“Faz-se mister, neste campo e enquanto Igreja, afirmar a necessidade da superação do atual modo de produção econômica a partir de uma nova perspectiva desde os mais pobres e excluídos. Olhar desde as periferias é o convite que faz o Papa vindo do “fim do mundo”, como dito por ele no balcão da Praça São Pedro em sua primeira saudação ao povo. Essa perspectiva pressupõe uma visão integral de mundo e de ser humano, diante da premissa (antes mesmo de um princípio) do humanismo integral, tal como apresentado no compêndio da Doutrina Social da Igreja. Da mesma forma, orienta-se pelo princípio do bem comum, e em favor do povo (também como superação de políticas anti-povo perpetradas por modelos econômicos cuja centralidade não está na criação e na humanidade). Urge uma nova economia, pois a atual está em ruínas, e a própria pandemia acentuou a percepção nesse sentido”, escrevem Klaus da Silva Raupp e Luiz Carlos Susin, em artigo para Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.
Neste final de semana, celebra-se um ano de publicação semanal da Coluna “Rumo a Assis” no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Klaus da Silva Raupp é doutorando em Teologia e Educação pelo Boston College (Jesuítas), nos Estados Unidos, com pesquisa sobre currículo de educação religiosa católica e justiça econômica. Mestre em Teologia pela PUCRS, e Bacharel em Direito (UFSC) e em Administração (UDESC). Leciona na área teológica desde 2007, e participa do comitê ampliado (internacional) do evento “The Economy of Francesco”.
Luiz Carlos Susin é mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Bacharel em Teologia pela PUCRS e Licenciado em Filosofia pela atual UNIJUÍ. Professor e pesquisador na PUCRS e Professor na ESTEF. É assessor da CRB, secretário geral do Fórum Mundial de Teologia e Libertação, e membro do comitê científico da Revista Internacional de Teologia Concilium. Foi presidente da SOTER, da qual é cofundador. Foi professor convidado na Universidade Antoniana, em Roma, e no ITEPAL, em Bogotá. Em 2011, realizou estágio pós-doutoral na Georgetown University (Jesuítas), nos Estados Unidos.
O artigo foi publicado originalmente na Revista Cultura Teológica, da PUC-SP, nº 98, de Jan-Abr de 2021.
Entre os dias 19 e 21 de novembro de 2020, realizou-se, de forma virtual, a primeira edição do encontro internacional “The Economy of Francesco”. No contexto da pandemia global de COVID-19 causada pelo vírus SarsCov2, e diante da impossibilidade de realização do evento presencial, alguns poucos membros do comitê central e da equipe de organização transmitiram as chamadas principais desde Assis, e os participantes se conectaram às doze conferências e demais atividades via Internet desde os mais diferentes lugares do mundo inteiro.
O evento nasceu com o chamado feito pelo Papa Francisco a jovens economistas, empreendedores e agentes de organizações sociais para com ele se encontrarem em vista de “estabelecer um ‘pacto’ para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã” (FRANCISCO, 2019). Nessa carta de convocação, ele enfatizou o desejo de “promover juntos, através de um pacto comum, um processo de mudança global [...], unidos por um ideal de fraternidade atento acima de tudo aos pobres e aos excluídos” (ibidem).
Francisco de Assis teria escutado, diante do crucifixo na igreja de São Damião, as palavras que o converteram: “Vai, Francisco, e reconstrói a minha casa que, como vês, cai em ruínas” (CELANO 2C 10 in TEIXEIRA, 2014). E, conforme escrito por um dos autores junto de quatro jovens inscritos no evento, “tal como o Cristo crucificado ‘falou’ a Francisco de Assis, Francisco de Roma fala aos jovens do mundo inteiro: ‘Vão, Jovens de Francisco, e reconstruam a nossa economia, que, como veem, cai em ruínas!’” (ANDRADE SILVA et al, 2020).
Ao final do evento, em mensagem de vídeo, o Papa reforçou aos jovens participantes o convite “para reconhecer que precisamos uns dos outros para dar vida a esta [nova] cultura econômica, capaz de ‘fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer a esperança” (FRANCISCO, 2020a). Um chamado reforçado, portanto, para uma (re) construção plural e participativa em vista do que se passou a entender como “a Economia de Francisco” , a partir do seu pensamento sobre a economia.
Na referida mensagem aos jovens, o Papa ressalta que “[o] encontro virtual em Assis não [foi] um ponto de chegada, mas o impulso inicial de um processo que somos convidados a viver como vocação, como cultura e como pacto” (ibidem). Assim sendo, além da saudação inicial e da exortação final aos participantes do evento, a mensagem do Papa se divide em três partes, nas quais se situam, então, os capítulos deste artigo: a vocação de Assis (onde se situa o capítulo 1 a seguir), uma nova cultura (onde se situa o capítulo 2 a seguir) e o pacto de Assis (onde se situam os capítulo 3, 4 e 5 a seguir).
Na primeira parte (a vocação de Assis) da mensagem aos jovens do evento “The Economy of Francesco”, o Papa deixa claro que o chamado que ele faz, tal como aquele percebido por Francisco de Assis, deve ser o de “incidir concretamente” nas realidades em que estamos situados, como nas cidades, universidades e muitos outros lugares. Diz ele aos jovens que “as consequências das nossas ações e decisões afetar-vos-ão pessoalmente, pelo que não podem permanecer fora dos lugares onde se gera não o vosso futuro, mas o vosso presente” (ibidem).
Na Exortação Apostólica Evangelii gaudium (sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual), que muitos consideram o programa do seu pontificado, Francisco aponta a inculturação como a categoria debaixo da qual cabe inserir a afirmação anterior. Como herdeiro da teologia do povo (ou da cultura), vertente argentina da teologia latino-americana (cf. SCANNONE, 2026, p. 127), entende a evangelização como inculturação, a dizer, realidade que promove o encontro com Jesus Cristo através do encontro com as pessoas desde as diferentes culturas.
Nesse documento, ao analisar os sinais dos tempos (vide o capítulo segundo), o Papa não mede as palavras para afirmar que vivemos numa economia de exclusão e desigualdade, a qual mata, e para a qual é preciso dizer não como um preceito mandamental (FRANCISCO, 2013, n. 53). De fato, os relatórios anuais de entidades globais (OXFAM, 2020; CREDIT SUISSE, 2020) apontam uma curva crescente na desigualdade desde os anos Reagan (1980 em diante). A título de registro, autores de diferentes áreas abordam essa tendência em suas pesquisas e escritos, tais como Thomas Piketty, Joseph Stiglitz, David Harvey, Noam Chomsky, Ladislau Dowbor, Pedro Ferreira de Souza, Kenneth Himes, Jung Mo Sung e muitos outros.
Ao analisar a exortação apostólica em questão em livro no qual faz uma crítica teológica do novo mito do capitalismo, o teólogo Jung Mo Sung destaca, tal como Francisco, o aspecto da idolatria que gera uma oposição real entre vida e morte. E ambos o fazem a partir de dois conceitos de idolatria: como substituição da fé em Deus e perda de sentido último (o que o Papa trouxe anteriormente na Encíclica iniciada por Bento XVI e finalizada por ele – Lumen fidei), e como idolatria do dinheiro e a respectiva exigência de safrifícios de vidas humanas (o que o Papa traz na Evangelii gaudium) (cf. MO SUNG, 2018, p. 146-147; 152-153). E Francisco complementa de forma ainda mais concreta:
Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras (FRANCISCO, 2013, n. 56).
É a partir dessa leitura da realidade que Francisco, desde o início de seu pontificado, insiste na urgência de uma nova narrativa econômica (vide a mensagem aos jovens no evento) que tenha por base uma orientação antropológica que não reduza o ser humano, mas que assuma a lógica do desenvolvimento humano integral (vide o capítulo 5 a seguir). Ainda em termos da Evangelii gaudium, seria uma narrativa baseada não na cultura do descarte e da indiferença, mas do encontro (cf. ibidem, nn. 53, 54 e 220).
Nesse sentido, para a Igreja (também chamada a se renovar, tal como a economia), tornam-se imprescindíveis o dinamismo de saída e seu correspondente caráter missionário (cf. ibidem, nn. 20 e 21). Como afirma o Papa, a evangelização (que tem papel importantíssimo na elaboração imaginativa e no anúncio profético daquela nova narrativa) pressupõe que os discípulos devem “primeirear” (tomar a iniciativa), “envolver-se” (ter o “cheiro das ovelhas”), “acompanhar” (todos os processos, e com paciência histórica), “frutificar” (oferecendo a própria vida) e “festejar” (celebrar a liturgia, e antes a própria vida que se oferece em evangelização) (cf. ibidem, n. 24).
Na segunda parte (uma nova cultura) da mensagem aos jovens do evento, o Papa ressalta a urgência da mudança no atual estilo de vida, com destaque ao fato de que isso passa por recursos sociais (recursos materiais não faltam) e mudanças estruturais no modelo econômico (mudando o foco quase exclusivo nos lucros para o humano, social e ambiental). A nova cultura, conforme mencionado no capítulo anterior, deve ser a do encontro, em oposição à do descarte e da indiferença (cf. FRANCISCO, 2020a).
Os encontros de Francisco com os movimentos populares em 2014 (Roma), 2015 (Bolívia) e 2016 (Roma) constituem momentos cruciais de elaboração e expressão do pensamento econômico no atual pontificado. Como dito, herdeiro da tradição teológica latino-americana de vertente argentina, o Papa faz questão de se encontrar com o povo, e em especial o povo pobre (cf. ALBADO, 2018, p. 34) . Quer proximidade com aqueles que estão nas periferias da existência e do mundo como o “lugar teológico” de onde partir para pensar a ação evangelizadora e, ao mesmo tempo, para tratá-los como destinatários preferenciais da mesma (cf. SUSIN in PASSOS e SOARES, 2013, p. 128 e AQUINO JR., 2018, p. 14) .
Nesse sentido, em artigo sobre a relação do Papa Francisco com a Teologia da Libertação, Antonio Manzatto explica muito claramente o que é e o que não é a opção preferencial pelos pobres (sendo esta, inclusive, um princípio da Doutrina Social da Igreja – DSI, no âmbito da destinação universal dos bens):
Sendo opção preferencial, ela é uma escolha que dá preferência aos pobres, que os prefere, que os coloca em primeiro lugar, que entra em relação direta com eles para que a Igreja seja deles, dos pobres, em seus movimentos de libertação. Há uma aliança declarada entre a Igreja e os pobres principalmente quando aponta para a direção em que o mundo precisa ser transformado: justiça, paz, igualdade, que são buscas que elevam os pobres porque, no hoje da história, eles não possuem tais características em suas vidas, Em muitos momentos esta “preferência” pelos pobres foi apontada como “luta de classes”, em perspectiva marxista; no entanto, a maioria dos teólogos da libertação a apontava como exigência de universalidade, no sentido de que apenas o que coloca os pobres em primeiro lugar pode ser apresentado como de todos, do contrário haverá sempre a exclusão dos mais pobres, porque mais fracos (MANZATTO, 2015, 188-189).
Assim, pensando a ação evangelizadora a partir e em favor, principalmente, da vida do povo pobre (e entendendo o amor por este povo como central ao Evangelho), Francisco afirma, no primeiro dos três encontros, que a terra, o teto e o trabalho (os 3 “T”s) são necessidades básicas da vida humana e direitos sagrados pelos quais se deve lutar (cf. CARIAS, in AQUINO JR. et al, 2018, p. 127). No segundo encontro, apresenta três tarefas processuais na lógica da chamada cultura do encontro, sendo a primeira “pôr a economia a serviço dos povos”; a esta, acrescenta “a união dos povos no caminho da paz e da justiça”, e “defender a Mãe Terra” enquanto casa comum que é (cf. ibidem, p. 130). E, no terceiro encontro, vai além e questiona a subjugação dos povos pelo que ele chama de “colonialismo ideológico globalizador”, o qual se dá no contexto de um modo econômico de produção – o capitalista – que, nos momentos de crise, atinge preponderantemente os mais pobres, e intensifica uma das leis imanentes a tal regime que é a da acumulação do capital e da riqueza (cf. ibidem, p. 131).
Na terceira parte (o pacto de Assis) da mensagem aos jovens do evento, o Papa os convoca para fomentar um novo modelo de desenvolvimento sócio-econômico que seja ambientalmente sustentável, a ser pensado e realizado junto com o povo e em favor do povo (conforme igualmente destacado no capítulo anterior). Afirma que “precisamos imperiosamente que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente ao serviço da vida, especialmente da vida humana” (FRANCISCO, 2020a).
Essa afirmação remete diretamente à Encíclica Laudato si' (sobre o cuidado da casa comum), a qual revela de forma clara o espírito franciscano do pontífice que se deu o nome do Poverello de Assis. Francisco proclama que vivemos uma só crise sócio-ambiental (a qual contempla a economia, e pede outras maneiras de entendê-la); diante dessa única crise, a nossa resposta enquanto humanidade deve se pautar pelo princípio da ecologia integral (cf. FRANCISCO, 2015a, nn. 137 et seq). Diz o Papa: “tudo está interligado; por isso, exige-se uma preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade” (ibidem, n. 91).
Nesse espírito, “a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia”, a dizer, do modelo capitalista neoliberal e financeiro; a nova economia, sustenta Francisco, precisa ser “mais atenta aos princípios éticos”, bem como se faz necessária “uma nova regulamentação da atividade financeira especulativa e da riqueza virtual” (ibidem, n. 189). De fato, não há sustentabilidade de qualquer tipo num modelo pautado pela acumulação de riqueza fictícia (D – D’), e é preciso enfrentar os problemas da economia real. No mesmo ano da publicação dessa Encíclica, foi simbólico o seu pronunciamento no Congresso dos Estados Unidos:
Penso aqui na história política dos Estados Unidos, onde a democracia está profundamente radicada no espírito do povo americano. Qualquer atividade política deve servir e promover o bem da pessoa humana e estar baseada no respeito pela dignidade de cada um. ‘Consideramos evidentes, por si mesmas, estas verdades: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade’ (Declaração de Independência, 4 de Julho de 1776). Se a política deve estar verdadeiramente ao serviço da pessoa humana, segue-se que não pode estar submetida à economia e às finanças. É que a política é expressão da nossa insuprível necessidade de vivermos juntos em unidade, para podermos construir unidos o bem comum maior: uma comunidade que sacrifique os interesses particulares para poder partilhar, na justiça e na paz, os seus benefícios, os seus interesses, a sua vida social. Não subestimo as dificuldades que isto implica, mas encorajo-vos neste esforço. (FRANCISCO, 2015b)
Para o Papa, portanto, o bem comum, que é o princípio número um da DSI, “desempenha um papel central e unificador na ética social”, e apresenta-se como uma “noção inseparável” da ecologia integral (FRANCISCO, 2015a, n. 156). Ele entende que “toda a sociedade – e, nela, especialmente o Estado – tem obrigação de defender e promover o bem comum” (ibidem, n. 157), e que a opção preferencial pelos pobres “é uma exigência ética fundamental para a [sua] efetiva realização [...]” (ibidem, n. 158).
Também na terceira parte (o pacto de Assis) da mensagem aos jovens do evento, o Papa define esse pacto como uma “tarefa inadiável”, e chama a atenção daqueles que “terão a oportunidade de agir e influenciar as decisões macroeconômicas, onde está em jogo o destino de muitas nações”, algo que já abordava na Conferência do CELAM em Aparecida, em 2007. Tal pacto deve envolver um programa focado em “reduzir desigualdades”, bem como na “promoção dos países mais desfavorecidos e em desenvolvimento” (FRANCISCO, 2020a).
O evento convocado em 1º de maio de 2019 e realizado virtualmente em sua primeira edição entre os dias 19 e 21 de novembro de 2020 encontra, então, em Assis, a inspiração de Francisco e Clara como jovens que, em plena Idade Média, abraçaram o ideal da pobreza e do seguimento de Jesus Cristo como resposta à degradação humana e social da época. E, em plena pós- (ou hiper-) modernidade, jovens do mundo inteiro (em torno de dois mil) são chamados, sob a mesma inspiração, para realmar uma economia visivelmente em ruínas .
Nesse processo, importa não perder de vista quatros princípios fundamentais que, antes de ser eleito Papa, o Cardeal Bergoglio já explicitava como necessários a um povo na construção de um projeto comum: no âmbito da tensão entre plenitude e limite, ele ressalta os princípios de que “o tempo é superior ao espaço” (visão de processo) e de que “a unidade é superior ao conflito”; no âmbito da tensão entre ideia e realidade, ele destaca o princípio de que “a realidade é superior à ideia”; e, no âmbito da tensão entre o global e o local, ele afirma que “o todo é superior à parte” (BERGOGLIO, 2013, p. 57-69). São princípios fundamentais para entender o pensamento econômico de Francisco, e que se aplicam à própria ação evangelizadora antes citada.
A partir desses princípios, e especialmente os do todo superior à parte e do tempo superior ao espaço, o Papa insiste no trato contínuo das “causas estruturais das disfunções da economia mundial” (FRANCISCO, 2015a, n. 6), o que ele ressalta mais de uma vez na mensagem aos jovens no evento. Não há como firmar esse pacto sem visão global, ainda que a ação predominante seja aquela ao alcance dos pés e das mãos, que é local; da mesma forma, não se pensa e realiza o “novo” sem que o seja de forma processual, o que significa que a Economia de Francisco se desenrola desde antes e para além do evento (e tanto em perspetiva internacional, como nacional e regional).
Ainda na terceira parte (o pacto de Assis) da mensagem aos jovens do evento, o Papa os conclama para “fazer progredir modelos econômicos que beneficiem todos, porque a abordagem estrutural e decisória será determinada pelo desenvolvimento humano integral, tão bem elaborado pela Doutrina Social da Igreja” (FRANCISCO, 2020a). É, para ele, a perspectiva (principiológica) que congrega as demais (princípios ou categorias), tais como ecologia integral, bem comum, opção preferencial pelos pobres, cultura do encontro, Igreja em saída, etc.
Aqui, a relação é direta com a Encíclia Fratelli tutti (sobre a fraternidade e a amizade social), lançada em 2020 na véspera do dia de São Francisco. Igualmente revelador do espírito franciscano deste pontificado, esse documento também traz ainda mais clareza sobre o pensamento econômico de Francisco, que chama o neoliberalismo de um “dogma de fé” baseado num “pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja” em sua “mágica teoria do ‘derrame’ ou do ‘gotejamento’” (FRANCISCO, 2020b), a famosa “trickle-down economics” .
A esse modelo (capitalista neoliberal), o Papa propõe um “não” rotundo, totalmente em linha com a DSI, e da mesma forma que o faz no início do pontificado, no capítulo segundo da Evangelii gaudium. Para Francisco de Roma, assim como para o de Assis , a lógica de dominus (senhorio) precisa ser subsituída pela de frater (fraternidade universal) (cf. BOFF, 2020), o que também nos permite rever a próprio noção de domínio, que deve ser de amor e serviço, tal como apresentado por Jesus no lava-pés, e não de dominação (cf. RAUPP, 2013, p. 124-130).
Assim, afastando-se de concepções ideológicas (as quais têm em grande medida sequestrado o senso de fé dos fieis junto de interpretações fundamentalistas da mesma fé), o Papa aponta o desenvolvimento humano integral como princípio balizador da nova economia, e o faz como algo possível: “este é o caminho – uma boa notícia a profetizar e implementar, pois propõe que nos encontremos como humanidade com base no melhor de nós mesmos: o sonho de Deus, que aprendamos a cuidar do nosso irmão, e do nosso irmão mais vulnerável (cf. Gn 4, 9)” (FRANCISCO, 2020a).
Não há dúvidas de que a visão do pontificado de Francisco sobre a economia e o chamado que ele faz a uma nova cultura econômica são partes importantes do processo de renovação eclesial, mantendo relação direta com sua própria eclesiologia desde a categoria da Igreja em saída, como abordado anteriormente. Seu nome, inclusive, é escolhido em face do compromisso, enquanto Bispo de Roma e Papa da Igreja Católica, de nunca esquecer os mais pobres (cf. SUSIN in PASSOS e SOARES, 2013, p. 120).
Momentos e categorias do pontificado de Francisco sobre a Economia. Elaboração: Klaus da Silva Raupp e Luiz Carlos Susin.
Concluindo a partir do que sugere o biógrafo Austen Ivereigh, é preciso ser radical – ir até as raízes, a começar pelo Jesus histórico – para realizar a grande reforma (cf. IVEREIGH, 2014, p. 381). Isso posto, faz-se mister, neste campo e enquanto Igreja, afirmar a necessidade da superação do atual modo de produção econômica a partir de uma nova perspectiva desde os mais pobres e excluídos. Olhar desde as periferias é o convite que faz o Papa vindo do “fim do mundo”, como dito por ele no balcão da Praça São Pedro em sua primeira saudação ao povo.
Essa perspectiva pressupõe uma visão integral de mundo e de ser humano, diante da premissa (antes mesmo de um princípio) do humanismo integral, tal como apresentado no compêndio da DSI. Da mesma forma, orienta-se pelo princípio do bem comum, e em favor do povo (também como superação de políticas anti-povo perpetradas por modelos econômicos cuja centralidade não está na criação e na humanidade). Urge uma nova economia, pois a atual está em ruínas, e a própria pandemia acentuou a percepção nesse sentido.
Em grande síntese, o Papa Francisco sonha com uma nova economia a partir de um pacto construído de forma participativa e plural, razão pela qual convoca jovens do mundo inteiro, e também especialistas das áreas correlacionadas, para que gerem reflexão e iniciem processos que levem em consideração tanto as prioridades de nível micro (territorial), como as de nível macro (nacional e global). Esse sonho corresponde, como ele mesmo diz, à “visão de um futuro repleto da alegria do Evangelho” (FRANCISCO, 2020a).
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