10 Março 2020
O encontro com Judith Butler, em Berkeley, é no café de um museu de metálica estética pós-moderna. Butler é, entre os filósofos vivos, uma das vozes mais eminentes e influentes do mundo: uma pensadora que liricamente funde problemas éticos, políticos e de psicanálise, além de uma corajosa ativista feminista e queer. Ela sempre esteve na linha de frente de lutas impopulares e perigosas - as posições antissionistas em defesa da causa palestina que ela assumiu como judia praticante provocaram sua expulsão de Israel. Com o livro Questione di genere (Laterza 2013), ela teorizou a instabilidade e a construção social da identidade de gênero, influenciando milhares de pessoas e ajudando-as a aceitar as infinitas complicações da aparente simplicidade binária homem / mulher.
Na tradição da teoria crítica da escola de Frankfurt, a filosofia é para Butler - que recebeu o prêmio Theodor Adorno, além de doze títulos honoris causa - um instrumento de ação e mudança social. Diante de uma xícara de café, falamos sobre seu novo livro (de número 23), La forza della non violenza (A força da não violência, em tradução livre, Verso 2020), mas também sobre o feminismo, e sobre o 8 de março. "O mais importante para mim é que começamos a falar sobre não violência em termos não simplesmente de moralidade individual, mas também de relações sociais", explica Butler, para quem toda vez que cometemos atos de violência, rompemos o vínculo que nos une como habitantes do mesmo planeta. Enquanto Hannah Arendt acredita que o que nos une é uma série de obrigações mútuas, La forza della non violenza se pergunta se seria possível conceber a nossa interdependência como base das obrigações de uns em relação aos outros.
A entrevista é de Mario Telò, publicada por Il Sole 24 Ore, 08-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“A força da não violência: um vínculo ético-político”
(Foto: Divulgação)
Essa noção de interdependência desenvolve ideias de livros anteriores, em especial Strade che divergono (Cortina 2013), Vite precarie (Postmedia Books 2013), L’alleanza dei corpi (Nottetempo 2017). Para Butler, há violência e crueldade na valorização implícita de algumas vidas em detrimento de outras praticadas pela hegemonia política europeia e norte-americana, uma hegemonia fundada na recusa da própria precariedade. "Algumas populações - ela continua com cortante seriedade - são consideradas dignas de pena ou lamentação mais que outras. No pensamento dominante, há vidas que não têm nenhum valor, cuja perda não é considerada uma verdadeira perda. É uma forma sutil de desigualdade que o movimento "Black Lives Matter" trouxe ao centro das atenções". Para a filósofa, não pode haver uma não violência efetiva, exceto no reconhecimento de necessidades (teto, comida) comuns a todos.
“Quando os barcos que cruzam o Mediterrâneo recebem a recusa da comunidade europeia, aqueles que se recusam a ajudá-los - e aqui Butler não deixa de mencionar a Itália - não imaginam que poderiam estar naquela condição. Às vezes, o migrante é visto como um elemento destrutivo. A ideia é, portanto, de destruir esse elemento destrutivo antes que ele possa entrar no país. Mas assim o país se torna destrutivo. E uma vez colocada em circulação, essa destruição está destinada a retornar e voltar-se contra, de uma maneira ou de outra".
No novo livro, a autora escreve que "a feminilidade é identificada com o apoio oferecido por uma mãe. Obviamente, eu me oponho - ela especifica – ao desconhecimento e à depreciação da feminilidade. Ao mesmo tempo, não acredito que a responsabilidade de cuidar do outro deva recair exclusivamente sobre as mulheres. Existe o risco de realocá-las nos papéis tradicionais; precisamos de mais equidade social para pensar em como várias identidades de gênero podem oferecer apoio uma à outra". Ela cita um exemplo das comunidades de atendimento que surgiram nos Estados Unidos e na Europa durante a crise da Aids e de estruturas similares formadas em várias partes do mundo em resposta a doenças e pobreza.
O movimento Ni Una Menos, que espalhou protestos contra o feminicídio em toda a América do Sul, é particularmente importante para Butler. “Comecei a aprender sobre feminicídio na Costa Rica, onde conheci várias feministas que me descreveram a situação dos direitos humanos na América Latina. O que me impressionou no Ni Una Menos é o número de pessoas que leva às ruas - três milhões um ano e meio atrás”.
O movimento busca mudar a cultura de um mundo em que a violência contra mulheres, pessoas queer e trans é vista como um fato insuperável. “Há raiva, mas também vulnerabilidade. É um movimento anárquico que, graças aos seus números, consegue empurrar a polícia para fora da rua. Ninguém pode se mover naquelas ruas quando há tantas mulheres". Comprometida em criar um circuito transnacional de teoria crítica, Butler entrou em contato com movimentos feministas e queer em todo o mundo.
"Na África do Sul - ela relata - eu conheci um grupo que estava tentando defender mulheres lésbicas atacadas à noite e submetidas a estupros com função de conversão à heterossexualidade. Esse grupo havia desenvolvido um sistema incrível para ajudá-las a se deslocar de um lugar para outro e coletar suas histórias". Há algo de radical em pedir não reformas, mas simplesmente um espaço de existência, em reivindicar o direito de uma presença física. Referindo-se às feministas que dançam e protestam contra os estupros no Chile, Butler comenta que "esse não é um procedimento legal ou um referendo, é outra maneira de mudar a percepção geral desses problemas". Sobre a polêmica contra a chamada "ideologia de gênero", a intelectual estadunidense se expressa com calma.
"Uma ‘ideologia de gênero’, como tal, não existe. É o fantasma agitado pelos reacionários para atacar o feminismo, os movimentos LGBTQ, os direitos de liberdade e igualdade. Nos é dada uma identidade quando nascemos, mas isso não nos diz quem somos ou como vamos viver. Entendo que a liberdade causa medo, mas é uma liberdade coletiva e deve ser garantida por movimentos inclusivos e transnacionais”. Justamente o dia 8 de março a faz reiterar "que a categoria ‘mulher’ não é fixa, que as mulheres trans são mulheres e que o feminismo não pode ser transfóbico. Se for, implementa uma forma de discriminação contra seus princípios”.
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Por um feminismo sem fronteiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU