Zizek: em busca do legado crítico desaparecido

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17 Agosto 2021

 

"O novo populismo de direita procura destruir o legado emancipatório europeu: sua Europa é uma Europa de estados-nação determinados a preservar sua identidade particular", escreve Slavoj Žižek, professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia) e autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo), em artigo publicado originalmente por Portal RT e reproduzido por Outras Palavras, 13-08-2021. A tradução é de Daneil Pavan (A Terra é Redonda).

 

Eis o artigo.

 

O avanço do populismo de direita no Leste Europeu formou o que chamo de um novo eixo do mal – e ele precisa ser confrontado e derrotado. O populismo nacionalista conservador está de volta, trinta e dois anos depois da queda dos regimes socialistas no Leste Europeu, e ele quer vingança. A recente mudança de rumo de países pós-socialistas como a Hungria, a Polônia e a Eslovênia em uma direção conservadora e iliberal nos preocupa. Como foi que as coisas deram tão errado? Talvez estejamos pagando o preço de algo que desapareceu quando o socialismo foi substituído pela democracia capitalista. E não se trata do próprio socialismo, mas daquilo que mediou essa passagem.

 

O “mediador evanescente” (vanishing mediator), termo introduzido por Frederic Jameson algumas décadas atrás, designa um elemento específico do processo de passagem de um ordenamento antigo a um novo. Coisas inesperadas acontecem enquanto a ordem antiga se desintegra. Além dos horrores mencionados por Gramsci, surgem projetos e práticas utópicas promissoras. Assim que a nova ordem se estabelece, uma nova narrativa se constitui e os mediadores desaparecem deste novo espaço ideológico.

 

Eis um exemplo. Em seu livro Immaterialism: Objects and Social Theory, Graham Harman menciona um comentário perspicaz acerca dos anos 1960: “É preciso lembrar que os anos 60 realmente aconteceram na década de 70”. Logo, comenta Harman, “de certa forma, um objeto existe ‘ainda mais’ no estágio seguinte ao seu apogeu inicial. Pode-se dizer que os dramáticos anos 1960 dos americanos, com a sua maconha, seu amor livre e a violência interna foram exemplificados de forma ainda melhor pelos artificiais e insossos anos 1970”.

 

No entanto, se prestarmos mais atenção à passagem dos anos 1960 para a década de 1970, veremos com clareza a principal diferença: no início, o espírito de permissividade, a libertação sexual, a contracultura e as drogas eram parte de um movimento político utópico; já nos anos 1970, esse espírito perdeu seu conteúdo político e foi completamente integrado à cultura e à ideologia dominantes. Ainda que seja importante levantar questões acerca dos limites do espírito dos anos 60 – que tanto facilitaram a sua integração –, a repressão da dimensão política continua sendo um elemento importante da cultura popular dos anos 1970. Essa dimensão foi o “mediador evanescente” que sumiu de vista.

 

Trago tais questões pois a passagem dos países socialistas do Leste europeu para o capitalismo também não foi uma transição direta. Entre a ordem socialista e a nova ordem (liberal/capitalista ou nacionalista/conservadora) houve uma série de mediadores evanescentes que o novo poder tentou apagar da memória. Eu acompanhei este processo quando a Iugoslávia entrou em colapso. Para que não fiquem mal-entendidos, não tenho nenhuma nostalgia pela Iugoslávia. A guerra que arrasou o país de 1991 a 1995 foi a sua verdade, o momento em que explodiram todos os antagonismos do projeto iugoslavo. A Iugoslávia morreu em 1985, quando Slobodan Milosevic assumiu o poder na Sérvia e acabou com o frágil equilíbrio que a mantinha em funcionamento.

 

 

Nos últimos anos do regime, os comunistas no poder sabiam que estavam perdidos. Eles então tentaram desesperadamente encontrar uma forma de sobreviver enquanto força política na passagem para a democracia. Alguns mobilizaram paixões nacionalistas, outros toleraram, e até mesmo apoiaram, os novos processos democráticos. Na Eslovênia, os dirigentes comunistas se mostraram condescendentes com a música punk, incluindo a banda Laibach, e com o movimento gay… (Incidentalmente, chegaram a financiar um periódico gay mas, depois das eleições livres, os recursos foram cortados. O recém-eleito conselho municipal de Liubliana julgou que ser gay não é uma cultura, mas uma forma de vida que não precisa ser patrocinada).

 

Em um nível mais geral, a maioria das pessoas que protestaram contra os regimes comunistas no Leste Europeu não visava o capitalismo. Elas queriam segurança social, solidariedade, uma justiça firme; buscavam a liberdade de viver fora do controle estatal, de se reunir e se expressar como quisessem; elas queriam uma vida simples, honesta e sincera, livre da doutrina ideológica primitiva e da hipocrisia cínica dominante. Ou seja, os ideais vagos que moviam os manifestantes foram, de forma geral, extraídos da própria ideologia socialista. E, conforme nos ensinou Sigmund Freud, o reprimido retorna de maneira distorcida. Na Europa, o socialismo reprimido no imaginário dissidente retornou na chave do populismo de direita.

 

 

Ainda que, no seu conteúdo positivo, os regimes comunistas tenham sido um fracasso, eles abriram um certo espaço, um espaço de expectativas utópicas que, dentre outras coisas, nos permitiu mensurar o fracasso do próprio socialismo realmente existente. Quando dissidentes como Vaclav Havel denunciaram o regime comunista em nome da solidariedade humana, eles (sem sabê-lo, na maior parte das vezes) se pronunciaram a partir de um lugar aberto pelo próprio comunismo. É por isso que eles tendem a ficar tão desapontados quando o “capitalismo realmente existente” não atinge as altas expectativas de sua luta anticomunista.

 

Na Polônia, em um evento recente, um nouveau riche capitalista homenageou Adam Michnik por seu duplo sucesso como capitalista (ele ajudou a destruir o socialismo e é o diretor de um império publicitário altamente lucrativo); profundamente envergonhado, Michnik respondeu: “Não sou um capitalista; sou um socialista incapaz de perdoar o socialismo que não deu certo”.

 

Por que mencionar tais “mediadores evanescentes”? Em sua interpretação da queda do comunismo do Leste europeu, Jürgen Habermas se mostrou um perfeito fukuyamista de esquerda, aceitando silenciosamente que a atual ordem liberal-democrática é a melhor possível e que, ainda que seja necessário lutar para torná-la mais justa, não devemos questionar suas premissas fundamentais.

 

Foi por isso que ele louvou aquilo que muitos esquerdistas consideravam a grande deficiência dos protestos anticomunistas no Leste europeu: o fato de que tais manifestantes não eram movidos por quaisquer visões acerca do futuro pós-comunista. Para Habermas, aqueles acontecimentos na Europa central e no Leste eram apenas revoluções “retificadoras” ou de “recuperação” (nachholende) cujo objetivo era permitir que tais sociedades alcançassem aquilo que os europeus ocidentais já possuíam; em outras palavras, o retorno à normalidade da Europa ocidental.

 

No entanto, os protestos dos “coletes amarelos” na França e outras manifestações semelhantes dos últimos tempos não são movimentos de “recuperação”. Elas encarnam a bizarra inversão que caracteriza a atual situação global. Aquele antigo antagonismo entre as “pessoas comuns” e as elites do capitalismo financeiro está de volta com sede de vingança, com as “pessoas comuns” rompendo em protestos contra as elites, acusadas de ignorar seus sofrimentos e suas demandas.

 

 

O que há de novo, porém, é que a direita populista se mostrou muito mais capaz de direcionar tais erupções do que a esquerda. Por isso, Alain Badiou estava completamente correto ao afirmar, tratando dos coletes amarelos, que “Tout ce qui bouge n’est pas rouge” – nem tudo o que se movimenta (que protesta) é vermelho. O populismo de direita, hoje, faz parte de uma longa tradição de manifestações populares que foram predominantemente de esquerda.

 

Aqui está o paradoxo que temos de enfrentar: o descontentamento populista com a democracia liberal é a prova de que 1989 não foi apenas uma revolução de “recuperação”, de que ela almejava algo mais do que a normalidade capitalista liberal. Freud falava sobre Unbehagen in der Kultur, o mal-estar na cultura; hoje, 30 anos depois da queda do Muro de Berlim, a nova onda de protestos é testemunha de um tipo de Unbehagen no capitalismo liberal, e a pergunta mais importante é: quem articulará esse descontentamento? Ele ficará nas mãos dos populistas nacionalistas? Aqui está a grande tarefa da esquerda. Esse descontentamento não é novo. Eu escrevi sobre ele mais de 30 anos atrás em “Eastern Europe’s Republics of Gilead” (uma referência a O Conto de Aia), publicado pela New Left Review em 1990. Posso me citar?: “O lado sombrio dos processos em vigor no Leste europeu é, portanto, o recuo da tendência liberal-democrata diante do crescimento do populismo nacionalista coorporativo com todos os seus elementos usuais, da xenofobia ao antissemitismo.

 

A celeridade deste processo tem sido surpreendente: hoje, encontra-se antissemitismo na Alemanha Oriental (onde atribui-se a falta de comida aos judeus, e a falta de bicicletas aos vietnamitas), na Hungria e na Romênia (onde persiste a perseguição à minoria húngara). Até na Polônia é possível notar sinais de cisão no Solidariedade: o avanço de uma facção nacionalista-populista que imputa o fracasso das recentes medidas governamentais aos ‘intelectuais cosmopolitanos’ (codinome do antigo regime para os judeus)”.

 

Esse lado sombrio agora reemerge com força, e seus efeitos são sentidos no revisionismo histórico de direita: primeiro, desaparece o aspecto socialista da luta contra o comunismo (lembre-se de que o Solidarnosc era um sindicato de trabalhadores!), depois, desaparece o próprio aspecto liberal, para que emerja uma nova história na qual a verdadeira oposição é aquela entre o legado comunista e o legado cristão-nacional – ou, como afirma o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban: “Não existem liberais, apenas comunistas com diplomas universitários”.

 

No dia 7 de julho de 2021, Orban comprou uma página no jornal austríaco Die Presse para publicar suas visões acerca da Europa. Seus argumentos principais eram: a burocracia de Bruxelas age como um “superestado” que apenas protege seus interesses ideológicos e institucionais – e ninguém a autorizou a fazer isso. Devemos abandonar o objetivo de alcançar uma unidade maior pois a próxima década trará novos desafios e perigos, e os europeus precisam ser protegidos nas “migrações em massa e das pandemias”.

 

Trata-se de um falso par: os imigrantes e a pandemia não nos invadiram, nós é que somos os responsáveis pelos dois. Sem a intervenção dos EUA no Iraque e em outros países, haveria menos imigrantes; sem o capitalismo global, não teríamos uma pandemia. Além disso, é exatamente por causa da crise imigratória e da pandemia que precisamos de uma união europeia ainda mais forte.

 

O novo populismo de direita procura destruir o legado emancipatório europeu: sua Europa é uma Europa de estados-nação determinados a preservar sua identidade particular – quando, alguns anos atrás, Steve Bannon visitou a França, ele terminou um de seus discursos dizendo “América em primeiro lugar, viva a França!”. Viva a França, viva a Itália, vida-longa à Alemanha… mas não à Europa.

 

Isso significa que devemos investir todas as nossas forças em ressuscitar a democracia liberal? Não. Em um certo sentido, Orban está correto, o surgimento do novo populismo é um sintoma do que havia de errado no capitalismo liberal-democrático preconizado por Francis Fukuyama como o fim da história (hoje, Fukuyama apoia Bernie Sanders). Para salvar o que vale a pena ser salvo na democracia liberal, precisamos nos deslocar para a esquerda, em direção ao que Orban e seus companheiros entendem por “comunismo”. Mas, como?

 

Hoje, na Europa, lidamos com três posicionamentos – direita populista, centro liberal, esquerda – no interior de um mesmo arco político universal que se estende da direita à esquerda. Cada uma das três posições sugere sua própria visão acerca do espaço político universal. Para um liberal, a esquerda e a direita são os dois extremos que ameaçam nossas liberdades; se qualquer um deles predominar, o autoritarismo vence – é por isso que os liberais europeus veem uma continuidade dos métodos comunistas nos atos de Orban (em seu anticomunismo feroz).

 

 

Para a esquerda, o populismo de direita é, certamente, pior do que o liberalismo tolerante, mas ela considera o seu avanço como um sintoma do que teria dado errado no liberalismo; portanto, se quisermos acabar com o populismo de direita, devemos modificar radicalmente o próprio capitalismo liberal, que está se transformando em um domínio corporativo neofeudal. A nova direita populista explora as queixas completamente justificadas das pessoas comuns contra o reinado das grandes corporações e dos bancos, que encobrem sua exploração brutal, sua dominação e as novas formas de controle sobre nossas vidas com uma falsa justiça politicamente correta.

 

Para a nova direita populista, o multiculturalismo, o MeToo, o movimento LGBTQI+ etc., são apenas a continuação do totalitarismo comunista, algumas vezes pior do que o próprio comunismo – Bruxelas é o núcleo do “marxismo cultural”. A obsessão da alt-right com o marxismo cultural mostra o seu desinteresse em confrontar o fato de que os fenômenos que criticam, tidos como os efeitos do complô marxista-cultural (degradação moral, promiscuidade sexual, hedonismo consumista etc.), são apenas os resultados da dinâmica imanente do próprio capitalismo tardio.

 

Em The Cultural Contradictions of Capitalism (1976), Daniel Bell descreveu como o impulso irrestrito do capitalismo moderno abala os fundamentos morais da ética protestante original, sobre a qual o próprio capitalismo se construiu. Em um novo posfácio, Bell oferece uma estimulante perspectiva acerca da sociedade ocidental contemporânea, do fim da Guerra Fria ao surgimento e a queda do pós-modernismo, revelando as mais importantes fissuras culturais que enfrentamos no desenrolar do século XXI.

 

A virada em direção à cultura como componente chave da reprodução capitalista, e, concomitantemente, a comodificação da própria vida cultural, permite uma reprodução ainda maior do capital. É só pensar na atual explosão de bienais de arte (Veneza, Kassel…): ainda que elas se apresentem como uma forma de resistência ao capitalismo global e sua comodificação de tudo, elas são, em sua forma de organização, o ápice a da arte enquanto momento da autorreprodução capitalista.

 

Fica, portanto, clara a importância de lembrar dos “mediadores evanescentes”: a ordem capitalista global está, outra vez, se aproximando de uma crise, e o legado crítico radical desaparecido terá de ser ressuscitado.

 

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