11 Novembro 2016
"Naturalmente, nós ainda não sabemos que parte da população dos EUA realmente votou. Mas ficamos com a questão sobre como a democracia parlamentar nos trouxe um presidente extremamente antidemocrático e se temos que nos preparar para sermos mais um movimento de resistência do que um partido político."
A opinião é da filosofa e filóloga estadunidense Judith Butler, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 10-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há duas questões perguntas os eleitores nos Estados Unidos da esquerda ao centro estão se fazendo: quem são essas pessoas que votaram em Trump? E por que não nos preparamos para essa conclusão? A palavra "devastação" aproxima-se um pouco do sentimento difuso neste momento entre aqueles que eu conheço. Não sabíamos o quão generalizada era a raiva contra as elites, o quão profunda era a raiva dos homens brancos contra o feminismo e o movimento pelos direitos civis, o quão muitas pessoas estão desmoralizadas pela desapropriação econômica, o quão exaltadas as pessoas estão pelo isolacionismo e pela perspectiva de novos muros e belicosidade nacionalista. Este é o novo "chicote branco"? Por que não o vimos surgindo?
Assim como os nossos amigos no Reino Unido depois do Brexit, estamos agora céticos sobre as pesquisas: quem é entrevistado e quem não é? As pessoas dizem a verdade quando questionadas? É verdade que a grande maioria dos eleitores eram homens brancos e que muitas "pessoas de cor" pularam a rodada? Quem é esse público irritado e anulador que prefere ser governado por um louco do que por uma mulher? Quem é esse público zangado e niilista que culpa a candidata do Partido Democrata pelas devastações do neoliberalismo e do capitalismo desregulado? Temos que pensar agora sobre o populismo, direita e esquerda, e misoginia – o quão profundamente isso realmente pode chegar.
Para melhor ou pior, Hillary é identificada com a política do establishment. Mas o que não se deveria subestimar é a raiva e o ódio profundamente arraigados contra Hillary, em parte resultado de uma grande misoginia e da repulsa contra Obama, alimentadas por um longo racismo fervoroso. Trump desencadeou a raiva reprimida contra os feministas, figuradas como uma polícia censora, contra o multiculturalismo, visto como uma ameaça aos privilégios brancos, contra os imigrantes, figurados como uma ameaça à segurança. A retórica vazia de falsa força triunfou, sinal de um desespero mais difuso do que sabíamos.
Mas, talvez, estejamos vendo uma sublevação contra o primeiro presidente negro, junto com a raiva contra a possibilidade da primeira mulher presidente por parte de muitos homens e algumas mulheres brancos. Para um mundo cada vez mais descaracterizado como pós-racial e pós-feminista, estamos vendo agora como a misoginia e o racismo anulam o julgamento e um compromisso com os objetivos democráticos e inclusivos – são paixões sádicas, ressentidas e destrutivas que dirigem o nosso país.
Quem são elas, essas pessoas que votaram nele, mas quem somos nós, que não vimos o seu poder, que não previmos isso, que não conseguimos entender que as pessoas votariam em um homem com discurso racista e xenófobo, com uma história de ofensas sexuais, de exploração dos trabalhadores, de desprezo pela constituição, pelos migrantes e com um plano imprudente de aumento da militarização?
Talvez, estamos protegidos da verdade pela nossa própria forma isolada de pensamento esquerdista e liberal? Ou talvez acreditávamos na natureza humana de algum modo ingênuo. Sob que condições o ódio desencadeado e a militarização imprudente obrigam o voto da maioria?
Naturalmente, nós ainda não sabemos que parte da população realmente votou. Mas ficamos com a questão sobre como a democracia parlamentar nos trouxe um presidente extremamente antidemocrático e se temos que nos preparar para sermos mais um movimento de resistência do que um partido político.
Afinal de contas, em um comício de Trump em Nova York na noite dessa quarta-feira, os partidários de Trump revelaram desavergonhadamente o seu ódio exuberante: "Odiamos os muçulmanos, odiamos os negros, queremos o nosso país de volta".
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Aquelas urnas submersas de sexismo e racismo. Artigo de Judith Butler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU