03 Agosto 2018
Pode parecer arriscado, mas eu acho que é possível defender que não existe um único modo de descrever o capitalismo. Não quero dizer em geral, senão seria óbvio, mas também quando compartilhamos, em linhas gerais, uma perspectiva que quer ser autenticamente marxiana.
O comentário é do sociólogo italiano Federico Chicchi, professor da Universidade de Bolonha, em artigo publicado em Effimera, 01-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em outras palavras, mesmo que partíssemos de um mesmo paradigma, muitos seriam os elementos teóricos que podem, para esse fim, ser selecionados em despeito de outros. O problema, então, deve ser levantado em outro nível: a questão em jogo, de fato, não é a de conseguir construir um esquema teórico coerente e acurado sobre o funcionamento do capitalismo, mas sim conciliar essa mesma abstração teórica de modo que seja capaz de determinar uma transformação da própria realidade capitalista.
Economia politica del comune [Economia política do comum] (Ed. DeriveApprodi, 2017), o último livro de Andrea Fumagalli, trabalha com perfeição dentro dessa tensão irrenunciável. No texto, dispõem-se, de modo sinérgico, diversos estratos de reflexões que deslocam continuamente para a frente a análise teórica, até levá-la à presença da prática – e, de modo ainda mais precioso, esta última (a reflexão sobre a prática política) segue simultaneamente a tendência inversa. A própria organização do volume, o seu índice, nos diz algo dessa sua primeira e fundamental qualidade metodológica.
No livro, a reflexão sobre as modalidades através das quais o capitalismo contemporâneo, ao contrário do passado industrial, organiza a extração do valor e a exploração precede, significando-a – ou seja, permitindo entender a sua emergência e a sua relevância atual –, a análise dos processos de financeirização da economia, da crise dos sistemas de welfare nacionais, do trabalho precário como condição geral do mundo de trabalho pós-fordista e, sobretudo, do comum entendido como modo de produção.
Tais análises, depois, são todas consideradas na visão da necessidade de repensar o conflito e os diversos dispositivos de luta dentro e contra o novo capitalismo. O horizonte do comum (comum escrito rigorosamente no singular), então, nas páginas do livro, retoma fôlego, profundidade e fisionomia, dentro daquilo que Fumagalli define como Welfare do comum (Commonfare), questão muito articulada e complexa, certamente não desprovida de armadilhas, à qual o autor dedica, com precisão, a última e mais convincente seção do livro.
Para além do estado de ânimo e dos conteúdos que compõem o texto, é preciso, porém, especificar o pano de fundo sobre o qual, na minha opinião, eles se desdobram depois. A esse respeito, fala-se de como o capitalismo se produz em razão de um desequilíbrio estrutural ao qual adere intrinsecamente, do qual não pode prescindir e que deve ser contínua e repetidamente traduzido e, depois, medido em uma cota excedente de valor proprietário.
Fala-se dos sutis, mas profundos, interstícios da crise atual dessa medida que impacta, hierarquizando-a, sobre a vida. Em outras palavras, fala-se do sintoma do capitalismo e do sintoma do capitalismo que é a mais-valia. A mais-valia é aquilo que encarna a transformação do dinheiro em capital. O capitalismo, para realizar uma cota suficiente de mais-valia, necessário para a sua reprodução econômica e social, portanto, deve e não pode prescindir de exercer um ato de extorsão, de rapina, do valor, via exploração.
Onde há exploração, há capitalismo, se poderia dizer. Sim! Exceto que a exploração não diz respeito e não especifica apenas esse tipo de relação social. “O capital não inventou o trabalho excedente”, como especifica Marx na sua obra fundamental (Marx, 1970, p. 255).
Aquilo que o capitalismo torna realidade de modo peculiar, inaugurando uma nova era das relações sociais, é uma exploração que, ao contrário do passado, se baseia no engano da troca, uma exploração mediada pelo valor. Em suma, a exploração no capitalismo está “escondida sob a relação de troca” (Napoleoni, 1972, p.141) e não é imediatamente reconhecível como nas épocas anteriores, as de tipo pré-capitalista.
“Somente a análise consegue descobrir que, na realidade, as coisas são como eram antes, isto é, do ponto de vista da relação essencial entre as duas classes, porque, repito, uma vive sobre o trabalho necessário e a outra vive sobre o trabalho excedente” (ibid., p. 142).
O livro de Fumagalli, então, tenta construir (obviamente sem ter a presunção de levá-la a cumprimento) uma análise que tem o urgente objetivo de mostrar o modo pelo qual a exploração continua estando, hoje mais do que nunca, no centro do funcionamento do sistema capitalista. Ele fala, em outras palavras, do modo pelo qual hoje o capitalismo toma como refém o comum, aquilo que é compartilhado e cooperante, para poder garantir a repetição do gozo do seu sintoma: a ampliação contínua e sistemática do valor (de troca).
“Impulso ilimitado e desmedido a superar os seus obstáculos. Cada limite é e deve ser um obstáculo para ele. Caso contrário, ele deixaria de ser capital.”
O capital é indiferença às necessidades, é crescimento ilimitado e incontrolável. Eis a formulação, da presciente assonância deleuziana, que nos Grundrisse (p. 330) Marx, como de costume, com extraordinária perspicácia, nos entrega. O problema é que essa mistificação, o engano perpetuado pelo possuidor do dinheiro em relação ao proletário “formalmente livre”, leva o sujeito a acreditar – talvez apenas por um momento – que é possível se realizar, apesar de, senão até através de, a exploração.
Poderíamos dizer, no que diz respeito à fase industrial e fordista, que o sujeito se realiza na aceitação de que seu destino está no trabalho assalariado, ou, hoje, no capitalismo neoliberal, na forma daquilo que, seguindo a retórica administrativa, chama-se “empresa de si” e “capital humano”.
Isto é, a armadilha da exploração capitalista está escrita na sua função normativa, não só interditiva, mas também solicitativa. Esse mesmo engano, perpetuado em nome da mais-valia, efetivamente, torna-se o espaço tensional de subjetivação que, hoje, quando ele se torna cada vez menos tenso do que o campo de batalha dos interesses, se especifica e se circunscreve. E isso, se por um lado é um problema, por outro indica como a exploração capitalista também tem sempre a ver com a produção social de uma injunção sub-reptícia à produção do valor e de uma adesão imaginária à sua lógica de fundo (imprinting) (cf. Chicchi, Lucarelli, Leonardi, 2016).
Portanto, instaurar uma relação social específica e adequada de produção, capaz de resolver o problema da acumulação e da realização do valor é a “preocupação” que o capitalismo deve enfrentar, desde já e depois continuamente.
Afirmando de modo diferente, mas equivalente: adequar, ou, melhor ainda, produzir subjetividade de modo que esta atue de modo consequente ou consubstancial com o imperativo do desempenho acumulativo proprietário. Os diversos modos em que tal “solução” vem se configurando, histórica e logicamente, mostram, então, a evidência de uma forma social (e institucional) do modo de produção capitalista em contínua transformação (organismo em contínua transformação, diria Marx), ao qual correspondem regimes de acumulação diferentes.
Christian Marazzi mostrou-nos que, “movendo-nos a partir desse desequilíbrio estrutural, podemos explicar historicamente o desenvolvimento, assim como as grandes crises do capitalismo” (Marazzi, 2016, p. 62).
Eis, então, que o livro de Andrea Fumagalli assume sobre si, até o fim, a responsabilidade teórica e política de tal tarefa: interromper esse destino, construir uma teoria e uma prática de luta adequadas para o presente, capazes tanto de revelar o engano da exploração (assim como ele se apresenta hoje nas suas novas tramas), quanto de combater a violência que o capitalismo contemporâneo produz todos os dias sobre os nossos corpos.
No capitalismo, que o autor define – seguindo, em demora, o rastro do neo-operaísmo – com o convincente termo de capitalismo biopolítico e cognitivo, “o desafio diz respeito, em particular, a duas exigências, ou, melhor, duas problemáticas, totalmente internas à dialética do capitalismo biocognitivo: a reformulação de uma teoria do valor-trabalho adequada ao fato de que o trabalho hoje coincide com a vida, por um lado, e a definição daquilo que hoje determina e define a unidade de medida do valor, ou, em outros termos, a estrutura hierárquica do domínio do capital sobre o trabalho, por outro” (p. 95).
A esse respeito, são dois os processos fundamentais que, na minha opinião, devem ser levados bem em consideração para fundamentar e seguir o raciocínio do autor.
O primeiro diz respeito à consideração da crescente centralidade das finanças na determinação das cotas de valor necessárias para sustentar hoje o processo de acumulação hoje: são “as finanças que definem o próprio âmbito da valorização” (p. 138).
As finanças são o modo como hoje se produz, em sua grande maioria, a realização do capital. O fazer-se renda do lucro, portanto, mas, acima de tudo, a impressão de uma medida proprietária sobre a nova e difusa atividade de produção social de riqueza, que a sociedade das redes difusas e dos saberes torna disponível. O sabe que se propaga nas redes, o general intellect, para usar ainda o léxico de Marx, torna-se economicamente estratégico, ou “base do processo de acumulação e valorização biocapitalista” (p. 63), e o capitalismo deve controlá-lo e dirigi-lo se quiser “resolver-se”.
Esta é uma passagem nodal do raciocínio. Deixando-nos ajudar mais uma vez por Marazzi, poderíamos dizer que “o capitalismo financeiro cresceu captando bens comuns, o comum” (Marazzi, 2016, p.71). Isso significa que, “no momento em que o comum se torna modo de produção, ele também é fator de valorização e, portanto, local precípuo do processo de subsunção e exploração” (Fumagalli, 2017, p. 95). E ainda: “A financeirização modificou o mecanismo da valorização e a sua estrutura hierárquica” (p. 156).
A relação entre o trabalho (força de trabalho) e capital vem se redeterminando – e as geografias econômicas e sociais em que a captura do valor ocorre, assumem morfologias inéditas, que ainda devem ser, em grande parte, especificadas e investigadas.
Compreender como a exploração funciona e determina os seus novos dispositivos, à luz das recentes transformações em sentido pós-fordista, é, repito, o que está em jogo teórica e politicamente nesse volume. Devemos, portanto, nos deter sobre esse ponto, introduzindo também o conceito de “subsunção vital”, aqui proposto pela primeira vez pelo autor de modo sistemático.
Se a relação social de fábrica tinha caracterizado o modo em que a exploração e a acumulação se determinavam, “hoje a base da valorização e o lugar da exploração são a cooperação e a reprodução social”. As relações sociais e as suas práticas de partilha tornam-se imediatamente prolíficas de valiosos, isto é, não só úteis em “segundo lugar” para a regeneração das forças de trabalho, mas sim qualidades fundamentais imediatamente chamadas em causa na cooperação social produtiva e na relação de serviço entre empresas, trabalhadores e consumidores.
No momento em que o desempenho hoje exigido se estende para além da prática de processamento “operacional”, transbordando (graças também às novas tecnologias digitais de rastreamento), de um lado, no tempo de vida e invadindo, de outro, toda qualidade afetiva e estética da subjetividade, “linguagem, comunicação e reprodução social tornam-se o motor da valorização” (p. 118).
Um dos resultados mais relevantes da consumação e da porosidade da fronteira entre produção e reprodução social é que as formas de exploração hoje se multiplicam: ao dualismo marxiano da subsunção formal (monetária e jurídica) e real (material) é preciso acrescentar, então, no capitalismo biocognitivo, uma modalidade subsuntiva inédita, que incide diretamente sobre a vida (e sobre as suas qualidades valorizadoras) e se forma como uma espécie de híbrido das duas primeiras formas, a “subsunção vital”.
O segundo ponto a ser lembrado na economia geral do texto talvez seja ainda mais relevante do que o primeiro, no sentido de que traz consigo consequências ainda não facilmente determináveis. Ele tem a ver diretamente com a progressiva confusão, na relação social de produção, das fronteiras entre “capital constante” e “capital variável”, ou, melhor, tem a ver com a confusão do elemento tecnológico e maquínico das produções com o elemento “vivo” e cooperativo da subjetividade.
O conceito de subsunção vital, de fato, se evidencia e se especifica precisamente a partir desse progressivo desaparecimento da tradicional e rígida separação industrial entre humano e maquínico. “É essa hibridação que está na base do conceito de capitalismo biocognitivo: um conceito totalmente material, que não tem nada de etéreo ou de desvinculado da realidade dos corpos, mas que se encarna justamente na produção das faculdades de vida dos corpos e da sua transformação em partes mecânicas e/ou em processos de mercantilização” (p. 218).
Se, na economia industrial, “a ativação produtiva da sua força de trabalho só será possível a partir do momento em que, após a sua venda, ela será posta em conexão com os meios de produção” (Marx, 1970, Livro II, p. 37), no capitalismo biocognitivo e pós-fordista, essa condição de valorização assume determinações novas e mais intrincadas.
Como Foucault já havia intuído no seu celebérrimo seminário “O nascimento da biopolítica”, as transformações em sentido neoliberal da economia capitalista promovem o nascimento de um modelo de desenvolvimento antropogenético e um novo modelo de “trabalho”, em que, de fato, o elemento maquínico da ação de produção não é mais separável da própria subjetividade.
Mas atenção! A hibridização não se coloca apenas no plano das aplicações tecnológicas homem-máquina de nova geração e, portanto, no que diz respeito à transformação da composição técnica do trabalho (hoje no centro das atenções com as aplicações algorítmicas e com a inteligência artificial), mas também diretamente no plano da qualidade, poderíamos dizer lógica, das relações sociais de produção: “Em outras palavras, a competência do trabalhador é uma máquina, mas uma máquina que não pode ser separada do trabalhador como tal (...). É preciso considerar que a competência, que é uma só coisa com o trabalhador, é em certo sentido o aspecto pelo qual o trabalhador se torna uma máquina” (Foucault, 2004, p. 185).
A análise do capitalismo contemporâneo que Andrea Fumagalli nos propõe nesse texto – e que eu acho que posso dizer que marca um ponto importante e relevante da obra do autor – é, em conclusão, muito convincente, além de necessária a fim de nos dotar dos instrumentos para enfrentar as lutas que nos esperam.
“A construção de contra-biopoderes necessita de uma nova práxis. Uma nova práxis requer hoje a coragem da experimentação, uma experimentação que deve possuir os instrumentos adequados para fazer emergir o comum como método de produção alternativo” (p. 230).
Porém, acreditamos que esse importante ensaio só pode realizar a sua vocação recém-citada se conseguirmos lê-lo e discuti-lo juntos, se conseguirmos fazê-lo circular e penetrar o máximo possível nos mais diversos ambientes, ou seja, se conseguirmos inserir as reflexões aqui contidas dentro de um novo e compositivo “método” de luta e de resistência, pelo menos, por que não?, till the morning comes.
Chicchi, Federico; Lucarelli, Stefano; Leonardi, Emanuele. Logiche dello sfruttamento. Oltre la dissoluzione del rapporto salariale. Verona: Ombre corte, 2016.
Foucault, Michel. Nascita della biopolitica. Corso al Collège de France (1978-1979). Milão: Feltrinelli, 2005.
Fumagalli, Andrea. Economia politica del comune. Sfruttamento e sussunzione nel capitalismo bio-cognitivo. Roma: DeriveApprodi, 2017.
Marazzi, Christian. Che cos’è il plusvalore? Ballinzona: Casagrande, 2016.
Marx, Karl. Il Capitale, Livro I, trad. D. Cantimori. Roma: Editori Riuniti, 1970.
Marx, Karl. Il Capitale, Livro II, trad. R. Panzieri. Roma: Editori Riuniti, 1970.
Marx, Karl. Lineamenti fondamentali dell’economia politica, 2 volumes, trad. E. Grillo. Florença: La Nuova Italia, 1968-1970.
Napoleoni, Claudio. Lezioni sul capitolo sesto inedito di Marx. Turim: Boringhieri, 1972.
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O comum, refém do capital. Artigo de Federico Chicchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU