10 Agosto 2019
"Hoje, nos dias do despojamento do prestígio do clero católico, ordenar homens casados é um ato necessário para restaurar a confiança aos muitíssimos padres que viveram o seu ministério com pureza e dedicação; para reafirmar que a Igreja precisa de comunidades eucarísticas para poder ser ela mesma", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 09-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O outono quente da Igreja Católica está a um passo: e tocará o problema dos problemas. O reconhecimento (bem-sucedido) dos divorciados em segunda união na igreja era fácil; a tentativa (fracassada) de ressuscitar a responsabilidade dos bispos sobre os divorciados em segunda união era difícil; a mudança de ritmo diante dos abusos cometidos por padres e bispos sobre a carne ou sobre a consciência dos pequenos, um esforço (coroado de sucesso) preparado por anos de tormento. Mas agora se chegará ao problema dos problemas, que não é o celibato, mas sim o ministério do padre.
O outro tema, o celibato, é agitado despropositadamente em relação à pedofilia (que é uma pequena fração criminosa daquele público) e é a linha Maginot daquele integrismo “catolicante” que não suporta o cristianismo de Francisco.
Essa linha não pode se sustentar por muito tempo: não porque os padres sejam imorais ou escassos, mas porque a Igreja latina precisa de um ministério selecionado e vasto o suficiente para consentir com uma vida litúrgica sem a qual a transmissão da fé se reduz a colecionismo de supostos “valores” éticos ou estéticos a serem conservados em uma teca ideológica a-cristã.
No cristianismo, o celibato nasce como um sinal messiânico da proximidade do reino de Deus, que esgota o fluxo das gerações e não tem fins práticos. Na Igreja latina, perto do século VIII, decidiu-se optar por dar as ordens sagradas para aqueles que declararam uma vocação celibatária: não, portanto, a castidade monástica, mas sim a renúncia a uma família. Com um fim prático ligado aos bens eclesiásticos e com a construção, que levou um milênio, de uma “espiritualidade” e de uma teologia que construiu uma semelhança entre o corpo celibatário masculino (mas circuncidado) de Jesus com o corpo celibatário masculino (mas incircuncidado) do celebrante.
Uma reserva que, no plano conceitual, caiu no Vaticano II, quando se decidiu que o diaconato – ou seja, um dos três ministérios da ordem sagrada – fosse conferido tanto aos celibatários quanto aos casados: a partir daí, iniciava a contagem regressiva à espera do momento em que essa opção (não deixar os padres se casarem, mas tornar padres os casados) seria estendida. Espera já próxima do fim: porque em muitos lugares se diz que uma norma geral será pedida em outubro pelo Sínodo da Amazônia.
Quando o papa acolher esse pedido que – como ele gosta – abre um “processo” no tempo, ao invés de demarcar um “espaço” na norma, os fabricantes de falsas patentes de heresia, aqueles que chamam os seus medos de “doutrina” e os seus gostos de “tradição”, vão rasgar as suas vestes.
Uma história mais antiga poderia ser útil: e é a das dispensas do celibato dadas por Pio XII nos anos 1950. O caso pertence a uma fase particularmente dramática da história do catolicismo: são os anos nos quais as conversões individuais são exibidas em uma lógica triunfalista, incapaz de perceber a tragédia de uma Igreja que visa a uma anexação possessiva, militaresca, ostentada com violência.
Ele fez isso, a um passo da Shoá, com a “conversão” do ex-rabino chefe de Roma Israel/Eugênio Zolli. Ele fez isso roubando almas das outras Igrejas do Oriente e do Ocidente, quase para desafiar paternalisticamente a busca de unidade entre as Igrejas do movimento ecumênico.
Nessa operação, uma série de conversões de pastores alemães pertencentes à Igreja evangélica tiveram um peso particular. A primeira foi a do pastor Goethe, tataraneto do poeta e membro daquela parte da Igreja luterana “confessante” que não havia se curvado ao nazismo. Ordenado em Mainz, em dezembro de 1951, Goethe (que tinha então 73 anos e era casado) recebeu de Pio XII a dispensa do celibato.
Agora, o caso Goethe volta a ser bom: para recordar preventivamente à pequena, mas barulhenta, corrente antibergogliana que, quando for estabelecida também a ordenação de batizados casados, não se fará nada mais do que Pio XII já não tenha feito. Na época, um ato imperial que desafiava e deturpava a esperança ecumênica dos cristãos. Hoje, nos dias do despojamento do prestígio do clero católico, um ato necessário para restaurar a confiança aos muitíssimos padres que viveram o seu ministério com pureza e dedicação; para reafirmar que a Igreja precisa de comunidades eucarísticas para poder ser ela mesma.
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O caso Goethe e o celibato. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU