Como o Comum pode reinventar a democracia

Foto: Fred Moon | Unsplash

21 Mai 2021

 

"Alguns processos que estão em curso já nos permitem antever que essa agenda do comum pode ganhar força nos próximos anos", escreve Rodrigo Savazoni, em artigo[i] publicado por Edições SESC e reproduzido por Outras Palavras, 19-05-2021.

 

Eis o artigo.

 

Nós, o povo

Nós, o povo, como diz a Constituição dos Estados Unidos, na possibilidade do exercício do poder por meio de seus representantes ou diretamente, como consagra a Constituição brasileira. Quando confrontada com o comum, a democracia surge não apenas como um sistema de governo, mas como uma filosofia política em defesa da distribuição equânime do poder. Devemos, pois, pensar essa relação democracia-comum em múltiplas camadas. Qual a democracia que exercitamos e vivenciamos no interior de nossas comunidades? Qual a democracia que os comuneiros, em aliança, querem construir para o conjunto da sociedade? Qual democracia é preciso inventar para superar este modelo hegemônico baseado na representação que foi capturado pelos interesses dos mercados? Qual democracia preservar ou superar nas relações internacionais e em âmbito multilateral? Afinal, quando pensamos a agenda política contemporânea percebemos que precisamos de uma aliança transnacional para enfrentar desafios globais.

 

Como escrevem Laval e Dardot, o comum é a busca por novas formas democráticas, ou seja, por imaginação no poder. Um exemplo em curso é o da Espanha. Depois de quase meio século da ditadura sanguinária do general Francisco Franco e de uma experiência de quase quarenta anos de bipartidarismo – alternando governos do conservador Partido Popular (PP) e do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), que podemos definir como uma agremiação de centro-esquerda –, o país da península Ibérica explodiu. Em 2011, ano de eleições para a escolha de seu primeiro-ministro, a Espanha chegou a uma situação insustentável, com altas taxas de desemprego (que subiram de 8% para 20%, número que se mantém até hoje), despejos, pacotes de austeridade fiscal, reformas neoliberais que reduziam direitos trabalhistas e previdenciários, corrupção, resgate público de bancos, num contexto de falta de crescimento econômico.

 

No dia 15 de maio, um protesto pacífico convocado pela internet pelo movimento “Democracia Real Ya”, com o lema “Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros”, reuniu milhares de pessoas em mais de cinquenta cidades espanholas e deu origem a um acampamento na Puerta del Sol, a principal praça de Madri. A ação foi reprimida durante a noite, resultando na prisão de vários ativistas. Como rastilho de pólvora, o levante viralizou pelas redes sociais, estimulando acampamentos por todo o país – a 15Mpedia (plataforma wiki para documentação do processo criada pelos próprios ativistas) registra 211 acampamentos no dia 22 de maio de 2011.

 

O episódio ficou conhecido como Movimento 15-M ou Movimento dos Indignados, ou ainda “revolução espanhola”, e muitos analistas o interconectam com a Primavera Árabe, nome dado às grandes mobilizações populares em países do norte da África, em especial o Egito e a Tunísia, que ocorreram poucos meses antes. A história do 15-M é verdadeiramente fascinante e não faltam bons livros para contá-la, mas dois são primordialmente os aspectos que me interessam neste capítulo em que me propus a pensar as relações entre o comum e a democracia: (1) a experiência dos acampamentos como espaços de construção de uma política do comum; e (2) os efeitos que esse movimento popular teve na reconstrução do sistema político espanhol, em específico com o surgimento de novas forças políticas que carregam em seu programa a ideia de bens comuns, as quais assumiram o governo das principais cidades espanholas, como Madri, Barcelona e Saragoça.

 

Para Laval e Dardot em seu livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, os protestos espanhóis são parte de um amplo movimento global de emergência de lutas do comum, que se destacam pela oposição à racionalidade neoliberal, bem como negam o estatismo de parte da esquerda tradicional. Os autores franceses desenvolvem essa ideia também em um artigo traduzido para o português pela Universidade Nômade, com o mesmo título do livro.

 

O comum nos parece ser o princípio que literalmente emergiu de todos esses movimentos. Portanto, não é algo que nós inventamos; isto surgiu das lutas correntes como seu princípio interno. O termo adquiriu assim um significado completamente novo, aquele da “democracia real”, para o qual a única obrigação política legítima não decorre da adesão a uma determinada comunidade, por mais amplo que isso possa ser, mas da participação nessa mesma atividade ou nas tarefas que a constituem (1).

 

 

Nesse sentido, o primeiro slogan do 15-M não poderia ser mais explícito ao estabelecer o foco na aliança entre políticos e banqueiros. Ou seja, entre Estado e mercado financeiro, considerados por eles gêmeos siameses no processo de destruição da democracia. Isso, porém, nos bastaria para concordar que o Movimento 15-M é um exemplo de política do comum? Difícil dizer, porque o processo espanhol envolveu partidos da esquerda tradicional e dele surgiram respostas organizacionais que não prezam pela horizontalidade, como é o caso do partido Podemos. Por outro lado, não resta dúvida de que hoje a Espanha vive um experimento avançado nessa direção. Recupero um trecho da fala de Joan Subirats, em seu livro em parceria com César Rendueles, Los (bienes) comunes, por entender que ele pode nos ajudar a compreender que a simples reivindicação do conceito nem sempre produz uma efetiva democracia do comum.

 

Como podemos relacionar o comum com a ideia de democracia? Tentando ver até que ponto falamos do comum como algo coletivo, compartilhado, que gera vínculos, que gera obrigações, que gera direitos. Como podemos transpor esse compartilhar e esse coproduzir para a gestão política? Como relacionamos isso com espaços, com formas de conexão, em que o recurso do público esteja conectado com a comunidade, com uma vontade de ser comunidade? Esse commoning (fazer o comum) como expressão de ação, de vontade de gerar o coletivo (2).

 

O Movimento 15-M sem dúvida foi, com seus acampamentos e assembleias, uma universidade de democracia para seus participantes, resultando em ampla politização dos cidadãos e na recuperação – ainda que provisória – da essência democrática. Nesse processo coletivo, ativistas, jovens desempregados, trabalhadores, estudantes, aposentados, artistas, intelectuais, entre tantos outros agentes sociais, uniram seus corpos para conversar, deliberar, decidir, discutir tendo como única perspectiva a tarefa imprescindível de transformar a realidade. Nesse fazer-a-política, fazer-o-comum, criaram pactos, regras, vínculos, obrigações, direitos. Uma das especificidades, por exemplo, foi o estabelecimento do gênero feminino nas conversações das assembleias, uma reivindicação do movimento feminista. Para viabilizar essa dinâmica de autogoverno, formaram grupos de trabalho – de alimentação, segurança, comunicação e justiça; compartilharam equipamentos e sonhos; deliberaram por consenso; ocuparam espaços reais e virtuais. A experiência do 15-M engendrou e fortaleceu inúmeros processos vivos nas cidades espanholas, com organização de centros sociais, casas coletivas, assembleias em bairros, coletivos políticos e artísticos, entre outras formas alternativas de organização que seguem contribuindo para a transformação da realidade (3). Um dos focos essenciais dessa “nova política” passou a ser a defesa da atuação nos “bairros”, com a criação de assembleias cidadãs.

 

Em 2015, muitos dos ativistas que se “formaram” nessa rica experiência do 15-M se somaram às frentes cidadãs vencedoras das eleições. De volta ao caso de Madri, podemos destacar como consequência dessa transferência de quadros do movimento social para a administração pública o trabalho de uso das tecnologias digitais e sociais para gerar um modelo de democracia direta. Sob a batuta do hacker Pablo Soto, criou-se uma área de participação cujo foco é promover a “desintermediação” do poder. Em 2017, foi criada a plataforma Decide Madrid, de orçamento participativo vinculado, com acesso restrito aos moradores da cidade, para a qual alocaram 100 milhões de euros destinados ao financiamento de projetos propostos pela cidadania. Além da plataforma web, o Decide Madrid inclui também pontos de atendimento presencial em toda a cidade, os chamados escritórios de atenção ao cidadão. Outra iniciativa interessante são os laboratórios de prototipagem desenvolvidos em parceria com o MediaLab-Prado em que funcionários públicos e cidadãos se unem para coproduzir soluções práticas para problemas reais.

 

Subirats, refletindo sobre iniciativas que estão pipocando na Espanha atual, defende o conceito de coprodução política como uma forma prática de impulsionar alternativas: “O conceito de coprodução nesse sentido tenta saltar por cima do conceito de participação, e se coloca mais em relação a problemas concretos, não genéricos, a fim de estabelecer diagnósticos compartilhados que gerem obrigações conjuntas de cada um” (4).

 

Do protesto à proposta. Da participação à coprodução cidadã. Assembleias permanentes deliberando, com o apoio das novas tecnologias, os rumos da política. Isso tudo já vem se tornando realidade, bem como as tensões permanentes com as forças que resistem ao novo. Uma revolução democrática é possível? O que permitiria de fato uma reorganização do Estado a partir da ideia de comum? Pode-se dizer que o que vem ocorrendo na Espanha hoje é o princípio de uma democracia do comum? Nessas horas, nossa infinita capacidade de imaginar pode nos ajudar a ir além. Escrito em 2011, o livro La carta de los comunes: para el cuidado y disfrute de lo que de todos es, coordenado pelo coletivo Madrilonia.org e publicado pela editora Traficantes de Sueños, propõe uma constituição imaginária para uma cidade totalmente repensada a partir dos bens comuns. O cenário projetado é a Madri de 2033, que nessa pequena utopia teria aprovado sua nova Constituição dez anos antes. Exercício de futurismo ou uma espécie de antena parabólica que capta aquilo que já está em curso, mas ainda não se tornou hegemônico? Em seus setenta artigos, a Constituição imaginária versa sobre gestão, bens naturais, os espaços comuns da cidade, saúde e cuidados, educação, cultura e conhecimento e formas de governança. O livro encerra com um ensaio analítico produzido pelo Observatório Metropolitano, que evoca a ideia de que pensar o comum não é voltar a um passado medieval, mas buscar um futuro possível. E que um dos campos essenciais para a afirmação de uma democracia do comum é justamente o do direito, da produção de leis e regras para todas e todos. “A diferença dessa construção institucional é de ordem social: as relações comunitárias. Ou, dito de outra maneira, a recuperação da esfera da reprodução social, que garante a vida em comum, não pode ocorrer desde uma relação mediada institucionalmente, senão que esta deve se colocar em um ponto em que se amarra à materialidade das relações comunitárias.” (5)

 

Prestemos atenção nessa formulação. Ela é demasiado importante. É preciso pensar desde o nível comunitário para elaborar uma democracia comuneira. Ao mesmo tempo que não podemos deixar de perceber que estamos lidando, em várias de nossas preocupações, com comuns universais. Assim, os governos que estão surgindo, buscando em seus programas referenciar-se no conceito de comum, precisam ter em conta essa dupla dimensão. Em geral, o que temos visto é que essas gestões, mesmo as de esquerda, supostamente comprometidas com a ideia de igualdade e justiça social, quando de posse da função de regular processos públicos, contribuem para facilitar cercamentos ao invés de evitá-los. Em diálogo com Bollier, penso que governos comprometidos com a preservação e construção de comuns estão por ser inventados.

 

De sua parte, os governos e as burocracias se mostram cautelosos a respeito dos comuns ao serem estes uma base de poder independente e uma ameaça potencial. Por isso, preferem as certezas e retribuições de suas alianças mercantis. Por norma geral, os governos preferem gerir os recursos mediante sistemas de controle estritamente regulados. Para eles, a criação de comuns parece demasiado informal, irregular e instável, ainda que os verdadeiros ganhos dos comuns refutem esse preconceito (6).

 

Para David Hammerstein (7), da Commons Network, cujo principal trabalho é articular uma agenda comuneira para a União Europeia, o que está ocorrendo na Espanha não tem relação direta com os bens comuns. Segundo ele, a maioria dos agrupamentos que assumiram a administração pública em 2015 – com a possível exceção de Barcelona – segue sob influência de partidos de esquerda tradicional em coalizão com setores dos movimentos sociais. Hammerstein avalia que procedimentos participativos não são em si um valor substantivo. Em sua concepção, a democracia dos comuns está baseada no compromisso com a realidade, na disposição para deixar de lado interesses pessoais e na primazia da coletividade. Ele manifesta a preocupação de que o comum – agora que voltou à moda – possa ser capturado por essas forças, como já teria ocorrido no passado com o feminismo e o ambientalismo, entre outras movimentações sociais. “Apesar de ser positivo que se fale mais publicamente dos bens comuns, não devemos confundir a existência de palavras ‘em comum’ nos nomes das plataformas políticas com um movimento social e econômico espontâneo, autogestionado e descentralizado em defesa dos bens comuns”, avalia Hammerstein.

 

Pela proliferação de movimentos comuneiros, pela emergência de um grande número de intelectuais e pensadores que têm se debruçado sobre essa questão, pelos experimentalismos na gestão pública, a Espanha tem despertado atenção internacional e sido considerada, por vários analistas, um farol global de alternativas. Obviamente, mais uma vez, são muitas as omissões nesta minha elaboração – sobretudo porque não pude tratar do emblemático caso do Barcelona en Comú, que em 2015 elegeu como prefeita a líder comunitária Ada Colau. A capital catalã tornou-se um epicentro da discussão sobre economia da colaboração e tem buscado se reinventar a partir da ideia de um mandato cidadão. Em 2016 e 2017, realizou-se um fórum de cocriação de políticas públicas com o título de Procomuns (8) que chegou a definir 120 propostas para uma transição da lógica hegemônica da privatização rumo a um processo permanente de “comunificação”. Assim, a gestão de Barcelona tem buscado desenvolver um modelo regulatório para preservar, proteger e estimular novos comuns urbanos. Uma das brigas da prefeitura tem sido com a plataforma turística Airbnb, que permite aos “prosumidores” (pessoas que são ao mesmo tempo produtoras e consumidoras, uma característica das plataformas digitais colaborativas) locarem imóveis inteiros ou quartos de suas casas. O plano do poder público é tentar evitar a elevação do custo de moradia na cidade e garantir a função social da propriedade, sobretudo em regiões de grande interesse turístico. Por essas razões, Barcelona, como Madri, ilumina o debate sobre o comum e a democracia, em especial sobre a economia da colaboração. O tempo dirá se esses experimentos de invenção democrática foram bem-sucedidos.

 

Por uma constituinte comuneira

Bruxelas sediou, em 2016, a realização da primeira Assembleia Europeia dos Comuns. Durante três dias, mais de cem ativistas, de 21 países, se reuniram para debater a relação entre o comum e a democracia e também para avaliar propostas de políticas públicas comuneiras no âmbito do Parlamento Europeu. Várias organizações fazem parte da coalizão que vem encabeçando esse processo, como a Commons Transition e a P2P Foundation, com especial destaque para a Commons Network, think tank criado justamente para promover a integração política da agenda dos comuns com as políticas públicas europeias. A assembleia de 2016, considerada um marco inicial na articulação continental dos ativistas do comum, também foi um momento de aproximação com o DiEM25, um movimento transnacional europeu cujo manifesto diz que ou a “União Europeia se democratiza ou ela será desintegrada” (9). Interessante notar que toda essa agitação em defesa de uma UE mais democrática ocorre paralelamente ao Brexit, quando a crise de legitimidade atingiu seu mais elevado nível com a retirada do Reino Unido do bloco continental.

 

O crescimento da xenofobia e do populismo de direita, baseado em valores nacionalistas, a crise econômica da zona do euro e o aprofundamento das disparidades entre os países-membros são causa e consequência de um organismo multilateral marcado pela falta de transparência de seu conselho, de poder real de seu parlamento e de debate público para a construção de políticas. Não à toa, como avalia o documento Supporting the Commons: Opportunities in the EU Policy Landscape (Apoiando os comuns: oportunidades para políticas públicas em âmbito europeu), elaborado por Sophie Bloemen e David Hammerstein, “há uma falta de identificação cidadã e de corresponsabilização com as decisões políticas”, porque atualmente a União Europeia é dominada por uma “enorme e inalcançável máquina profissional de lobby” em defesa dos interesses econômicos das forças de mercado em associação com Estados nacionais. A resistência, nesse contexto, de acordo com eles, só pode partir do comum.

 

A perspectiva do comum põe confiança na capacidade das pessoas de gerenciar os bens comuns de maneira sustentável e justa. Para alcançar a verdadeira democracia – no sentido de as pessoas cogovernarem recursos e processos que afetam suas vidas – devemos reconhecer os limites da nossa atual democracia representativa. Temos de procurar alternativas, buscar formas de complementar e melhorar nossas instituições atuais. Esta deve ser uma das maiores prioridades da UE (10).

 

Hammerstein, na entrevista para este livro, avalia que as grandes decisões econômicas, sociais e ambientais do mundo contemporâneo voam por sobre os Estados-nação, os quais, em sua grande maioria, ainda estão presos a um modelo hegemônico de democracia representativa. Até agora, não foram criados mecanismos participativos eficazes para uma democracia transnacional, porque quanto mais distantes dos cidadãos, mais impenetráveis se tornam as instituições, como é o caso da UE. O que ocorre, no entanto, é que cada vez mais estamos diante de desafios de caráter global, como no caso das mudanças climáticas e da imigração em massa, e isso nos leva à certeza de que as respostas não irão surgir de dentro das fronteiras nacionais, porque os processos políticos e econômicos estão todos interconectados. Nunca, portanto, foi tão imprescindível pensar a dialética local-global como inspiração para a construção de um movimento político suficiente, não eficiente. Como diz Hammerstein, “a perspectiva ‘translocalista’ (ou biorregional) e ‘transnacional’ dos comuns aponta para uma democracia localista e comunitária com uma crescente identidade política europeia ou latino-americana dentro de um marco moral (mas não institucional) global”.

 

O documento da Commons Network propõe quatro medidas para estimular modelos inovadores e participativos para reimpulsionar a democracia no continente: (1) reconhecer e criar instituições criativas de democracia participativa; (2) remodelar a Iniciativa dos Cidadãos Europeus (European Citizens’ Initiative – ECI) para que se torne de fato uma ferramenta útil e acessível (11); (3) ampliar os recursos e reconhecer política a área dentro da União Europeia responsável pelas dinâmicas participativas, o Comitê de Petições do Parlamento Europeu (European Parliament’s Pettitions Committee); (4) usar as novas tecnologias de informação e comunicação para facilitar e simplificar a participação democrática. Não se trata de nenhuma proposta revolucionária, mas de criar canais entre o comum e as instituições existentes.

 

Alguns processos que estão em curso já nos permitem antever que essa agenda do comum pode ganhar força nos próximos anos. Recentemente, embora tenha sido derrotado, um projeto de lei continental que propunha reconhecer a energia como bem comum recebeu quase metade dos votos do Parlamento Europeu, lançando luz a uma série de iniciativas de produção energética de base comunitária que têm se apresentado como alternativa ao modelo centralizador vigente. Vários projetos de pesquisa também vêm recebendo recursos da administração do bloco, como o P2P Value, que busca mapear, catalogar e sistematizar experiências de produção colaborativa baseada em bens comuns; o D-Cent (Descentralized Citizens Engagement Technologies), que busca fomentar a construção de tecnologias cidadãs; e o já citado NetCommons, de redes livres e distribuídas de conexão à internet. Vale destacar, por fim, o fato de a UE ter definido a Ciência Aberta (Open Science) como um eixo estratégico, impulsionando que até 2020 todos os conteúdos científicos produzidos com recursos europeus estejam acessíveis gratuitamente à totalidade dos cidadãos.

 

O que está em jogo, porém, mais que a reforma institucional de organismos multilaterais ineficazes, é a articulação de uma sociedade civil capaz de defender a continuidade da vida humana no planeta – daí a importância da criação da Assembleia Europeia do Comum. Para Hammerstein, os direitos do comum se baseiam em uma “interdependência social e ecológica que se aplica simbioticamente com as comunidades e seus entornos”. Ele defende, com base na obra de Bruno Latour, a ideia de uma democracia ampliada, que deveria considerar as relações estabelecidas entre humanos e não humanos, entre pessoas e coisas, a partir de novos princípios constitucionais e mediadores. Isso implica reconhecer direitos não só daquilo que convencionamos chamar de social, ou seja, os seres humanos, mas também os direitos da natureza, reposicionando o lugar da tecnologia e das máquinas nesse processo. Em The Ecology of Law, Ugo Mattei e Fritjof Capra nos apontam que precisamos mudar as metáforas que nos governam, deixar de considerar o mundo como uma máquina para vê-lo como uma rede. Esse contexto, uma vez mais, nos pede a compreensão de que o comum é socioambiental. Recupero essa formulação não somente pela sua importância intrínseca, mas também pela ressonância que tem com o tema em sequência: o bem viver, a visão do comum que emerge da cosmogonia ameríndia sul-americana.

 

Sumak kawsay ou o bem viver

O Equador aprovou, em 2008, sua nova Constituição Plurinacional, com o apoio de dois terços da população. Além de confrontar o modelo político tradicional do Estado-nação por reconhecer a presença de diversas nacionalidades e povos compartilhando o mesmo território, a nova carta magna oficializa o conceito ancestral e tradicional de bem viver (sumak kawsay, em quéchua; buen vivir, em espanhol; suma qamaña, em aimara; nhandereko, em guarani) como orientação política e governamental. No texto constitucional, o bem viver é mencionado 18 vezes de forma direta, inclusive no preâmbulo: “[…] celebrando a natureza, a Pachamama, da que somos parte e que é vital para nossa existência […] decidimos construir uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bem viver, o sumak kawsay; uma sociedade que respeita, em todas as suas dimensões, a dignidade das pessoas e das coletividades” (12).

 

Todo o segundo capítulo da Constituição equatoriana é dedicado ao bem viver e aborda temas como água e alimentação, reconhecendo a água como direito fundamental e patrimônio nacional de uso público; ambiente saudável, garantindo o direito de viver em ambiente equilibrado que possibilite a sustentabilidade da boa vida; comunicação e informação, atacando o oligopólio e o monopólio direto ou indireto dos meios de comunicação; cultura e ciência, que reconhece a diversidade cultural e enfatiza o acesso e uso dos saberes ancestrais como direito; educação; moradia; saúde; trabalho e segurança social. A nova Constituição também tem um capítulo inteiro dedicado aos direitos da natureza, que é entendida como titular desses direitos.

 

Uma das referências para o debate sobre o bem viver é Alberto Acosta, político e intelectual que foi presidente da Assembleia Nacional Constituinte e posteriormente rompeu com o governo de Rafael Correa, chegando a ser candidato à presidência por uma coalizão minoritária. Segundo Acosta, o bem viver é um conceito plural; o que se pretende com ele é a construção de uma nova forma de viver, na qual os direitos dos seres humanos se harmonizem com os direitos da natureza, o que não é possível plenamente no capitalismo. Um conceito de matriz comunitária que é resultado do acúmulo dos povos indígenas que resistiram ativamente, ao longo de sua história, à exclusão, à exploração e ao colonialismo e que pressupõe uma vida centrada na autossuficiência e na autogestão.

 

O bem viver propõe uma cosmovisão diferente da ocidental, posto que surge de raízes comunitárias não capitalistas. Rompe igualmente com as lógicas antropocêntricas do capitalismo enquanto civilização dominante e com os diversos socialismos reais que existiram até agora – que deverão ser repensados a partir de posturas sociobiocêntricas e que não serão atualizados simplesmente mudando seus sobrenomes. Não esqueçamos que socialistas e capitalistas de todos os tipos se enfrentaram e ainda se enfrentam no quadrilátero do desenvolvimento e do progresso (13).

 

O que fascina no fenômeno equatoriano é essa possibilidade de fazer com que um conceito oriundo de uma cosmogonia ameríndia, o qual questiona o modelo de desenvolvimento ocidental, torne-se referência para a elaboração de uma Constituição nacional. O risco, no entanto, é a transformação do bem viver em um slogan de governo, num processo que reduz o conceito a um joguete social-democrata, onde viver melhor seria resultado de um Estado que amplia direitos sociais e aprofunda o desenvolvimento. Para que isso não ocorra, temos que afirmar que o pleno bem viver não se realiza numa dimensão nacional, mas sim no interior das comunidades em aliança com experiências semelhantes que estão ocorrendo em todo o planeta. Do lugar em que estou, enxergo extrema semelhança entre os conceitos de bem viver e comum, construídos a partir de cosmogonias distintas, mas aliados na construção de um processo real de transformação.

 

Outras duas experiências sul-americanas que merecem destaque são a boliviana e a venezuelana. A Bolívia também passou por processo semelhante ao equatoriano e definiu sua nova Constituição em 2009 afirmando o conceito de viver bem (suma qamaña, em aimara). O texto destaca-se pelo reconhecimento e autonomia das populações originárias do país e pela busca de um novo modelo de desenvolvimento, em harmonia com a natureza. Mais de oitenta dos 411 artigos tratam da questão indígena. Os 36 povos originários que habitam o território do país passaram a ter participação no poder estatal e na economia, com cota para parlamentares e propriedade exclusiva de recursos florestais, hídricos e direito sobre a terra de suas comunidades. Como no caso do Equador, estamos falando de um Estado-nação que se constrói inspirado pelas comunidades. A pergunta que fica é: será este o caminho para uma democracia do bem viver ou do comum?

 

A real contribuição do bem viver está na criação de possibilidades de diálogo, abrindo as portas a um enorme mapa de reflexões destinado a subverter a ordem conceitual imperante. Uma de suas maiores contribuições poderia estar na construção coletiva de pontes entre os conhecimentos ancestrais e modernos, assumindo, a todo instante, que a construção de conhecimento é fruto de um processo social (14).

 

Na Venezuela, em direção bastante diferente, mas não menos interessante, destaca-se o modelo de comunas criadas pelo socialismo do século XXI. Em certa medida, das experiências que conheço, é aquela que se poderia aproximar da projeção de Laval e Dardot sobre o comum, inspirada no socialismo associacionista do século XIX e no comunismo de conselhos do século XX. Baseado na ideia clássica de comuna socialista, de propriedade coletiva partilhada entre seus membros, o modelo bolivariano vem sendo implantado por meio de um processo complexo de disputas territoriais e produção de leis. Já em 2006, a lei dos Conselhos Comunais abre caminho para a expressão do ex-presidente Hugo Chávez “comuna ou nada”, definidora daquele modelo de socialismo. Mais adiante, o modelo comunal seria detalhado em duas leis orgânicas, uma que versa sobre a forma de organização das comunas e outra sobre o funcionamento de seu sistema econômico. No livro Comunalizar el poder: claves para la construcción del socialismo comunal, do coletivo de mulheres Códigos Libres, fica evidente que o comunal é também ele, em seu interior, um espaço complexo de disputa.

 

De todas estas formas organizadas compreende-se que o comunal é a bússola para caminhar em processos decisivos de transformação radical: a consolidação de sistemas econômicos autogestionários que permitam a materialidade necessária para um poder político não dependente nem subsidiado; autogovernos legítimos e legais em territórios liberados (comunalizados) que vão assumindo competências transferidas do Estado constituído, que vai se transmutando até o comunal; ultrapassar as tensões permanentes com a institucionalidade do Estado com a qual se tenta avançar em lógicas cogestionárias ou em alianças estratégicas; reprodução de sentidos comuns emancipadores que façam da vida não um bem material senão uma razão amorosa e solidária de existência individual e coletiva, sendo irredutíveis na batalha pela construção da hegemonia comunal sem impor nem tutelar, mas com a audácia necessária para convencer, assumir, disputar e comprometer vontades na edificação deste outro mundo (15).

 

Essa perspectiva é reforçada pelo ensaio do professor da Universidade Central da Venezuela, Enrique Rey Torres, Pensar lo común hoy: los bienes comunes em la construcción del socialismo del siglo XXI. Nele, o sociólogo realiza uma recuperação do conceito de comum para apontar a conflitividade que caracteriza as práticas sociais que se articulam em torno das comunas e dos conselhos comunais bolivarianos. Ele as vê, por um lado – sendo formas que tendem ao autogoverno –, como instrumentos possíveis de configuração de uma nova institucionalidade baseada em “redes democráticas de cooperação e encontro que se articulam no território”. Por outro, como possíveis novas matrizes produtivas para a construção de um modelo de desenvolvimento que supere o extrativismo e o “rentismo como signo que caracteriza o sistema econômico venezuelano”. Em sua avaliação, o processo vivo da comuna ao comum passa pela afirmação da diversidade no interior das comunidades, pela construção de autonomia frente ao Estado, pela afirmação dos bens comuns como sistema não homogêneo e pela possibilidade de antagonismo frente às redes clientelistas de cooptação. Como outros processos políticos que analisamos neste capítulo, o comum no socialismo do século XXI é um processo que está em pleno movimento, numa conjuntura venezuelana marcada por fortes conflitos entre governo e oposição, além de grave crise econômica, com hiperinflação e carência de produtos básicos para a população.

 

Referências:

(1) Christian Laval; Pierre Dardot, “O comum: um ensaio sobre a revolução no século 21”, trad. Renan Porto, UniNômade Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 19 mar. 2018.

(2) “Como podríamos relacionar lo común con la idea de democracia? Intentando ver hasta qué punto hablamos de lo común como algo colectivo, compartido, que genera vínculos, que genera obligaciones, que genera derechos. Como podemos trasladar esse compartir y coproducir a la gestión política? Como lo relacionamos con espacios, con formas de conexión, en el que el recurso de lo público esté conectado con la comunidad, con una voluntad de ser comunidad? Esse commoning como expresión de acción, de voluntad de generar lo colectivo.” César Rendueles; Joan Subirats, op. cit., p. 104.

(3) Para um mapa das iniciativas cidadãs de Madri, por exemplo, veja Los Madriles aqui.

(4) César Rendueles; Joan Subirats, op. cit., p. 106.

(5) “La diferencia de esta construcción de instituciones es de orden social: las relaciones comunitarias. O dicho de otro modo, la recuperación de las esferas de la reproducción social, que garantizan la vida em común, no puede hacerse desde una relación mediada institucionalmente, sino que ésta debe colocarse en el punto en el que se anuda la materialidad de las relaciones comunitarias.” Madrilonia.org, La carta de los comunes: para el cuidado y disfrute de lo que de todos es, Madri: Traficantes de Sueños, 2011, p. 52.

(6) “Por su parte, los gobiernos y las burocracías se muestran cautelosos respecto a los comunes al ser una base de poder independiente y una amenaza potencial, por lo que prefieren las certezas y retribuciones de suas alizanzas mercantiles. Por norma general, los gobiernos prefieren gestironar los recursos mediante sistemas de control estrictamente regulados. Para ellos, la creación de procomún se les antoja demasiado informal, irregular e inestable, incluso aun que los verdaderos logros de los comunes refuten esse prejuicio.” David Bollier, op. cit., p. 42.

(7) Em entrevista ao autor por e-mail em julho de 2017.

(8) Para conhecer o resultado desse processo, clique aqui

(9) O manifesto do DiEM25 encontra-se disponível aqui. Acesso em: 20 abr. 2018.

(10) Sophie Bloemen; David Hammerstein, “Supporting the Commons: Opportunities in the EU policy landscape”, p. 10. Disponível aqui. Acesso em: 18 maio 2018.

(11) Esse mecanismo é parecido com a lei de iniciativa cidadã no Brasil, em que a sociedade civil pode propor projetos de lei ao parlamento quando consegue mobilizar 1 milhão de assinaturas em defesa da proposta.

(12) “[…] celebrando a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existencia […] decidimos construir una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay; una sociedad que respeta, em todas sus dimensiones, la dignidad de las personas y las colectividades […]”. Constituição da República do Equador, disponível em: <https://www.asambleanacional.gob.ec/sites/default/files/documents/old/constitucion_de_bolsillo.pdf acesso em: 19 mar. 2018.

(13) Alberto Acosta, O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos, São Paulo: Elefante; Autonomia Literária; Fundação Rosa Luxemburgo, 2016, p. 72.

(14) Ibidem, p. 239.

(15) “Desde todas estas formas organizadas se comprende que lo comunal es la brújula para caminar em procesos decisivos de una transformación radical: la consolidación de sistemas económicos autogestionarios que permitan la materialidad necesaria para un poder político no dependiente ni subsidiado; autogobiernos legítimos y legales en territorios liberados (comunalizados) que vayan asumiendo competencias transferidas del Estado constituido que va mutando hacia el Comunal; sortear las tensiones permanentes con la institucionalidad de Estado con la que se intenta avanzar en lógicas cogestionarias o en alianzas estratégicas; la re-producción de sentidos comunes emancipadores que hagan de la vida no un bien material sino una razón amorosa y solidaria de existencia individual y colectiva, siendo irreductibles en la batalla por construir la hegemonía comunal sin imponer ni tutelar, sino con la audacia necesaria para convencer, asumir, disputar y comprometer voluntades en la edificación de este otro mundo.” Códigos Libres, Comunalizar el poder: claves para la construcción del socialismo comunal, Caracas: Códigos Libres; Tiuna el Fuerte, 2017, p. 27.

 

Nota:

[i] Este texto é um trecho do livro O Comum entre nós: da cultura digital à democracia do século XXI, publicado pelas Edições SESC. Este é o capítulo 3 do livro, escrito por Rodrigo Savazoni.

 

 

 

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