Encontros de católicos e muçulmanos retratados em Fratelli Tutti

Foto: FlickrCC Catholicnews/Mazur

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

21 Outubro 2020

“Os cristãos devem ser abertos sobre sua identidade e fé, dizia o santo, e podem testemunhar a mensagem do Evangelho quando perceberem que agrada a Deus. Para os Franciscos – tanto o papa quanto o santo – a fidelidade ao Senhor não se mede simplesmente pelas doutrinas que professamos, mas pelo modo como amamos os outros. O amor é o padrão final; quando amamos os outros como irmãos na família humana, aí está Deus”, escreve Jordan Denari Duffner, candidata ao doutorado em Teologia e Estudos Religiosos na Universidade de Georgetown, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 20-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis o artigo.

 

Logo no início do seu papado, Francisco anunciou que o diálogo com muçulmanos seria uma das prioridades do seu pontificado. Desde então, ele visitou numerosos países de maioria islâmica, encontrou-se com famílias e líderes muçulmanos, falhou profeticamente da necessidade de católicos tratarem muçulmanos com respeito – particularmente aqueles que são migrantes –, e expressou gestos significativos que falam da estima da Igreja pelos muçulmanos, declarada no Concílio Vaticano II.

Embora sua mais nova encíclica, Fratelli Tutti, nunca mencione as palavras “Islã” ou “Muçulmanos”, é parte do legado mais amplo de que Francisco deixará a Igreja nas relações católico-muçulmanas, bem como nas relações inter-religiosas de forma mais ampla.

Experiências pessoais de diálogo católico-muçulmano retratam e inspiram a Fratelli Tutti. No início do documento, Papa invoca seu próprio homônimo, São Francisco de Assis, que se encontrou com o sultão al-Malik al-Kamil em meio às Cruzadas. Ele fecha a encíclica mencionando o beato Charles de Foucauld, que viveu e morreu entre os muçulmanos no norte da África no século XX.

As próprias experiências de amizade de Francisco com os muçulmanos também conformam a encíclica. Ele escreve que sua escolha de se concentrar no tema da “fraternidade humana” foi inspirada em parte pelo documento conjunto que ele escreveu e assinou com o Grande Imám Ahmad al-Tayyeb, chefe da Al-Azhar, uma conhecida universidade e mesquita islâmica no Egito. Durante o pontificado de Francisco, os dois formaram uma amizade, e um de seus frutos foi o documento conjunto sobre os valores – informados por suas respectivas tradições de fé – que compartilham. Várias vezes ao longo da encíclica, Francisco cita sua declaração conjunta e cita uma parte significativa dela no final. A jornalista Claire Giangrave comentou que, “quase se poderia dizer que esta é uma escrita a quatro mãos. É o Papa Francisco e o Grande Imám se unindo”.

Na encíclica, Francisco também quer chamar nossa atenção para um episódio menos conhecido da vida de São Francisco. Enquanto os exércitos cristãos e muçulmanos lutavam no Egito em 1219, São Francisco foi ao acampamento do sultão muçulmano em uma tentativa de fazer a paz. O Papa chama de encontro “extraordinário”, escrevendo que São Francisco “não procurou, não travou uma guerra de palavras para impor doutrinas; ele simplesmente espalhou o amor de Deus”. Embora Francisco possa ter vindo com o objetivo de converter o sultão, ele não teve sucesso, e seus escritos posteriores mostram que ele estava comprometido com uma abordagem inter-religiosa diferente: não tentando converter muçulmanos por meio de argumentação e denúncia, mas sim vivendo ao lado deles em um espírito de presença amorosa, hospitalidade e serviço humilde.

Os cristãos devem ser abertos sobre sua identidade e fé, dizia o santo, e podem testemunhar a mensagem do Evangelho quando perceberem que agrada a Deus. Para os Franciscos – tanto o papa quanto o santo – a fidelidade ao Senhor não se mede simplesmente pelas doutrinas que professamos, mas pelo modo como amamos os outros. O amor é o padrão final; quando amamos os outros como irmãos na família humana, aí está Deus.

Não é apenas significativo que Francisco apresentou o encontro entre o santo e o sultão, mas também como ele retratou esse encontro. Como observaram os estudiosos franciscanos contemporâneos, o encontro de 1219 entre Francisco e al-Kamil foi frequentemente invocado para fins triunfalistas e visto como um incentivo ao proselitismo para os muçulmanos. São Francisco é frequentemente retratado em obras de arte e versões posteriores dessa história como um pregador dominante, em vez de um humilde servo. Ainda hoje, há debates entre os católicos sobre qual versão de São Francisco deve ser o modelo de relacionamento para com os muçulmanos.

Com esta encíclica, Francisco nos deixou conhecer a sua posição nesse debate.

Como um erudito praticante do diálogo muçulmano-cristão e alguém que estuda o pluralismo religioso, fiquei particularmente impressionado com esta frase da encíclica: “A Igreja valoriza as maneiras pelas quais Deus trabalha em outras religiões”. Francisco prossegue citando a Nostra Aetate, afirmando que a igreja “nada rejeita do que é verdadeiro e santo nessas religiões. Ela tem uma grande consideração por seu modo de vida e conduta, seus preceitos e doutrinas que... muitas vezes refletem um raio que verdadeiramente ilumina todos os homens e mulheres”.

Em vez de ver outras tradições religiosas e comunidades como concorrentes ou ameaças, Francisco quer que estejamos atentos ao que é “verdadeiro e santo” nelas, vendo essas muitas coisas como agradáveis a Deus e até mesmo como resultado da atuação de Deus entre nós. Essa linha também poderia estar falando ao que Francisco tinha em mente no documento conjunto que ele assinou com o Imám al-Tayyeb, onde eles disseram que “o pluralismo e a diversidade das religiões... são desejados por Deus em Sua sabedoria”.

Muitos católicos se irritaram e rejeitaram a noção de que Deus “deseja” a diversidade religiosa, temendo que ela subordine ou relativize o papel de Cristo. Sem explicar completamente o que pretendia com aquela passagem, Francisco em Fratelli Tutti deseja que os católicos vejam outras religiões como forças positivas no mundo, que ajudam a alcançar o propósito de Deus de fraternidade humana universal.

Vendo pessoas de outras religiões como parceiros em uma missão comum, Francisco incluiu um muçulmano, o juiz Mohamed Mahmoud Abdel Salam, como apresentador no evento para marcar o lançamento da encíclica. Esta é a primeira vez que um muçulmano apresenta uma encíclica papal, falando entre prelados católicos e nas cadeiras normalmente ocupadas por cardeais na sala sinodal.

Abdel Salam, que é ex-conselheiro do Imám al-Tayyeb que trabalha para o Comitê Superior da Fraternidade Humana para implementar o documento conjunto, disse: “Como um jovem muçulmano estudioso da Sharia, Islã e suas ciências, eu me encontro – com muito amor e entusiasmo – em acordo com o Papa, e compartilho cada palavra que ele escreveu na encíclica”.

Francisco conclui a encíclica com duas orações. Uma usa a linguagem trinitária e se destina a comunidades cristãs e contextos ecumênicos. A outra é uma “Oração ao Criador”, que usa uma linguagem com a qual pessoas de outras religiões – incluindo muçulmanos e judeus – podem se sentir confortáveis e pode ser usada em alguns ambientes inter-religiosos. Durante seu pontificado, Francisco não se esquivou de oportunidades de formas de oração inter-religiosa, e o fato de ter feito uma oração que poderia ser dita por outros crentes é uma evidência de sua profunda estima pelas outras religiões, sua confiança nas orações de não-cristãos e seu reconhecimento de que, mesmo em meio às nossas diferenças, há tantas coisas que unem a família humana.

Leia mais