10 Junho 2015
Nas recentes eleições na Espanha "em vez da lógica de complementaridade das redes ser substituída por uma lógica de unificação exigida pelo aparato estatal, o que temos é a extensão daquela primeira lógica a um campo, o estado, que os ativistas haviam até ali rejeitado. A mudança, portanto, está num reconhecimento de que, diante da impermeabilidade do sistema político e a crescente repressão, o estado também precisava virar um espaço de luta – como condição, aliás, para que os movimentos pudessem seguir seu trabalho. O que é muito diferente de uma reviravolta radical nas concepções que estes movimentos têm da transformação social, que seguem indo bem além da ação institucional", escreve Rodrigo Nunes, professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio. É autor de "Organisation of the Organisationless. Collective Action After Networks" (Mute, 2014) e editou um dossiê sobre os protestos brasileiros de 2013 para "Les Temps Modernes".
Segundo ele, citando Pièrre Clastres, "a emergência de formas “verticais” de poder talvez se devesse explicar menos por elas mesmas que pela incapacidade do campo social de exorcizá-las continuamente. Afora o modo como lidarão com todos os outros desafios que têm pela frente, o sucesso de Espanha e da Grécia neste aspecto será um dos critérios pelos quais elas poderão ser julgadas como oferecendo um modelo e um rumo".
Eis o artigo.
O sucesso de iniciativas cidadãs como Barcelona En Comú e Ahora Madrid nas eleições municipais espanholas parecem confirmar Espanha e Grécia como as histórias de sucesso – tateantes, mas cheias de esperança – do ciclo global de lutas aberto pela Primavera Árabe. No entanto, uma das maneiras como sua novidade tem sido interpretada soa bastante antiga.
Segundo esta narrativa, se elas sugerem um modelo e um rumo, seria apenas porque os movimentos sociais destes países teriam descoberto o que já deveriam saber desde sempre. Isto é, os movimentos gregos e espanhóis não teriam feito mais que chegado ao termo do desenvolvimento natural, interrompido em outros países, que vai da infância (redes informais e protesto social) à maturidade (partidos e mudança institucional).
Das redes aos partidos, a hora haveria chegado de ocupar o estado.
Há três defeitos notáveis nesta narrativa. O primeiro é que ela não corresponde exatamente ao que os próprios participantes dos movimentos contam; o segundo, que vimos na Espanha não o crescimento de um partido, mas de diferentes alternativas eleitorais de composição variável; o terceiro, que se apoia num problema mal posto.
Uma suposta passagem “das redes aos partidos” é um problema mal posto porque “rede” funciona em dois registros distintos. “Rede” é tanto uma forma organizativa específica, como “partido” ou “federação”, quanto o termo descritivo mais geral que temos para descrever um conjunto de pessoas (ou coisas) consideradas em suas interrelações.
Se poderia fazer sentido, no registro específico, falar de “partidos” substituindo “redes” como formas organizativas preferenciais, no segundo não faz. No registro geral, não apenas devem os partidos (e federações etc.) serem entendidos como tipos de rede, eles devem ser compreendidos como partes de uma rede mais ampla que os envolve.
Esta observação parece puramente escolástica até que percebemos a consequência importante que ela implica: a de nos forçar a pensar não em termos de organizações isoladas, mas de uma ecologia delas.
Cada organização, seja ela um partido, uma federação ou grupo de afinidade, pode ser entendida como um nó de uma rede mais ampla que será mais esparsa aqui, mais densa ali, e pode a qualquer momento ter diversos núcleos organizativos capazes de mobilizar uma cauda longa de nós menos ativos para diferentes fins – petições online, ações diretas, inclusive o voto. Estes núcleos tenderão a apresentar diferentes formas organizativas, mais ou menos adequadas aos tipos de função que executam na rede mais ampla.
Com esta mudança, a metáfora da “maturação” se torna mais difícil de sustentar. Em vez de uma ecologia inteira convergir numa única organização, o que temos são núcleos novos (ou pré-existentes, como o Syriza na Grécia) que crescem em importância no interior do ecossistema mais amplo por serem aqueles que tem melhores condições de executar uma certa função – neste caso, a política institucional.
É assim, precisamente, que os ativistas espanhóis têm repetidas vezes explicado sua deriva eleitoral: “construímos um movimento forte e plural que era capaz de fazer muitas coisas, mas o sistema político não se moveu um centímetro; então nos demos conta que a política eleitoral era algo que tínhamos que fazer também”.
Em outras palavras, em vez da lógica de complementaridade das redes ser substituída por uma lógica de unificação exigida pelo aparato estatal, o que temos aqui é a extensão daquela primeira lógica a um campo, o estado, que os ativistas haviam até ali rejeitado. A mudança, portanto, está num reconhecimento de que, diante da impermeabilidade do sistema político e a crescente repressão, o estado também precisava virar um espaço de luta – como condição, aliás, para que os movimentos pudessem seguir seu trabalho. O que é muito diferente de uma reviravolta radical nas concepções que estes movimentos têm da transformação social, que seguem indo bem além da ação institucional.
Não é o caso, portanto, que aqueles que até ontem criticavam a representação e o estado tenham reconhecido erros e abraçado a política eleitoral como caminho único, ou esquecido dos riscos que ela envolve. Ao contrário, deve-se compreender a deriva eleitoral tanto como sintoma da crise da política representativa e estratégia de risco controlado.
O sistema partidário existente (o bipartidarismo de PSOE e PP), inteiramente entregue a interesses financeiros e corporativos, sinalizava que poderia perfeitamente continuar operando apesar de uma maré crescente de dissenso social, agarrando-se à “legitimidade” garantida por eleições de baixa participação. (A qual não surpreende, dada a ausência de opções reais.) Diante disso, os movimentos fizeram uma aposta: que os riscos da política institucional poderiam ser administrados na medida em que as novas alternativas eleitorais fossem suficientemente frágeis para permanecer sob controle social.
Isto é o que há de mais instrutivo nas recentes eleições espanholas – que marcaram o crescimento não do Podemos enquanto tal, mas de iniciativas cidadãs que o incluíam, não necessariamente como força majoritária. O êxito inesperado do Podemos nas eleições europeias de 2014 levara a duas direções complementares: adesão aos seus “círculos” locais (organizações de base) e/ou adesão às iniciativas cidadãs que já começavam a se formar.
Enquanto a primeira indicava um esforço para garantir controle social sobre o Podemos por dentro (mediante participação), a segunda impunha-lhe limites por fora, forçando-o a coexistir e compor com outros pólos de poder (complementaridade). A legitimidade social das iniciativas cidadãs impediu, na prática, o Podemos de concorrer sozinho nas cidades maiores, obrigando-o a ser um ator entre outros.
Enquanto a narrativa tradicional veria a “maturidade” como botar todas as fichas num único partido, os movimentos espanhóis distribuíram as apostas numa ecologia de alternativas que, equilibrarando-se mutuamente, aumentam a possibilidade de controle social. Já que ninguém pode estar seguro de contar com um público cativo (como PSOE, PASOK, Labour e PT já tiveram), os aspirantes a representantes precisam buscar legitimação constantemente. A fragilidade relativa dos líderes é uma força para as bases – algo, aliás, explicitamente reconhecido após as eleições por uma figura-chave do Podemos, Tereza Rodríguez.
Isto contribui para entender porque o crescimento de Podemos emperrou nos últimos meses. É bastante adequado descrevê-lo como um “partido startup”: seu pequeno grupo de fundadores apareceu quando o consenso sobre a necessidade de uma alternativa eleitoral aumentava, e se milhares se dispuseram a “investir” neles, foi tanto porque o partido oferecia participação direta via “círculos”, quanto por um “efeito bolha” – quanto mais ele crescia, mais viável parecia ser.
Em resumo, ele atraía as pessoas por parecer tanto verossímil quanto controlável, num caso único de “entrismo de massa”. A posterior desvalorização dos “círculos” e concentração de poder na mão dos fundadores fez com que muitos sentissem estar perdendo controle sobre o partido e sua estratégia; o entusiasmo amortecido e a participação diminuída ajudaram a desinflar a “bolha” original. A vitória das iniciativas cidadãs, nas quais o Podemos foi protagonista, mas não solitário, lhe dá tanto uma nova injeção de entusiasmo quanto um sinal que, se bem interpretado pela liderança, poderá inflexionar sua trajetória na direção de mais abertura, mais confiança, e portanto mais apoio.
A vantagem dos representantes relativamente frágeis também serve de chave de leitura para a Grécia. Depois de ganhar uma eleição que provavelmente não teria ganho se tivesse feito campanha contra o Euro, o Syriza está cada vez mais diante da escolha entre trair seu mandato anti-austeridade ou seguir o caminho imprevisível do Grexit. Que sua liderança, solidamente pró-Euro, pareça cada vez mais disposta a contemplar a segunda opção, reflete não só o déficit democrático das instituições européias, mas o reconhecimento de uma fraqueza política: o risco real de suicídio político que resultaria de uma capitulação. Esta fraqueza pode muito bem sair a favor do povo grego.
Ao final, o que decide se os representantes se mantêm frágeis é a força relativa dos movimentos sociais; e aí há muitos riscos. Tantos os sucessos quanto às inevitáveis decepções da política eleitoral podem ter efeitos desmobilizadores; além disso, ganhar eleições implica perder quadros importantes dos movimentos para o aparelho de estado. Ambas as coisas implicam perda de autonomia, e portanto de controle. Finalmente, ao passo que movimentos podem se dar ao luxo de ser complementares, partidos são competitivos por natureza: eles buscam dominar o campo eleitoral, o que põe um limite a quanta diversidade eles podem tolerar.
Como sugeriu Pierre Clastres, a emergência de formas “verticais” de poder talvez se devesse explicar menos por elas mesmas que pela incapacidade do campo social de exorcizá-las continuamente. Afora o modo como lidarão com todos os outros desafios que têm pela frente, o sucesso de Espanha e da Grécia neste aspecto será um dos critérios pelos quais elas poderão ser julgadas como oferecendo um modelo e um rumo.
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Espanha: das redes aos partidos – e vice-versa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU