidades formam professores, jornalistas, comunicólogos e outros formadores de opinião que tem papel fundamental na formação da subjetividade social. Não é à toa que tanto a CIA quanto os mentores do anarcocapitalismo a colocam como elemento fundamental de sua ação.
Disse anteriormente que o foco da nossa estratégia não pode estar na conquista e gestão de parcelas do poder institucional. Agora, porém, é preciso dizer que sua ocupação não deixa de ter uma grande importância na concretização dos objetivos estratégicos. Contudo, essa ação deve ser compreendida como tática, ou seja, como instrumento, meio para se chegar aos objetivos estratégicos. Como tal, os mandatos parlamentares e as administrações progressistas que compartilham os objetivos gerais do processo emancipatório podem se colocar a serviço dos movimentos sociais e contribuir com a conquista da subjetividade social.
As possibilidades são muitas, algumas já executadas ou em execução. Há mandatos parlamentares que aglutinam movimentos, associações, grupos de economia solidária, de produtores agroecológicos, de ambientalistas, ativistas de direitos humanos etc. e oferecem-lhes oportunidades para o fortalecimento de suas lutas – por meio da apresentação de leis, apoio institucional para seus eventos, canais de interlocução com o Executivo etc. – e para a formação da consciência de seus integrantes [34].
A presença no Poder Executivo precisa ser pensada com mais atenção. Se a ocupação desse espaço não for entendida plenamente como a presença das classes populares no poder, com todas as consequências que isso tem para o planejamento e execução das ações administrativas, e pretender revestir-se com a falsa ideia de neutralidade, de um “governo de todos”, sua conquista não trará mais benefícios para a transformação social do que a presença de um “bom político” da direita moderada poderia trazer.
Os representantes do capital nunca fazem um “governo para todos”. Eles não demonstram ter escrúpulos para gerir a máquina pública totalmente de acordo com os interesses exclusivos dos donos do capital. Sequer se mostram preocupados com os protestos da sociedade civil, desde que não se transformem em protestos da mídia.
Muitos governos que se pretendem de esquerda, ao contrário, compraram a ideia de que precisam ser “neutros” e “governar para todos” (seja lá o que isso signifique em uma sociedade de classes antagônicas), mesmo em uma história de 500 anos em que o Estado serviu exclusivamente às elites econômicas. Dessa forma, e com um temor paralisante da opinião da mídia que só se justifica pela priorização do jogo eleitoral [35], acabam não utilizando a estrutura da máquina estatal para a formação da consciência crítica, politização da população, democratização da comunicação, fortalecimento das organizações e experiências de economia alternativa e outras ações que poderiam produzir um avanço na consecução da estratégia de retomada do território perdido da subjetividade social.
Por isso, repensar a ocupação do poder institucional é elemento fundamental para a consecução do objetivo estratégico de retomar e avançar sobre o território subjetivo.
Por fim, algumas palavras precisam ser ditas sobre o que se tem considerado o grande desafio – e, ao mesmo tempo, se apresentado como o “caminho das pedras” – para a conquista da subjetividade social: as mídias digitais. Seria excesso de presunção tratar um tema tão específico e complexo neste texto sem a necessária especialização no tema, mas algumas breves considerações podem ser colocadas para discussão.
Após seu papel nas eleições de 2018, o uso das redes sociais e de aplicativos de mensagens digitais, principalmente o Twitter e WhatsApp, tornou-se o centro das preocupações. A sua incrível eficácia na produção e generalização de visões falsas e distorcidas do mundo, sua capilaridade (está em todos os celulares, nas mãos de diversas camadas sociais) e sua força para dar divulgação e credibilidade às falsas notícias acenderam um alerta. As empresas especializadas em seu uso para fins bem definidos, no marketing comercial ou na política, tornaram-se poderosas pela capacidade de analisar dados e criar algoritmos que direcionam ideias e notícias (falsas ou verdadeiras) de acordo com perfil de cada pessoa para manipular pensamentos e atitudes. São armas poderosíssimas que merecem uma especial atenção.
Porém, devemos ter alguns cuidados na análise desse fenômeno. Primeiro é preciso entender que as mídias digitais, como o próprio nome já diz, são meios (mídia vem do latim media, que significa “meios”). Todo meio é usado em função de um fim. Não podemos confundir os fins com os meios e pensar que a comunicação digital moderna é um mal em si mesma. O sistema a utiliza para seus fins tanto quanto utiliza jornais, rádio, TV e a World Wide Web dos primórdios da Internet. Por outro lado, tampouco podemos pensá-la como a nossa salvação. É bastante ingênua a crença de que as formas de luta, mobilização e resistência terão seu novo plano de concretização nas redes sociais virtuais, em função do que elas possibilitaram na chamada “Primavera Árabe”, ou nas mal compreendidas “Jornadas de Junho e Julho” no Brasil em 2013.
As mídias digitais são instrumentos que reproduzem, potencializam e formatam, no plano virtual, o que acontece no plano objetivo e subjetivo das relações sociais reais. Como instrumentos e meios, têm um papel relevante, que pode inclusive retroalimentar as relações reais e dar-lhes características específicas, mas estarão sempre submetidas à dinâmica das relações sociais concretas, que não nascem no ambiente virtual, senão que são forjadas em um mundo determinado.
Consequentemente, as transformações no plano da realidade concreta sempre terão impacto também no mundo virtual.
Em segundo lugar, é preciso avaliar se realmente temos condições de deslocar o foco de nossas ações para esse campo. Empresas como a Cambridge Analytica (de Steve Bannon, mentor da campanha de Trump e consultor da campanha de Bolsonaro) e diversas outras contam com um arsenal de estudiosos, técnicos, tecnólogos da informação e volume enorme de recursos financeiros para atuarem de maneira eficaz no mundo digital. Podemos lutar com essas armas nesse contexto de batalha com nossos parcos recursos humanos, técnicos, financeiros e de conhecimento? Não seria um caso em que Davi iria ao encontro de Golias no seu contexto de batalha tentando arrastar-se sob o peso da armadura, couraça, espada e lança de Saul?
Ou seria melhor pensarmos que, assim como há uma parcela da população que se encontra suscetível à produção de “verdades” da mídia digital, há outra sobre a qual elas não têm tanta eficácia? O que tornou essa outra parcela imune ao bombardeio de fake news e da ideologia anarcocapitalista e neopentecostal? A base militante dos movimentos sociais, CEB’s e pastorais sociais e aqueles que estão sob sua área de influência possuem uma espécie de “anticorpo” que neutraliza a ação do “vírus”. Isso sugere que a eficácia do uso das mídias digitais para fins opostos aos nossos depende da subjetividade social que recebe os ataques informacionais.
A TV, em outras épocas, liderava a formação ideológica da população. Fomos tão capazes de criar suspeitas em relação a ela que até os adversários, hoje, se utilizam da ideia de que os meios de comunicação manipulam a realidade. De onde veio a revelação de que a mídia televisiva propaga valores negativos em novelas e programas e manipula as notícias em seus telejornais? A força da TV permanece, embora tenha perdido a liderança para as redes sociais e aplicativos de mensagens, mas foi reduzida após décadas de críticas e denúncias feitas pelos setores críticos e organizados da sociedade civil [36]. Não seria um caso possível de se comparar com a barreira que reduziria o efeito do ventilador em nossa metáfora do castelo de cartas?
Não estaria, também aí, colocada a necessidade de uma funda para lutar contra a força e as poderosas armas do gigante? Acredito que, também nesse campo, seria mais adequado e possível neutralizar sua estratégia do que entrar em uma luta “corpo a corpo” com armas similares em situação inicial de tremenda (e talvez insuperável) desvantagem.
Apesar de o problema da comunicação digital não dever, em minha opinião, ser colocado como o eixo da estratégia, não podemos, de maneira alguma, diminuir sua importância, seus riscos e possibilidades. Esse é um desafio que cabe aos que podem pensar a comunicação popular com domínio dos conhecimentos, tecnologias e técnicas desse campo tão especializado.
O objetivo deste texto não é mais do que a convocação para a discussão e o debate sobre questões estratégicas nestes tempos tão sombrios e desoladores da conjuntura. Embora com algumas proposições formuladas em forma de imperativos (“devemos”, “é preciso”, “faz-se necessário”...) não pretendi apresentar nenhuma fórmula ou ditar caminhos como se fosse portador de algum mapa. Trata-se apenas de uma visão pessoal e limitada de quem entende que é preciso começar por algum lugar.
Não vejo melhor forma de conclui-lo do que citar alguns versos da canção que se tornou popular na Revolução Espanhola de 1936, ¡A las barricadas!
Negras tormentas agitam os ares
Nuvens escuras nos impedem de ver
Mesmo que nos espere a dor e a morte
Contra o inimigo nos chama o dever
[...]
De pé, povo operário, para a batalha,
É preciso derrotar a reação
Às barricadas! Às barricadas! [37]
[1] DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
[2] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
[3] O Fórum Econômico Mundial fez, em 2016, uma estimativa de que as atividades do crime organizado rendem anualmente cerca de US$ 1 trilhão. O Escritório da ONU contra Drogas e Crimes estima esse rendimento em US$ 2 trilhões (mais do que o PIB brasileiro de 2018). Cf. BBC News. As cinco atividades do crime organizado que rendem mais dinheiro no mundo. Disponível aqui.
[4] O FMI estimou em U$ 800 bilhões o prejuízo mundial anual causado pela evasão fiscal. Trata-se de dinheiro que poderia tornar-se receita para os Estados investirem no combate à pobreza, defesa e recuperação do meio ambiente degradado e serviços públicos de qualidade. Cf. CORREIO BRAZILIENSE. Prejuízo mundial com paraísos fiscais chega a US$ 800 bilhões, 05/10/19. Disponível aqui. O volume de recursos da atividade corporativa mundial sem controle e sem taxação foi estimado, em 2013, entre 21 trilhões a 32 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 73,5 trilhões (Cf. DOWBOR. Idem, p. 83-91).
[5] “Em 2018, o governo estima que as perdas com gastos/incentivos tributários cheguem a R$ 283,5 bilhões, o que representa 4,0% do nosso PIB e cerca de 1/5 da receita administrada pela Receita Federal no mesmo ano. Para fins comparativos, este montante seria suficiente para cobrir 9 anos de Bolsa Família, considerando o valor gasto com o programa em 2018. [...] A previsão do governo para 2019 é de que as perdas de receita atinjam R$ 306,4 bilhões, um incremento de quase R$ 23 bilhões em relação ao ano passado”. DAMASCENO, Juliana. Quanto custam os benefícios fiscais no Brasil. Disponível aqui.
[6] Uma maneira ao mesmo tempo divertida e instrutiva de entender o esquema de lavagem de dinheiro e evasão fiscal possibilitado pelas empresas off-shore em paraísos fiscais, bem como a mistura de dinheiro legal e ilegal, é por meio do filme A lavanderia, dirigido por Steven Soderbergh e disponível no Netflix. O filme é baseado no caso real de vazamento que ficou conhecido como Panamá Papers.
[7] MARX, K. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 539.
[8] Em fevereiro de 2017, enquanto o PIB mundial girava em torno de US$ 80 trilhões, as transações em valores monetários somavam cerca de 544 trilhões (DOWBOR, idem, p. 108-109).
[9] Cf. FORBES. The word’s lagerst public companies. Disponível aqui.
[10] Um desses grupos é o Estudantes Pela Liberdade (EPL), fundado no Instituto Charles Koch, vinculado a indústria de petróleo dos irmãos Koch. Os Koch figuravam, em 2018, na lista dos 10 maiores bilionários do planeta e estão entre as 26 famílias que juntas detêm mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. Cf. ÉPOCA NEGÓCIOS. Quem são os 26 bilionários que têm a mesma riqueza que metade do mundo. Disponível aqui. O EPL atuou fortemente na articulação das manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff e propaga o ultraliberalismo entre estudantes universitários em diferentes países. Outro exemplo é o American Enterprise Institute (AIE), um think thank (entidade de estudo e produção de ideias) dos EUA que nega o aquecimento global e oferece dinheiro a pesquisadores negacionistas do desequilíbrio climático de vários países. A entidade é financiada pela gigante petrolífera Exxon Mobil.
[11] As ideias de Rothbard e outras relacionadas ao anarcocapitalismo (também chamado de “libertarianismo”) podem ser conhecidas pelas publicações disponíveis no site do Instituto Rothbard. Algumas palavras de Rothbard: “Os libertários veem o estado como o supremo, eterno e mais bem-organizado agressor das pessoas e da propriedade de grande parte do público. Todos os estados, em todos os lugares, sejam eles democráticos, ditatoriais ou monárquicos, sejam eles vermelhos, brancos, azuis ou marrons.” ROTHBARD, M. Por uma nova liberdade: o manifesto libertário. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013, p. 64. Disponível para download no site citado.
[12] Uma síntese dos passos dos golpes suaves pode ser conferida em GOOBAR, Walter. Manual de autoayuda para golpes de Estado suaves. Disponível aqui.
[13] Ideias como igualdade de gênero e etnia, tolerância religiosa, laicidade do Estado, ideais republicanos etc. estavam presentes em pensadores liberais do século XVIII, como Condorcet, Rousseau, Voltaire, Locke, Montesquieu e outros. A declaração dos direitos humanos foi obra da burguesia revolucionária francesa.
[14] As mudanças no regime soviético implantadas por Mikhail Gorbachev, conhecidas como perestroika e glasnost (reconstrução e transparência), começaram em 1986. Segundo Arthur Gonzáles, documentos da CIA que tiveram o sigilo expirado sugerem que o ex-líder soviético pode ter agido com apoio da CIA e do bilionário George Soros com a intenção de “aniquilar o comunismo”. Ver. GONZÁLES, Arthur. Gorbachov se confiesa: “El objetivo de mi vida fue la aniquilación del comunismo”. Razones de Cuba, 07/07/18. Disponível aqui.
[15] ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora Unesp, 1996.
[16] Na definição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os excluídos seriam a “areia na máquina”, que deveriam ser ajudados pelo Estado apenas para não atrapalhar o mercado. CF. FOLHA DE SÃO PAULO. A nova esquerda de FHC. Entrevista ao Caderno Mais!, 13/10/1996. Disponível aqui.
[17] Segundo Arrighi, “por volta de 1970 [...] as empresas multinacionais haviam evoluído para um sistema de produção, intercâmbio e acumulação, em escala mundial, que não estava sujeito a nenhuma autoridade estatal e tinha o poder de submeter a suas próprias ‘leis’ todo e qualquer membro do sistema interestatal, inclusive os Estados Unidos. A emergência desse sistema de livre iniciativa [...] [pode ter] dado início à decadência do moderno sistema interestatal como lócus primário do poder mundial (ARRIGHI, idem, p. 74).
[18] O Documento de Santa Fé I é de 1980.
[19] Uma versão em português do documento pode ser encontrada aqui.
[20] Vários membros dessa entidade tornaram-se embaixadores dos EUA em países latino americanos.
[21] Quando o documento fala em “democracia” ou “defensores da democracia”, os termos são confundidos com “capitalismo liberal” ou “defensores do capitalismo liberal”. Por isso falam da discussão sobre o melhor “regime”, em contraposição com o estatismo ou o socialismo.
[22] Ou seja, a administração que veio a ser assumida por George Bush, pai.
[23] United States Information Agency (USIA) - Agência de Informações dos Estados Unidos. Trata-se de “uma agência independente para relações exteriores dentro do Poder Executivo dos EUA. A USIA expõe e defende a política externa americana e promove os interesses nacionais dos EUA por meio de uma ampla gama de programas de informações no exterior. A agência promove o entendimento mútuo entre os Estados Unidos e outras nações, realizando atividades educacionais e culturais. A USIA mantém mais de 211 postos em mais de 147 países” (Fonte aqui). Sua atuação nos campos da educação, informação, radiodifusão, serviços de biblioteca etc. foi intensa, e incluía intercâmbios culturais, bolsas de estudos, parceria com universidades, pesquisas etc. A USIA foi extinta em 1999, mas suas atividades permaneceram abrigadas em outras agências e secretarias do Governo dos EUA.
[24] Um documento da CIA, de 1985, revela também que houve uma ação da Agência de Inteligência estadunidense na promoção de autores pós-modernos e críticos do marxismo. “Segundo a própria Agência de espionagem, a teoria francesa pós-marxista contribuiu diretamente para o programa cultural da CIA de persuadir a esquerda para a direita, ao mesmo tempo em que desacreditava o anti-imperialismo e o anticapitalismo, criando assim um ambiente intelectual no qual seus projetos imperiais poderiam ser perseguidos sem serem incomodados pelo exame crítico sério da intelligentsia. [...] Na verdade, seu estudo sobre a teoria francesa aponta para o papel estrutural que as universidades, as editoras e os meios de comunicação social desempenham na formação e consolidação de um ethos político coletivo.” ROCKHILL, Gabriel. Como a teoria francesa pós-marxista contribuiu com a CIA em desacreditar o anti-imperialismo e o anticapitalismo. Opera Mundi, 10/03/17. Disponível aqui. O documento da CIA que se refere à nova intelectualidade francesa pode ser lido (em inglês) no site da própria Agência.
[25] O abandono do marxismo também teve como estímulo a implosão do bloco socialista, simbolizado pela queda do muro de Berlim e dissolução da URSS. Ou seja, o avanço das teorias pós-modernas encontrou, além de estímulo externo, um terreno fertilizado pelas desilusões com o “socialismo real”.
[26] Ver sobre isso a entrevista de Asad Haider em KUMAR, Rashmee. Como a política identitária dividiu a esquerda: uma entrevista com Asad Haider. The Intercept Brasil, 01/06/19. Disponível aqui.
[27] “As instituições públicas e privadas americanas devem envolver-se na educação dos meios de comunicação e dos líderes comunitários sobre a natureza da estratégia de conflito do marxismo-leninismo...” (cr. citação acima).
[28]A Fundação Ford, por exemplo, recusou-se a manter seu financiamento ao Fórum Social Mundial quando de sua edição em Mumbai, alegando que puderam “ver maior colaboração de grupos da esquerda comunista da Índia no fórum”. Ver AZENHA, Luiz Carlos. Ford, Soros, Gates: A quem servem as megafundações? A professora Joan Roelofs dá algumas pistas. VIOMUNDO, 17/03/18. Disponível aqui.
[29] Foi essa confusão, inclusive, que me obrigou a estender a reflexão para além do que o presente texto exigiria...
[30] Ver sobre isso o artigo crítico ao identitarismo no movimento negro, escrito pelo coordenador político da Uneafro-Brasil: BARROS, Douglas Rodrigues. Contra o retorno às raízes: identidade e identitarismo no centro do debate. Le Monde Diplomatique, 21/02/18. Disponível aqui.
[31] Basta ver quantas ações dos governos de esquerda foram justificadas sob argumento da “governabilidade” e quantas práticas eleitorais ilícitas foram praticadas em nome do “jogo eleitoral”.
[32] Há diversas experiências locais bem-sucedidas (em municípios menores do Brasil) em que a tomada do Poder Executivo é resultado da mobilização de movimentos sociais e união de práticas alternativas de produção. Há também mandatos parlamentares que conseguiram aglutinar um campo de poder alternativo e desenvolver um trabalho de fortalecimento das organizações da sociedade civil. Porém, essa não é a realidade dos grandes centros, da maioria dos Estados e da Federação. E isso não é uma particularidade apenas do nosso país.
[33] O principal elaborador do anarcocapitalismo, M. Rothbard, também fala que a estratégia dos libertaristas deveria ser a conquista da subjetividade social. Seu livro Por uma nova liberdade: o manifesto libertário, citado anteriormente, é apenas um manifesto e, embora relevante para compreender os movimentos do inimigo, não tem a mesma importância do documento de Santa Fé II. Eis algumas de suas propostas: “uma condição primordial e necessária para a vitória libertária [...] é a educação: a persuasão e a conversão de um grande número de pessoas para a causa”. “Os libertários [...] devem refletir profundamente, se envolver no meio acadêmico, publicar artigos, periódicos e livros teóricos e sistemáticos, e participar de conferências e seminários. Por outro lado, uma mera elaboração da teoria não levará a lugar algum se ninguém ouvir falar dos livros e dos artigos; daí a necessidade de publicidade, slogans, ativismo estudantil, palestras, aparições no rádio e na televisão etc.” “Os jovens nos campi universitários têm tido uma posição de destaque na ascensão do movimento libertário. [...] estes jovens fornecem um campo fértil para o libertarianismo [...], um crescimento que já está sendo alcançado pela aderência ao movimento de um número crescente de jovens acadêmicos, professores e estudantes de pós-graduação.” A mídia, também, tem se revelado uma fonte rica de interesse favorável por este novo credo libertário. (ROTHBARD, Por uma nova liberdade: o manifesto libertário. p. 349.364).
[34] Um bom exemplo dessas possibilidades foi o mandato do ex-deputado estadual Durval Ângelo (PT-MG). Além do suporte à diversos movimentos e associações, o mandato realizou por quase 24 anos o Encontro Anual de Políticos Cristãos, um espaço de mística e formação para políticos do campo progressista, atualmente viabilizado pelo mandato do deputado estadual Marquinhos Lemos (PT-MG).
[35] Ou seja, temem desagradar a mídia para não verem sua popularidade reduzir e suas pretensões eleitorais futuras malograrem.
[36] Isso explica, em parte, a popularidade do Governo Lula e da própria figura do ex-presidente mesmo após um linchamento televisivo. Usei a TV como exemplo por ser ainda o veículo tradicional com mais capilaridade e penetração na população brasileira.
[37] Negras tormentas agitan los aires, nubes oscuras nos impiden ver, aunque nos espere el dolor y la muerte, contra el enemigo nos llama el deber.[...] ¡En pie pueblo obrero, a la batalla! Hay que derrocar a la reacción! ¡A las barricadas! ¡A las barricadas!
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Em busca da funda de Davi. Uma análise estratégica da conjuntura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU