Os apelos de Bergoglio e as ideias de Küng: quando a Igreja se descobre “comunista”

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14 Abril 2021

 

Certamente, trata-se apenas de uma coincidência, já que, do ponto de vista teológico e cultural, Jorge Mario Bergoglio e Hans Küng foram muito diferentes. Mas, nestas horas, vem à tona um fato: o falecimento do grande teólogo suíço coincide com a abertura de uma nova página na renovação do discurso cristão, não só católico, por parte do bispo de Roma.

 

O comentário é de Riccardo Cristiano, vaticanista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio, publicado por Reset, 12-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Hans Küng foi um grande intelectual do norte-europeu; Bergoglio é um grande intelectual latino-americano. A teologia do primeiro e a do segundo, porém, têm, nas suas evidentes diferenças, um ponto de encontro: a importância do espírito evangélico, em vez do da Idade Média.

A nova fase bergogliana, que começou em nome da fraternidade ainda no dia da sua eleição, quando disse no seu primeiro discurso público como bispo de Roma: “Rezemos sempre por nós, uns pelos outros, rezemos por todo o mundo, para que seja uma grande fraternidade”, culminou no Documento sobre a Fraternidade Humana assinado em Abu Dhabi no dia 4 de fevereiro de 2019 e, depois, na encíclica Fratelli tutti do ano seguinte.

Agora, sob a pressão da pandemia, ele chega à redescoberta daquela que poderíamos definir como “visão comunitária monoteísta”.

 

Fraternidade e comunidade

 

Então, reconstruamos brevemente esse caminho de Bergoglio, partindo do Documento sobre a Fraternidade. Assinado junto com a mais alta autoridade teológica do Islã sunita e hoje claramente compartilhado pela suprema autoridade xiita, o Documento sobre a Fraternidade assinado em Abu Dhabi afirma:

“A liberdade é um direito de toda a pessoa: cada um goza da liberdade de credo, de pensamento, de expressão e de ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua fazem parte daquele sábio desígnio divino com que Deus criou os seres humanos. Esta Sabedoria divina é a origem de onde deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferente. Por isso, condena-se o fato de forçar as pessoas a aderir a uma determinada religião ou a uma certa cultura, bem como de impor um estilo de civilização que os outros não aceitam.”

Estamos, portanto, no rastro da maior novidade do Concílio Vaticano II, aquela que encerrou a era do gelo com o judaísmo e o Islã, reconhecendo sementes de verdade em todas as grandes tradições religiosas. Na encíclica, essa certeza é para todos, quando nela se afirma que “somos todos da mesma carne”.

Por isso, o discurso globalista e ideologicamente parailuminista de um mundo massificado, uniformizado, sem respeito pelas diferenças entre povos, culturas e religiões é rejeitado em nome da fraternidade entre diferentes, desejados, assim, pelo sábio desígnio divino.

Para Bergoglio, “o todo é superior à parte”. E, como o mundo é feito de polaridades em tensão, “entre a globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não cair em uma mesquinha cotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam em um universalismo abstrato e globalizante, miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de artifício do mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados; o outro extremo é que se transformem em um museu folclórico de ‘eremitas’ localistas, condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras” [Evangelii gaudium, n. 234].

 

Comunidade, comunhão, comunismo

 

Essa grande visão da fraternidade chega agora ao ponto nodal da visão comunitária sob a pressão desta terrível conjuntura pandêmica. E Francisco parece determinado a tomar dos marxistas a hegemonia sobre o “comunismo”. É esse desafio, a recuperação da visão comunitária para o pensamento religioso, que nos levará a Hans Küng.

A visão comunitária pertence ao pensamento religioso há tempos muito distantes, e, se olharmos para a própria celebração cristã, não podemos deixar de nos perguntar por que a comunhão se chama assim.

Lemos no verbete “comunhão” no site da enciclopédia Treccani: “É o sacramento central do cristianismo, definido como prolongamento da encarnação do Verbo, pois, por um lado, comemora e renova o sacrifício de Jesus Cristo, e, por outro, realiza a comunhão dos fiéis com o Redentor, razão pela qual se chama comunhão”.

Nunca na história destes 2.000 anos de história o sacramento central do cristianismo foi chamado de “individualização” ou “privatização” da relação com o Redentor.

O dado comunitário ou, se se quiser, comunista também é central no judaísmo. Um exemplo: no livro do Eclesiastes (4,1) o sábio Salomão afirma: “Examinei também todas as opressões que se cometem debaixo do sol”, e em Isaías (5,8) os termos são mais firmes: “Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país”.

Vozes isoladas? Também na enciclopédia Treccani, a respeito do judaísmo e do famoso jubileu que, no judaísmo, dá origem ao jubileu [da Igreja], explica-se assim: “Entre os judeus antigos, festividade que ocorria a cada 50 anos, santificada com o repouso da terra (razão pela qual eram proibidas a semeadura e a colheita), com a restituição da terra ao dono primitivo, quando um rico tivesse se apoderado dela, e com a libertação dos escravos”.

No Islã, além disso, temos uma escolha muito clara: a comunidade dos fiéis substitui a velha ordem tribal, criando uma verdadeira megatribo que elimina todas, com um único líder, o sucessor do profeta Maomé, e um conselho de anciãos.

O Islã também introduz nos seus cinco pilares a zakat, impropriamente chamada de “esmola”, mas que literalmente significa “purificação da avidez”.

Eis, portanto, que eucaristia, jubileu e zakat indicam um “comunismo” que muitas outras citações dos Padres da Igreja, dos profetas bíblicos e trechos do Alcorão poderiam explicar mais completamente.

 

“Eterna esquerda”

 

Isso nos leva a uma visão comunitária não marxista, que Ernest Nolte chamou, com outros, de pensamento da “eterna esquerda”. Parece justamente aquilo que Francisco disse no dia da festa da Divina Misericórdia: “Depois da sua ressurreição, Jesus opera a ressurreição dos discípulos, que, misericordiados, tornaram-se misericordiosos. Vemos isso na primeira leitura. Os Atos dos Apóstolos contam que ‘ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum’. Não é comunismo, é cristianismo em estado puro. E é ainda mais surpreendente se pensarmos que aqueles mesmos discípulos, um pouco antes, haviam brigado sobre prêmios e honras, sobre quem era o maior entre eles. Agora, compartilham tudo, têm um só coração e uma só alma”.

Certamente, o Reino de Deus é hoje, enquanto eu vivo, enquanto eu me comporto assim e não assado, mas o Reino de Deus não será completamente realizado por nós. Mas, repete Bergoglio, os cristãos são chamados a agir na história, e esse modelo de vida, de comunidade, de solidariedade existe: é o cristianismo.

O que Francisco disse na sua recente mensagem ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial nos confirma esse elemento objetivo, assim como a encíclica Centesimus annus nos diz que essa visão era a visão de João Paulo II, e um grande historiador do cristianismo, o professor Massimo Borghesi, disse que isso visava a uma “teologia da libertação sem marxismo”.

Justamente como Francisco, que, não sendo polonês, mas latino-americano, pôde entender, embora não compartilhar, os anos de uma teologia que não compartilhou sobretudo porque, como explica muito bem um texto inédito dele, publicado recentemente pela revista La Civiltà Cattolica, nenhuma interpretação da realidade pode ser definitiva, começando pela marxista.

Bergoglio escrevia nos anos 1980, tentando se explicar aos cristãos marxistas: “Toda realidade tem, em si mesma, o seu modo de se revelar, que nasce das próprias potencialidades que lhe são inerentes. Revela-se em consonância com aquilo que é”.

Foi, portanto, o comunismo marxista, com o materialismo histórico, que pretendeu dar uma interpretação científica da realidade que dividiu os dois pensamentos, quase como se os marxistas tivessem imposto um cisma, como que dizendo que os verdadeiros sacerdotes eram eles. Esse cisma levou o cristianismo “oficial” a se apresentar ou a se pensar como “burguês”.

Agora, isso não é mais possível. O cristianismo é uma religião universal, não continental, não é apenas para o Ocidente. É por isso que Francisco escreveu ao FMI e ao Banco Mundial que “a noção de retomada não pode se contentar com um retorno a um modelo desigual e insustentável de vida econômica e social, em que uma minúscula minoria da população mundial possui a metade da sua riqueza”.

É por isso que, na mesma carta, ele falou de uma dívida sobre a qual nunca se fala, a dívida ecológica, contraída pelos ricos extratores em relação aos países de extrativismo selvagem.

Portanto, a pandemia nos obriga a escolher agora: queremos sair da crise pandêmica melhores ou piores? Se quisermos sair melhores, para Francisco, “é preciso conceber formas novas e criativas de participação social, política e econômica, sensíveis à voz dos pobres e comprometidas em incluí-los na construção do nosso futuro comum”.

O desafio de Francisco, portanto, é o de falar à cultura originária e originante dos grandes monoteísmos (acredito que também dos pensamentos religiosos orientais, mas não tenho elementos de conhecimento suficientes para defender isso) para nos fazer sair do duplo século das ideologias, os séculos XIX e XX, que viram o desmoronamento do pensamento da “eterna esquerda”: um pensamento que nunca foi violento, mas só se tornou assim em Babeuf, verdadeiro pai de uma luta de classes violenta, incompatível com o princípio bergogliano segundo o qual “o todo é superior à parte”.

 

Hans Küng, o católico “universal”

 

E Hans Küng? Ele acreditava em uma reaproximação teológica que pudesse favorecer aquela ética mundial à qual dedicou anos de vida. Por causa desse fim, dificilíssimo, ele sofreu ofensas, insultos, ataques terríveis. Mas a sua ideia merece ser lembrada, porque ajuda a entender um método, uma visão: a do exclusivismo definicionista.

Assim como os marxistas acreditavam que podiam definir o comunismo como uma “teoria científica” deles, definida e realizável na terra por eles e somente por eles, definindo como herege ou traidor qualquer um que ousasse pensar em alguma variante, assim também os defensores de todas as ortodoxias não puderam suportar Hans Küng, o católico “universal”.

Para Hans Küng, a ideia de que Jesus era “o Filho de Deus” não pode ser entendida fora da linguagem e da cultura semita. Essa verdade indiscutível para ele, porém, deve ser inserida naquela língua, naquela cultura. Se não quisermos nos tornar donos da verdade, teremos que reconhecer, afirma Hans Küng, que, “independentemente dos conceitos helenísticos com os quais os Concílios helenísticos definiram a questão, no Novo Testamento, sem dúvida, entende-se não uma descendência, mas a posse em uma posição de direito e de poder em sentido hebraico vetero-testamentário. Não uma filiação divina de caráter físico, como nos mitos helenísticos e como ainda hoje é muitas vezes entendido e rejeitado com razão por judeus e muçulmanos, mas sim uma eleição e uma concessão de poder a Jesus da parte de Deus, inteiramente no sentido da Bíblia hebraica, na qual às vezes todo o povo de Israel também pode ser chamado de ‘Filho de Deus’.

Se ainda hoje a filiação divina fosse afirmada na sua acepção original, seriam menos fundamentais as objeções que podem ser levantadas contra ela do ponto de vista do monoteísmo judaico e islâmico. Para os judeus, os muçulmanos, mas também para os cristãos, a expressão ‘Deus fez o homem’ é enganosa. Para ser correto, se deveria falar com Paulo sobre o ‘envio do Filho de Deus’ ou, com João, de ‘encarnação’ do ‘Verbo de Deus’. Jesus é a ‘Palavra’, a ‘Vontade’, ‘Imagem’, o ‘Filho’ de Deus em forma humana”.

Se pensarmos que o Alcorão define Jesus ora como verbo, ora como palavra de Deus, se pensarmos que os cristãos semitas dos primeiros séculos eram quase todos monofisitas, ou seja, acreditavam em Jesus Filho de Deus no sentido indicado por Hans Küng, se entenderá que a sua tese pode não ser compartilhada, mas não pode ser ridicularizada.

Hans Küng sabia muito bem que os monofisitas, isto é, aqueles que não acreditavam na dupla natureza de Jesus, foram perseguidos pelos cristãos bizantinos que emergiram dos grandes Concílios helenísticos. Mas, para nós, a sua coragem pode ser fundamental não para demonstrar que ele tem razão, mas para reabilitar a liberdade de pesquisa e de outras pesquisas.

Assim como o marxismo não tem a exclusividade sobre o comunismo, assim também as religiões podem ser menos dogmáticas e reconhecer o valor positivo de tudo aquilo que, com elas, tenta nos tornar fraternos. O caminho rumo ao encontro desejado por Hans Küng é mais árduo do que a fraternidade dos diferentes de Francisco, mas o seu esforço certamente ajudou a criar as condições para que muitos entendessem a importância do fato de se entender como “irmãos”.

Porém, é evidente que alcançar a paz entre as religiões hoje é importante para todos os homens e mulheres, e que, na pulsão comunitária ou comunista dos monoteístas, há a liberação de um anseio, de um sentimento, de uma natureza, ou seja, de uma tendencialidade sem a qual será difícil sairmos melhores da crise pandêmica e ambiental.

 

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