“O papa Francisco vê a economia em termos de capitalismo redistributivo, onde o Estado é o ator-chave na redistribuição da riqueza. Francisco também está muito longe da retórica dos neo-integralistas católicos radicados nos EUA, que enfatizam a vitimização da Igreja nas mãos do Estado-Nação. A visão pragmaticamente positiva do Papa sobre o Estado-Nação não vem apenas de seu realismo político, mas também tem raízes teológicas. Francisco ainda ecoa aquele pressuposto fundamental do Concílio Vaticano II: a Igreja e o Estado-Nação podem e devem cooperar para o bem comum. Francisco é um católico do Vaticano II cuja visão do Estado-Nação está muito distante da eclesiologia política da ortodoxia radical”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor na Villanova University, EUA, em artigo publicado por Berkley Center for Religion, Peace and World Affairs, 26-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Um nome que se encontra na Fratelli Tutti – assim como no discurso do papa Francisco entregue ao Congresso em 24 de setembro de 2015 – é Martin Luther King Jr. A última encíclica papal não nomeia políticos e é tímida em menções a exemplos políticos de santidade, especialmente exemplos católicos. Mas Fratelli Tutti não é tímida em direcionar e nomear os assuntos sociais e políticos: nacionalismo, populismo, colonização e escravidão. A encíclica oferece um propósito sobre como construir a fraternidade humana: o amor social, o amor político, subsidiariedade, solidariedade e cidadania.
O conceito de cidadania, em particular, é interessante porque revela uma tomada de posição interessante por Francisco sobre um dos assuntos debatidos no catolicismo, especialmente no catolicismo anglófono, durante os últimos anos: o Estado-Nação. O papel dos Estados-Nacionais é mencionado diversas vezes em Fratelli Tutti. No parágrafo 132, por exemplo, fala sobre a necessidade dos esforços comum na comunidade internacional para enfrentar movimentos de migração. E no parágrafo 153 defende os Estados que frequentemente encontram-se à mercê dos Estados mais poderosos e dos grandes empresários.
Muitos parágrafos no capítulo cinco, “A política melhor”, fala sobre os Estados-Nacionais. No início do capítulo, Francisco lamenta que “O século XXI assiste a uma perda de poder dos Estados-Nacionais, sobretudo porque a dimensão econômico-financeira, de caráter transnacional, tende a prevalecer sobre a política. Neste contexto, torna-se indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre governos nacionais e dotadas de poder de sancionar” (FT 172).
O papa Francisco também fala a favor dos “acordos multilaterais entre os Estados, porque garantem melhor do que os acordos bilaterais o cuidado dum bem comum realmente universal e a tutela dos Estados mais vulneráveis” (FT 174). Ele então defende o papel do Estado: “a política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia [...] Não se pode pedir isto à economia, nem aceitar que ela assuma o poder real do Estado” (FT 177). Francisco continua falando sobre o projeto de nação: “a grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo. O poder político tem muita dificuldade em assumir este dever num projeto de nação e, mais ainda, num projeto comum para a humanidade presente e futura” (FT 178).
Mas ao mesmo tempo, Fratelli Tutti chama os Estados a assumirem a responsabilidade em caso de “violência perpetrada pelo Estado” (FT 253) e em reação à punição do capital, como também execução extrajudiciais ou extralegais. (FT 267).
Fratelli Tutti não constitui uma análise abrangente do papel do Estado-Nação, mas é consistente com as declarações anteriores de Francisco. É um documento particularmente interessante para comparar com o que o papa Francisco compartilhou em um livro em estilo de entrevista publicado pelo sociólogo francês Dominique Wolton em 2017. O livro examina o papel do Estado-Nação em todo o mundo e inclui as perspectivas de Francisco sobre a secularidade saudável (a tradução católica do conceito francês de laïcité) e a necessidade de a Igreja deixar para trás o Estado confessional.
Fratelli Tutti lança luz sobre a cultura política e a teologia política do papa Francisco. Jorge Mario Bergoglio é um católico nascido e criado em meados do século XX, que atingiu a maioridade jesuíta na era de ouro do internacionalismo pós-Segunda Guerra Mundial. Esta foi a era de ouro do Estado-Nação, bem como uma época em que os católicos deram contribuições intelectuais e políticas para a reconstrução de seus Estados. Sua formação e visão de mundo estão muito distantes da teologia “radicalmente ortodoxa” do final do século XX e início do século XXI, que vê o Estado-Nação como um fetiche criado e manipulado pela ordem liberal.
Francisco é um Papa global: o primeiro Papa não europeu e não mediterrâneo, cujas raízes culturais e políticas estão na América Latina, mas também na Europa. Isso se tornou visível nos últimos anos, com referências papais mais frequentes à Europa e à União Europeia como um projeto político. Isso também significa uma distância clara entre Francisco e o mundo “anglobalizado” – não apenas da anglobalização neoimperial, mas também do populismo e nacionalismo de Trump e Brexit. Francisco está afastado das teologias políticas católicas e protestantes da pós-modernidade com raízes Anglo, tanto em versões ortodoxas radicais quanto em versões progressistas liberais.
Quando ele fala sobre o Estado, governo, organizações internacionais e o papel da Igreja no mundo, a linguagem de Francisco sobre política é muito mais moderna do que pós-moderna. É particularmente revelador que ele veja, de forma pragmática e não ideológica, nos Estados-Nacionais um ator indispensável que tem uma enorme responsabilidade no cuidado do bem comum global, eliminando a fome e a pobreza e defendendo os direitos humanos fundamentais.
O papa Francisco também vê a economia em termos de capitalismo redistributivo, onde o Estado é o ator-chave na redistribuição da riqueza. Francisco também está muito longe da retórica dos neo-integralistas católicos radicados nos EUA, que enfatizam a vitimização da Igreja nas mãos do Estado-Nação. A visão pragmaticamente positiva do Papa sobre o Estado-Nação não vem apenas de seu realismo político, mas também tem raízes teológicas. Francisco ainda ecoa aquele pressuposto fundamental do Concílio Vaticano II: a Igreja e o Estado-Nação podem e devem cooperar para o bem comum. Francisco é um católico do Vaticano II cuja visão do Estado-Nação está muito distante da eclesiologia política da ortodoxia radical – e ainda mais distante de planos de retirada como “a Opção Bento”.
Fratelli Tutti tem gênese, público e objetivos inter-religiosos, com um foco particular na parceria com o Islã por meio do grande Imám de Al-Azhar, xeque Ahmad al-Tayyeb. A ênfase do papa Francisco no Estado-Nação é mais uma forma de afirmar a necessidade de uma secularidade saudável em nossa política global: a afirmação da necessidade de o estado evitar a falsa neutralidade tecnocrática e as tentações teocráticas.
O ponto de vista do papa Francisco é o catolicismo global em um mundo global, onde a ascensão de “estados civilizacionais” (China, Rússia, Índia e Turquia) é parte integrante da atual crise da ordem internacional. Neste mundo global, a opção do papa Francisco é pela secularidade saudável – e não pelos sonhos de uma cristandade neo-medieval, onde o Estado-Nação moderno é facilmente descartado como um fetiche.