É interpelado: “O filósofo Emanuele Coccia disse que você é o homem mais livre da Europa...”. “O comentário de Coccia é de uma amabilidade incomum. Intui bem quando diz que, no meu caso, o preço da liberdade foi o de ser marginalizado por parte da filosofia acadêmica. A filosofia acadêmica não gosta que alguém de suas fileiras se comporte como um intelectual público e fale para uma audiência mais ampla”, responde.
Sim, para Peter Sloterdijk a livre expressão em todas as suas formas tem seus preços (ou custos). Em nosso país [Argentina], acaba de ser publicado Fobocracia (Godot), no qual esmiúça os monoteísmos e já adverte na primeira página: “A teologia é um terreno demoníaco”.
Na cena da filosofia contemporânea, a voz de Sloterdijk ressoa certeira e sem estridências da cidade alemã de Karlsruhe (a quase 700 km de Berlim) e percorre o mundo. Sua leitura atenta e precisa do rumo da humanidade, coloca-o acima daqueles que cedem à tentação do diagnóstico apressado, à síntese ligeira diante de tragédias como a Covid.
Sloterdijk envenena a ponta de seus argumentos e os lança com a exatidão de um arqueiro germânico medieval. Assim protagonizou uma polêmica com Jürgen Habermas que todos gostam de lembrar, menos os protagonistas dela. É leitor assíduo de Martin Heidegger, Hannah Arendt e Friedrich Nietzsche. Dá aulas na Escola de Arte e Design de Karlsruhe.
Após uma conversa telefônica, o grande filósofo alemão respondeu um longo questionário por escrito que reflete suas preocupações e obsessões sobre o devir político, social e cultural de um mundo agitado pela pandemia, os talibãs, o desenvolvimento da genética, o destino europeu, entre outras inquietações.
A entrevista é de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista Ñ, 27-08-2021. A tradução é do Cepat.
No próximo dia 11 de setembro, os atentados contra as Torres Gêmeas completarão 20 anos. Coincidência ou não, ao mesmo tempo, os Estados Unidos se retiram do Afeganistão e, em questão de horas, os talibãs retornam a esse país fortemente golpeado...
Visto com uma distância de vinte anos, o atentado do 11S colocou em marcha ou reforçou gravemente uma espiral de desgraças. Lembremos que esses primeiros dias após o ataque, quando ninguém sabia ao certo quem eram os seus autores, desde um primeiro momento, ficou evidente que os Estados Unidos se sentiram obrigados e justificados a exercer represálias, e rapidamente responderam militarmente.
Costuma-se esquecer que essas reações irrefletidas custaram a vida de mais de um milhão de pessoas no Afeganistão, Paquistão e Iraque. A vingança estadunidense é o fio condutor que atravessa a história das últimas duas décadas. Como podemos ver nesses dias, esse fio está se rompendo aos olhos do mundo, que observa como a retirada do Ocidente do Afeganistão deixa o país novamente nas mãos das forças cujos precursores, há mais de vinte anos, prepararam o terreno para que Osama bin Laden e a Al-Qaeda perpetrassem seus atentados contra os Estados Unidos.
Dito isso, cabe se perguntar qual é a legitimidade atribuída ao uso da retórica jihadista islâmica por parte de Osama bin Laden, em sua declaração de guerra contra os Estados Unidos. O choque do mundo islâmico com o Ocidente, em consequência da invasão napoleônica ao Egito, em 1798, colocou em circulação no mundo árabe um conceito remilitarizado do jihad que durante séculos havia tido significados de ordem muito mais espiritual.
Quando em fevereiro de 1998 Bin Laden emitiu sua fatwa contra estadunidenses, judeus e cruzados, chamando todos os muçulmanos a matar estadunidenses, militares ou civis, estava agindo, ao menos subjetivamente, segundo possíveis interpretações das sagradas escrituras. Entretanto, muitos eruditos islâmicos explicam que o islamismo do tipo Al-Qaeda ou ISIS não tem nada a ver com o “verdadeiro islã”.
Cabe supor que defendem de boa-fé suas crenças e sua cultura e querem mantê-las longe de qualquer associação com o terrorismo. Um vistazo aos livros de história é suficiente para ver que o islã se mostrou quase sempre como uma religião de espada. Para dizer com suavidade, sempre teve grandes dificuldades com os “infiéis”.
Considera que estamos diante do fim de uma era e o início de outra? A Covid atacou nosso lado mais frágil e exibiu nossa vulnerabilidade. Ainda não vimos respostas claras sobre como sair desta situação.
Desde fins do século XVIII, os escritores ocidentais expressam a sensação de viver na transição para uma nova era. É o clima de trabalho de toda a modernidade. Aqueles que acreditam que muitas coisas vão mudar, sempre tem razão.
Em pouco menos de dois anos, a pandemia se tornou o que poderíamos chamar de uma lição global, perfilando a “humanidade” como uma comunidade de cuidados que precisa enfrentar um inimigo comum invisível, um alienígena microbiano, como ocorreu há 100 anos quando a gripe espanhola deu a volta ao mundo, matando cerca de 50 milhões de pessoas entre 1918 e 1920.
A diferença entre aquele momento e agora é que o sistema de meios de comunicação duplica a pandemia. Naquele momento, os meios de comunicação estavam condenados a dar a notícia após o acontecimento. Hoje, os acontecimentos e as notícias são divulgados simultaneamente, de modo que as ondas de infecção, informação e medo estão sincronizadas.
É verdade que a pandemia nos atinge em um flanco vulnerável. Mas essa vulnerabilidade não está tanto em nossa constituição físico-biológica como humanos indefesos diante de algumas infecções virais. O rápido desenvolvimento de vacinas compensou essa parte de nossa vulnerabilidade coletiva.
O que permanece vulnerável é a nossa expectativa de poder seguir, após a crise, com o modo de vida habitual, que está baseado em um emaranhado de consumismo, ilusionismo, individualismo, hipermobilidade, promiscuidade e extensão de redes: os traços fortes dos tempos modernos. Quando todos falam, hoje, em uma “volta à normalidade”, na realidade, estão falando em retomar um estilo de vida historicamente singular, extremamente improvável e frívolo.
Deveria causar bastante espanto que tenhamos habitado essa “paranormalidade” como algo natural. Um aspecto positivo da grande crise sanitária é que em todas as partes se começou a falar das condições de imunidade. Em meu livro, Tens de mudar de vida, um ensaio sobre antropotecnia, propus o termo “coimunidade” para descrever uma função básica da coexistência humana. A crise atual traz urgência para esse termo.
Nossa relação com a natureza mudou? Encontramos gozo em nossos vínculos com os animais e o mundo vegetal?
Os episódios clássicos de peste no solo europeu foram de origem bacteriana, como a peste negra ou “morte negra”, que começou em 1348, em Florença, e se expandiu matando um quarto da população, talvez até mesmo um terço. A existência dos micróbios foi demonstrada cientificamente apenas em finais do século XIX, embora seus efeitos fossem conhecidos desde a Antiguidade. Pensemos na peste justiniana, que açoitou os povos do Mediterrâneo, a partir do ano 540, repetindo-se em intervalos de 20 anos, até fins do século VIII.
Até hoje, a maioria das pessoas não compreende realmente a diferença entre os vírus e as bactérias, no entanto, todo mundo já sabe que ambos são capazes de atentar gravemente contra a integridade orgânica dos seres humanos. Se algo está mudando em nossa relação com a chamada natureza, isso é, sobretudo, que não podemos mais romantizá-la tão facilmente como se fez nos círculos cultos da Europa, a partir de 1800, quando se pensava que a natureza era chamada a nos proporcionar sentimentos belos e sublimes, por meio de cenas alpinas ou marítimas.
Os elementos românticos voltam a estar presentes no movimento ecologista atual. Já está na hora de desmistificar o sublime. É verdade que a natureza é majestosa e sua produtividade incomensurável, mas também é a mãe de todos os venenos, tanto do reino animal como vegetal. Para Goethe, a natureza se vale da morte como meio para ter muita vida. Muito devoto para os ouvidos modernos.
Chama-me a atenção o vocabulário que você utilizava há mais de duas décadas: uma linguagem biológica. Você destacava: “O filósofo tem que infectar a si próprio, ser um imunologista”. Onde deve atuar o filósofo: no escritório ou no território?
Agradeço especialmente esta pergunta porque nos dá a oportunidade de corrigir o uso do conceito de “imunidade”, que muitos acreditam que provém da biologia ou da medicina. Na realidade, a imunidade é originalmente um conceito jurídico-moral que tem sua origem no direito romano. No sentido estrito, significa a não imputabilidade dos servidores do Estado durante o tempo em que estiverem em seu cargo.
Baseia-se na experiência de que a disputa privada e a rivalidade política tendem a levar a abusos do sistema legal. Poderes como o ódio, a inveja e o desejo de humilhação nunca descansam e também costumam lançar mão de armas jurídicas. Isso também pode ser observado hoje: as acusações contra Lula da Silva ou contra o opositor russo Alexei Navalny demonstram como os sistemas políticos corruptos abusam do poder judicial na batalha pela opinião pública.
O motivo de imunidade pretendia evitar efeitos desse tipo. Inicialmente, também podia significar a isenção de impostos e outros favores concedidos pelo Estado. Em termos gerais, expressa o reconhecimento de que os indivíduos precisam de uma proteção especial quando prestam serviços valiosos à comunidade. O conceito médico moderno de imunidade é uma metáfora jurídica de uso biológico.
Em minhas reflexões, estendo essa noção a todos os dispositivos culturais nos quais se torna visível o modo como as pessoas se protegem contra o risco de sofrer danos e vulnerações. Assim, a construção de casas e apartamentos, por exemplo, supõe a construção de sistemas imunitários especializados.
As constituições modernas estabelecem que o domicílio dos indivíduos é “inviolável”. Os estranhos só podem entrar em virtude de regulamentos especiais. Nesse sentido, um sistema imunitário pode ser definido como a expectativa corporificada de um dano ou vulneração, mais precisamente como uma expectativa ligada a priori ao estabelecimento de uma defesa.
Isso também pode ser lido em termos biológicos, mas o verdadeiro alcance dos fenômenos imunológicos se torna evidente apenas quando, junto à medicina, consideramos o sistema jurídico - como esfera dos sistemas legalizados de reparação -, a cultura habitacional e a dimensão religiosa, que costuma tratar da reintegração das almas individuais e grupais deprimidas, mortificadas e marcadas pela perda.
Por tudo o que foi dito, proponho duas coisas que estão estreitamente relacionadas: transformar a metafísica clássica em uma imunologia geral e que o filósofo continue sua formação e se especialize até se formar como imunologista. Essa é uma tese que se enlaça com a ideia do jovem Nietzsche do filósofo como “médico da cultura”. Consequentemente, voto contra a filosofia de escritório e a favor da atividade do filósofo como trabalhador público do esclarecimento.
Em sua abordagem das Esferas, vemos que existem “Bolhas” (arqueologia da intimidade), “Globos” (a intimidade que perde seu caráter individual), as “Espumas”, perda da intimidade na qual o Ocidente acreditou e conseguiu em forma de conforto e luxo. A pandemia muda o sentido dessas esferas?
Essa pergunta também me parece especialmente frutífera. Em minha trilogia Esferas, distingui entre as microsferas, ou seja, as microimunidades ou esferas da intimidade (sob a imagem de “bolhas” ou substitutos uterinos) e as macrosferas, ou seja, os construtos mundiais ou “globos” que servem para indivíduos e grupos como conceitos imaginários de macroimunidade.
Até a Baixa Idade Média, os cristãos ocidentais acreditavam que o céu era uma estrutura de sete camadas ao redor da terra, cercada por uma cobertura exterior que era o firmamento, ou seja, o céu de estrelas fixas ou céu de cristal. Assim, o cosmos se apresentava como um sistema físico que proporcionava contenção aos habitantes da terra, como se o espaço que o abarcava fosse Deus em forma de expansibilidade.
Quando o mundo moderno que se seguiu a Copérnico e Kepler rompeu com a ideia de um cosmos fechado para passar à de um universo aberto, as imunidades imaginárias precisaram se transformar radicalmente. Um cosmoteísmo à antiga não era mais viável, razão pela qual as próprias pessoas tiveram que se ocupar de seus sistemas de autoproteção. Aqui, é onde evoco a política territorial moderna, o urbanismo e a construção de casas e apartamentos.
É muito significativo que durante os episódios de confinamento da pandemia os habitantes das cidades tenham sido exilados para suas casas, com direitos de visita severamente restringidos, porque é onde estão melhor protegidos do risco de infecção. Nesse ponto, é onde fica mais evidente a qualidade imunitária de viver entre as próprias paredes. São necessários muros entre o eu e o mundo. O que se chama mundo é o que se vê por uma janela.
Isso dá conta de uma operação básica da modernidade: primeiro o isolamento, depois a criação de redes. Os arquitetos do grupo Morphosis encontraram a fórmula para isso nos anos 1970: connected isolations (isolamentos conectados). Eu chamo isso de “espumas”. A espuma é caracterizada por bolhas individuais que têm uma parede em comum.
Disse na França: “A mediocridade salvará a Europa”. O que quis dizer?
O que a não ser a mediocridade poderia salvar a Europa? A parte dominante do mundo entre os séculos XVI e XX se catapultou do centro por meio de duas guerras mundiais e caiu em uma posição relativamente periférica em termos geopolíticos como demográficos.
Hoje, a Europa forma um clube de impérios humilhados que aceitaram não ter outra alternativa a não ser uma política de circunspeção pós-imperial. A Grã-Bretanha é a exceção na medida em que abandona a União Europeia para se entregar ao sonho anacrônico da soberania imperial. A ironia sobre a saída britânica é que a Europa era em si muito grande e complicada, razão pela qual uma desintegração parcial não deixa muito a lamentar.
Xeque à globalização?
Parece-me evidente que o impacto da pandemia na globalização tem sinergia com algumas tendências de relocalização e renacionalização de processos sociais e políticos. Na crise, só os Estados nacionais demonstram ser órgãos com capacidade efetiva de atuação. Não é necessário que por isso que espalhe o pânico, nem que se dispare o alarme do novo nacionalismo. Os novos nacionalismos da atualidade são impulsionados pelo medo, não são expansionistas como os imperialismos nacionais do século XIX.
O mundo do século XXI não está marcado apenas pela gigantomaquia entre os Estados Unidos e a China, mas também por um renascimento das unidades menores, as cidades, as regiões, inclusive as nações médias e pequenas. Elas poderão dar respostas concretas às questões mais urgentes da evolução social. Só a política climática e oceânica continuará exigindo uma ação concertada em grande escala. Tudo o mais será melhor, se for reforçado reduzindo o seu tamanho.
Quanto avançou a engenharia genética? Estamos a caminho de não poder responder à pergunta sobre o que é uma pessoa? Essa visão da humanidade que você desenvolveu em um texto breve, mas de uma importância permanente, foi muito debatida – e com sangue – por parte da academia alemã – Habermas – e a academia mundial. Enfim, que lugar ocupa na filosofia e como se lê no presente? Refiro-me a ‘Regras para o parque humano...’
Em 1999, dei essa conferência que estranhamente se tornou famosa. Uma espécie de noite filosófica no qual refletia sobre como pensar a educação e os sistemas de formação do ser humano no rescaldo da galáxia Gutenberg. Minha hipótese era que os procedimentos humanistas para a formação cultural das pessoas – também poderia se falar da domesticação através de disciplinas linguísticas e artísticas – logo deixarão de ser suficientes.
O fato de que toda a tradição europeia, de Platão, passando pelos Santos Padres, e até Nietzsche, esteja impregnada por padrões de pedagogia pastoral, ou seja, o esquema do pastor e o rebanho, revela que sempre se deu por assentado que é possível dar forma às pessoas, não só com os clássicos, mas também com adestramento. O sequenciamento do genoma humano, divulgado por Craig Venter, justamente na época desse livro, demonstrou que há algo novo sob o sol no campo da formação humana, e logo teremos que nos posicionar a respeito.
Não vale a pena desenterrar a polêmica provocada por Habermas. Ele não se cobriu precisamente de louros com ela. No decorrer do assunto, ficou claro como um idealismo teórico anda de mãos dadas com um maquiavelismo prático. Em retrospectiva, não se entende mais o motivo do alvoroço.
A pesquisa genética se consolidou no espectro da ciência graças aos enormes avanços, tanto em matéria humana como não humana. Hoje, as aplicações terapêuticas já são tão positivas e diversas que fazem desvanecer qualquer objeção conservadora. Continuamos muito distantes de uma “eugenia liberal”. A criação em série de super-homens, como enxergava Trotsky, permanece uma utopia insensata e abstrata: em seu ingênuo desejo, o comunista, progressista ao extremo, pensava que algum dia até as pessoas comuns alcançariam o nível de Leonardo da Vinci ou Goethe, graças à eugenia socialista.
Se é necessário levar a sério a genética humana, é porque marca uma nova etapa na história da formação do homem pelo homem. Nietzsche chama o homem de “animal não determinado”, como tal, sempre foi um produto da autodomesticação e do desenho autoplástico. É o horizonte que abriu para nós, entramos nele guiados por um rigoroso princípio de precaução.
Há algumas décadas, você fez uma viagem mística à Índia. Como foi sua experiência com Osho? Sentiu admiração por ele?
Leve em conta que minha viagem à Índia foi há quarenta anos. Não tenho certeza se quero voltar a mergulhar nessas lembranças. Se assim fosse, gostaria ter como companheiro de viagem Roberto Calasso, o maravilhoso editor italiano que foi um grande escritor e mitólogo, e que faleceu recentemente.
Com seu livro Ardor em minha bagagem, poderia chegar a imaginar uma viagem ao tempo perdido. É verdade que pensava que Rajneesh ou Osho era um dos grandes, mas agora estou distante disso. Desde então, muita água correu pelo Reno e pelo Ganges.
Como nos vinculamos com as máquinas? A comunicação, a medicina e também as políticas parecem ficar nas mãos de robôs. Tiram conclusões de nossos gostos e tendências e nos dizem como somos e o que devemos desejar. Esse relacionamento tem um final feliz?
Nos anos 1960, soubemos escrever monografias escolares sobre “A tecnologia: bênção e maldição”. Esperava-se que pintássemos de preto a escravidão a que a tecnologia nos submete e de branco brilhante o empoderamento que ela supõe para, finalmente, chegar a uma síntese de cinza humanista. Naquela época, não havia computadores pessoais, a cibernética estava engatinhando, mas já se havia cristalizado totalmente o padrão de pensamento padronizado sobre “o homem e a tecnologia”.
O que veio depois é a ampliação da área protética, a robótica superior. Se inicialmente movimentos simples puderam ser substituídos por máquinas, agora, é possível substituir pensamentos, o que demonstra que até os processos mentais têm um lado mecânico que se presta à simulação técnica.
A coisa fica divertida quando recebo uma mensagem eletrônica de um robô que pede que eu diga que não sou um robô. Na maioria das vezes, digo obedientemente que não. Talvez devesse testar o que acontece, caso eu responda que “não sei se sou um robô”.
Um pouco de otimismo é legítimo. O ser humano é o que é graças às ferramentas: um animal que mantém distância. E tudo indica que também pode ser feliz com as máquinas, sempre e quando for manipulado do modo como mais gosta. Talvez algum dia as máquinas sejam os melhores antropólogos. Talvez em alguns anos leiamos que um robô cortou sua própria orelha e que o levaram direto para o ciberpsiquiátrico.
Esteve no cemitério do Bard College de Nova York e visitou o túmulo de Hannah Arendt. Pensou algo em especial nesse lugar?
Não tenho, em geral, uma relação especial com os túmulos. O que me comoveu do túmulo de Hannah Arendt, no campus do Bard College, no estado de Nova York, foi sobretudo o caso raro de estar enterrada em uma instalação acadêmica, junto com seu marido Heinrich Blücher, que havia dado aulas no Bard e ganhado a reputação de ser o Sócrates do Vale do Hudson.
Pareceu-me curioso e comovedor que uma judia alemã no exílio encontrasse um pequeno cemitério do campus como lugar de descanso final, como se disse: “Il n’y a rien en dehors de l’université” (Não há nada fora da universidade). Sua lápide é muito modesta.
E Heidegger? Sempre retorna a ele?
Na lápide de Heidegger, em um povoado da Floresta Negra, vi a estrela esculpida em vez de uma cruz cristã. Sem querer, pensa-se em sua frase: “Ir para uma estrela, só isso!”. Poderia ser o lema de uma gnose filosófica. Por certo, faz tempo que não leio mais Heidegger – em especial, o último – como um filósofo, mas como um grande místico e um poeta ruim.
Li que você costuma passar uma parte do ano em Provença, França. O mundo é visto diferente de lá?
É dito que nós, alemães, temos um desejo crônico do Sul. Nesse aspecto, encaixo-me perfeitamente no estereótipo nacional. Como alemães, esse complexo nos obriga a escolher entre a Itália e a Provença. No início, escolhi Provença por acaso e fiquei feliz com ela, embora continue escutando o chamado da Itália.
O Sul muda o modo de ver o mundo. Albert Camus celebrava o pensamento do Sul. Voltamos repetidamente às páginas extasiadas de seu hino Bodas em Tipasa. Às vezes, penso que a verdade não é uma propriedade das frases, mas dos dias de verão.