12 Dezembro 2017
Judith Butler guarda muitas imagens em sua memória, sua obra reúne grande parte. O atentado ao World Trade Center, as fotografias que retratam os corpos torturados de Guantánamo e Abu Ghraib, os gritos que em 2011 incomodaram a perfeição sepulcral de Wall Street... Todas constituem peças de seu quebra-cabeças teórico que pensa e interpela a realidade. Mas, quando é questionada por uma, Butler cita a imagem da Praça Taksim, aquele círculo perfeito no coração de Istambul, onde há quatro anos uma reivindicação ambientalista acabou se tornando uma mobilização tão massiva que alguns até se iludiram com uma nova primavera árabe. Butler a descreve com completude substantiva, como uma imagem com “pessoas e objetivos unidos contra o poder da polícia”.
A menção não é por acaso. Nela radica uma das chaves dos últimos trabalhos desta teórica que conseguiu se posicionar no campo acadêmico, a partir de seus estudos sobre gênero, ensinando-nos que a palavra faz, a identidade é ato e a sexualidade disputa. Mas, além disso, cuja obra, sem dúvidas, se constituiu em uma valiosa contribuição para pensar o político. Talvez por isso, por esta necessidade de escolher um caminho mais incômodo no qual sua teoria performativa também sirva para pensar alternativas de libertação democrática, não chame a atenção que seus últimos livros – Cuerpos aliados y lucha política: hacia una teoría performativa de la asamblea (Paidós) e Desposesión: lo performativo en lo político, un diálogo con Athena Athanasiou (publicado por Eterna Cadencia) – já não se detêm especificamente na Teoria Queer e pensem outras formas de mobilização social, como presenças que subvertem, provocam, interrogam.
Com a brandura que a caracteriza, Butler aceita conversar, dos Estados Unidos, com a Revista Ñ – no Skype e por e-mail – sobre estes e outros temas, sem perder de vista a conjuntura atual, marcada pela ascensão das direitas e o que, em sua opinião, constitui um momento de intersecção entre o ódio racial e a crise econômica.
A entrevista é de Carolina Keve, publicada por Clarín-Revista Ñ, 08-12-2017. A tradução é do Cepat.
Em um artigo que você escreveu após a vitória de Donald Trump, nas eleições dos Estados Unidos, questionava-se por que certas formas de privação econômica se convertem em xenofobia e misoginia. Retomo a questão e acrescento: qual deve ser a resposta política ao ódio, que parece constituir uma base social muito sólida em algumas experiências de direita?
Acredito que atualmente há um debate importante nos Estados Unidos e em muitos países onde esta violência nacionalista está tendo lugar. Acerca de si, o racismo pode ser considerado uma motivação primária ou a angústia econômica e as condições de crescente precariedade são as que se convertem em xenofobia...
E qual é sua opinião?
Na realidade, acredito que nem sempre é possível decidir esta questão. Em primeiro lugar, porque o racismo tem diversos exemplos históricos e as formas econômicas de desapropriação e precariedade são muito diferentes, dependem de muitos fatores, como a convergência do capitalismo e o neoliberalismo, os modos históricos de exploração e a produção durante este período de indivíduos sem Estado e sem direitos. Neste sentido, talvez devamos entender como funciona esta constelação, onde essa angústia ou essa fúria pelas atuais condições de vida se articulam sob formas de racismo. Agora, é claro que na xenofobia há ódio em jogo, mas me preocupa que se pense que a causa do racismo seja o ódio. O ódio não é um sentimento flutuante em busca de um objeto. Na realidade, o racismo é uma forma de ódio que se assentou em seu objeto. O que é psicologicamente complexo entender é como a angústia econômica e o ódio racial se envolvem entre si. Hoje, vivemos no tempo dessa intersecção.
No mesmo artigo, apresentou certa necessidade de não subestimar o “fenômeno Trump”, de superar aquela visão que se limitava a considerar seus eleitores como uns irracionais e pensar nas condições sociais desse resultado. Hoje, já perto de se completar seu primeiro ano de governo, qual é sua leitura mantendo estes preceitos?
É claro, Trump é um dirigente, mas também uma imagem, um significante, um modo de governo e um regime. O que continua me alarmando é que mais de 30% da população aparentemente aprovam sua gestão. No caso da esquerda, já não estamos nos questionando: “Quem são estas pessoas?”. O inquietante é que continuem lhe apoiando – mesmo quando busca destruir componentes fundamentais da democracia constitucional, zomba da justiça, desacredita a imprensa e busca formas de burlar a lei. Aparentemente, muita gente se emociona com estes gestos autoritários. Talvez desejem ser ele. Ou talvez, sabendo que vivem em um mundo de limitações onde não podem ser ele, ele será o que eles desejam ser, vivendo esse sonho para eles. Na realidade, é isso, um sonho, melhor dito, um pesadelo. No entanto, para alguns até mesmo o pesadelo é preferível à realidade.
A propósito das eleições na França e a consolidação das direitas na Europa, Slavoj Zizek destacava o quanto pode ser efetivo, hoje, se apresentar como um forasteiro das estruturas partidárias tradicionais. Concorda com esta interpretação?
Acredito que Zizek está parcialmente correto, porque o sistema que, por exemplo, busca impor Trump na esfera política não é outro que o do mercado. Constantemente, está negociando, posicionando-se erraticamente para aumentar seu poder e manter seus inimigos confusos, buscando maximizar seus retornos e construir sua marca. Às vezes, nem sequer importa se suas políticas funcionam, sempre e quando possa ampliar sua presença nos meios de comunicação, que de alguma maneira é sua ideia de marketing próprio. Portanto, a pergunta na realidade é se tais tipos de valores de mercado agora se estenderam ao sistema da lei e à política.
Neste contexto, muitos intelectuais advertem que estamos diante de estados de exceção, onde os discursos em torno da segurança e o terrorismo habilitam o abuso de poder. Não posso evitar ler esta análise em relação ao que apresenta em ‘Vidas precarias’, como em tal exercício de abuso se legitimam espaços de negação de um outro, nos quais, inclusive, a morte assume um valor normativo.
Entendo a crítica do estado de segurança e vejo suas implicações em todas as partes. De fato, com qual frequência escutamos que uma manifestação ou uma assembleia é chamada de “distúrbios” ou designadas como uma “ameaça à segurança”? Hoje, muitas pessoas que desejam se unir e afirmar suas opiniões políticas se abstêm por causa destes regimes que buscam censurar e expurgar essas opiniões.
Não obstante, apesar desta conjuntura, suas últimas obras mantém um visão bastante otimista...
É que embora eu seja crítica às novas formas de autoritarismo baseadas na lógica da segurança, também me preocupo com as teorias que nos dizem que não há saída do poder soberano e que as lutas democráticas sempre ocorrem à discrição do soberano. Este é o argumento que nos fez perder qualquer esperança na luta democrática. Contudo, há tantas pessoas marginais, sujeitos precários, que se reúnem, mesmo quando não tem permissão do Estado, mesmo quando não são considerados parte do “povo”. Estas formas de asserção coletiva em nome da democracia, tanto virtuais como encarnadas em corpos, afirmam um futuro para a democracia. É uma forma de reinaugurar, afiançar a própria ideia de “povo”, exigindo sua rearticulação.
Neste sentido, retomo uma pergunta que, a respeito disso, Athena Athanasiou apresenta em ‘Desposesión...’: Pode a ação coletiva gerar suas próprias condições de pertença ou se limita a uma posição de interrogação dos esquemas normativos existentes?
Talvez seja importante considerar que a desapropriação sempre tem um duplo sentido. Pensemos, por exemplo, nos indígenas. Foram desapropriados da terra, da pertença e de seus direitos. No entanto, o movimento pela emancipação indígena não depende da ideologia do individualismo. O que quero dizer com isto? Que a solução à desapropriação política e econômica não passa pela valorização da posse, da propriedade ou do individualismo possessivo. Esse seria outro despojo, do tipo ao que estas ações se opõem. O segundo sentido de desapropriação se relaciona com o conceito de socialização. Se somos desapropriados “por” e “em” um outro, existimos socialmente sempre em certa medida fora de nós mesmos.
O movimento 'NiUnaMenos', que iniciou na Argentina, se torna um caso interessante para explorar a performatividade desses corpos mobilizados e suas possibilidades de sobrevivência...
É impressionante como o NiUnaMenos assumiu uma importância política, tanto na Argentina como em todo o mundo. Agora, há redes internacionais que seguem o movimento e buscam formular suas próprias versões para seus contextos locais.
Efetivamente, é cada vez mais massivo, deu visibilidade à violência de gênero na agenda pública e, aqui, na Argentina, desdobra-se, além do mais, em um contexto de reformas legislativas que vão nessa direção. Mas, então, surge a pergunta: como continuar?
Antes de mais nada, acredito que o movimento é um sinal de que as mobilizações massivas podem produzir uma nova consciência social e novas realidades legais, assim como também não se trata de grupos “sem sentido”, mas, ao contrário, de formas focadas em realizar um conjunto de demandas políticas. É claro, nenhum movimento pode evitar a ‘faccionalização’. Uma vez que há poder, há uma luta pelo poder, a não ser que seja possível encontrar maneiras de compartilhar o poder. Desta forma, assim como um movimento deve apresentar suas demandas, também deve se comprometer em uma luta autorreflexiva para continuar sendo um movimento democrático e democratizador. Isto significa que tem que fazer um giro reflexivo, para que o movimento represente os mesmos princípios que busca realizar no mundo.
Com o título Os fins da democracia, a Universidade da Califórnia, em Berkeley, e a Universidade de São Paulo convidaram Judith Butler para participar de um colóquio no Brasil.
Sua passagem por lá, no entanto, acabou envolvida em um escândalo, a partir de uma campanha encabeçada por CitizenGO, uma ONG ultraconservadora, de raízes espanholas, que fundamentalmente dirige suas ações contra o direito ao aborto, ao matrimônio igualitário e às técnicas de reprodução assistida. A ONG reuniu 360.000 assinaturas contra Butler e disse que ela “não é bem-vinda ao Brasil” porque promove “uma ideologia que mascara um objetivo político marxista”. O fato teve tal repercussão que a própria Butler lhes respondeu no jornal Folha de São Paulo: “As instituições sociais, incluindo as religiosas, escolas e serviços sociais e psicológicos, também deveriam ter a capacidade de apoiar as pessoas em seu processo de descobrir como viver melhor com seu corpo, buscar realizar seus desejos e criar relações que lhes sejam proveitosas (...). No Brasil, uma mulher é assassinada a cada duas horas. São esses os males sociais inequívocos e atrocidades aos quais me oponho”.
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Judith Butler: corpos que resistem ao ódio e ao poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU